Ficção e comprometimento: Marcas, sonhos e raízes

 Marina Luíza Horta*

 

“Nossa situação é de urgência”.

Sônia Fátima da Conceição

 

Realidade e ficção, autoria e personagem. Marcas sonhos e raízes é uma novela escrita por uma integrante do movimento negro que, através do protagonista Jofre, encena os conflitos de um militante em constante luta contra o racismo. Percebe-se no desenrolar da obra aspectos característicos da temática da Literatura Afro-Brasileira.

A história do preconceito contra o negro tem seu início atrelado diretamente ao período de colonização do Brasil. Isso porque o aparelho escravocrata instalou no país um sistema que inferiorizou o afrodescendente ao transformar o ser humano em simples mercadoria. Apesar do trabalho forçado, lutavam para manter vivas suas raízes e tradições trazidas da África e outras tantas criadas em solo brasileiro. Mesmo com o fim da escravidão, não se viram livres das correntes, isso porque o governo brasileiro não tomou nenhuma atitude para assegurar que tivessem uma vida digna após anos de senzala. Ou seja, a cidade ganhou os negros, mas esses não conseguiram ganhar o “privilégio” de cidadãos. Dessa maneira, foram vítimas do racismo que já se havia instalado em nossa sociedade e a liberdade, no fim, não lhes proporcionou uma realidade tão melhor.

O passado de cativeiro fez com que a população negra enfrentasse muitos obstáculos em busca de sua afirmação como sujeito. Mas, mesmo com todo o esforço e conscientização em prol de uma sociedade justa, dados comprovam que ainda há muito que fazer. No Brasil, a expectativa de vida de crianças negras é assustadoramente mais baixa do que das brancas. Segundo o Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, no ano 2000, a taxa de homicídio de negros foi 87% maior do que a de brancos. Esse percentual pode ser explicado avaliando-se que os jovens negros estão mais expostos ao tráfico de drogas, à precariedade da saúde pública, além da baixa condição de vida que têm nas favelas (que são predominantemente negras). Soma-se a isso o fato de que há menos crianças e jovens negros na escola e na universidade, o que implica em grande índice de desemprego.

Além de todas as disparidades que contribuíram para a marginalização, pobreza e exclusão, o século XIX foi marcado por teorias científicas que procuravam afirmar a inferioridade dos afrodescendentes. Embora essa vertente tenha sido desmentida, parece influenciar, ainda hoje, muitos daqueles que insistem em manter a desigualdade racial.

Sônia Fátima da Conceição entende muito bem o que é ser negro no Brasil. É socióloga e militante do Movimento Negro – que foi e ainda é um dos meios mais importantes de conscientizar a população – participa série Cadernos Negros desde o seu segundo número e é figura ativa no grupo Quilombhoje literatura. A autora, portanto, não foge à regra dos escritores engajados em alguma ação política ou sindical paralela a suas reivindicações. Seu personagem é membro do MMN, Movimento de Militantes Negros, e mostra através de seus conflitos individuais a problemática que ainda perdura em nossa cultura.

Até que ponto a vida pessoal pode prejudicar um ideal político? Quanto um homem engajado em uma organização pode abdicar de sua vida como indivíduo para ser comunidade? Nota-se a preocupação da autora em ser porta-voz de uma comunidade, expondo seus ideais e dificuldades.

Sonhos e Marcas

Uma primeira reflexão sobre a obra busca estabelecer uma relação heróica e ao mesmo tempo anti-heróica que o ativista apresenta no decorrer da trama.

Vinte e sete anos, relativamente forte, estatura média, boca de branco, nariz de preto. O enorme rasta era uma reverência a Bob Marley. Viver para Jofre, era encarar a luta contra o preconceito, de frente, sem medo. Sentia-se um verdadeiro soldado em meio a um campo de batalha. (CONCEIÇÃO, 1991, p. 11).

Esse excerto mostra ao leitor um pouco do perfil da personagem. As principais características do herói, principalmente o mitológico das grandes epopeias, são justamente a resistência, a lealdade, e a luta pelas causas coletivas, nas quais ele assume o papel de representante de seu povo. Estamos diante desse homem que “abandona” até mesmo as ambições pessoais em prol de sua luta, sente-se como um soldado e não é raro “ouvirmos” de sua boca ou de seus pensamentos a declaração de que “é a guerra” o que ele vive.

A condição de herói pode ser associada a uma das características dos autores e/ou das literaturas negras de língua francesa, construídas por Lylian Kestellot (1977) e lembradas por Zilá Bernd em Introdução à literatura negra, de que “os autores consideram-se como porta-vozes do grupo a que pertencem, conferindo grande importância ao papel do intelectual como “educador das massas negras”. (BERND, 1988, p. 26).

Como um personagem complexo, Jofre não está livre da problemática que envolve o homem moderno. Além de enquadrar-se em alguns momentos nas características de um herói, ele é, simultaneamente, o anti-herói romanesco. Imbuído de conflitos pessoais, fraquezas e contradições, sofre por negar o sistema no qual vive e por apresentar-se um “ser na contra-mão”, nos moldes do conceito de “Contraliteratura”, expressão criada por Mouralis (1975) para também caracterizar que a literatura negra caminha na direção inversa à da tradicional. O personagem nega o capitalismo – “Dinheiro! Dinheiro! Maldição! Quizila do mundo!” – vive a utopia de que é possível viver só do sonho e da luta, e que para isso é preciso absoluta dedicação a ela. É com esse propósito que abandona a faculdade, não aceita a exploração do patrão e deixa o emprego para ter tempo integral aos seus ideais.

O problema é que esse “estilo” de vida não é bem visto pela sociedade, e chega, frequentemente, a incomodar seus próprios companheiros do MMN. Grande parte do grupo vê no colega um esboço do “malandro irresponsável”. Sua vida pessoal é constantemente questionada nas reuniões da organização. Por não ter um salário regular, o ativista é “jogado” para fora da pensão de Dona Marta, lugar onde mora e não paga o aluguel há meses. Dona Marta apresenta uma outra visão. Nas palavras da personagem, “Negro é gente!”, e, por isso, não são necessárias mais lutas, pois ele já é livre, e o que importa é que garanta sua sobrevivência e pague os aluguéis. Essa senhora parte da ideia estereotipada de que não há preconceitos e nem razão para esse tipo de ação. Jofre é um vagabundo, e só isso. Um discurso que acena para uma igualdade que, na prática, não existe. Ela compartilha a crença de que o Brasil é o país da democracia racial.

A temática da Literatura Afro-Brasileira é predominantemente identificada na obra. É imprescindível ressaltar que a ficcionista preocupa-se em evidenciar os problemas vividos pelos grupos contra o racismo. Através do MMN, relata as dificuldades com as quais se deparam as organizações negras. Os principais problemas apontados são a falta de tempo, as dificuldades financeiras, e até mesmo o pouco comprometimento que alguns integrantes têm em relação ao movimento. Jofre e os outros são apenas porta-vozes dessa coletividade que luta contra o preconceito racial. É por participar de uma organização como a narrada na novela que a escritora elabora de maneira verossímil todos esses obstáculos. A obra traduz para a Literatura a realidade de um tempo. Ilustra a circunstância crítica ma qual alguns grupos se encontram.

Não se pode deixar de lado outra importante consideração evidenciada na obra. Seriam as favelas brasileiras as grandes senzalas da modernidade? A pergunta é rapidamente respondida por Jofre, que tem a certeza de que a favela onde mora é uma grande senzala, de onde saem as organizações dos quilombos. O centro da cidade é, para o personagem, a casa grande, iluminada por luzes que cegam as pessoas e por um sistema que oprime e exclui os quilombos urbanos. Esse compromisso com a história atual de seu povo, que encontramos em Marcas sonhos e raízes é, para Eduardo de Assis Duarte, uma característica importante da Literatura Afro-Brasileira: “outra vertente dessa diversidade temática situa-se na história contemporânea e busca trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de prosperidade cercada de miséria e exclusão”. (DUARTE, 2008, p. 13).

As periferias são, de certa forma, um tipo de segregação espacial. Reafirmam a hierarquia de valores imposta pela sociedade que impede o acesso de determinados grupos à urbanização, com melhor qualidade de vida. Elas são formadas, predominantemente, por famílias que viviam ao redor das cidades e foram “engolidas” pelo crescimento desordenado. Esses grupos geralmente dividem o vínculo com a ancestralidade negra, ainda que existam vários brancos. A opressão histórica, que praticamente expulsou essas pessoas de suas terras devido a projetos de urbanização, é motivo de revolta de parte dessas populações envoltas na pobreza e na exclusão.

Marcas da violência da discriminação são tragicamente ilustradas a partir da vida das personagens Armando e Pedro. Integrante do MMN, Armando participa sempre das reuniões e será o único a oferecer ajuda a Jofre quando este se encontra sem moradia. Inquilino de um antigo casarão transformado em uma pensão, na qual, segundo o personagem, ninguém se orgulharia de morar, exibe, através de sua percepção, questões graves. O primeiro problema refere-se justamente ao casarão, descrito assim pela autora:

– Enfim chegamos, companheiro! – Armando tentou passar em sua fala um ânimo que não tinha, que perdia sempre quando se aproximava do casarão. A impressão de que o mesmo fora propriedade de algum escravocrata se confirmava a cada dia. Tinha o cheiro da maldade, a marca da exploração se fazia presente em cada morador. Doze famílias ao todo. Se acotovelavam, viviam num clima de insatisfação, fruto do desconforto de locais que não são para seres humanos. Estava certo de que ali permanecia a irracionalidade do período escravo, fomentando injustiças e desrespeito. Esta verdade muitas vezes enchia de mágoa o seu corpo. Louco, passava horas imaginando onde teria ocorrido o grito de liberdade. Armando não tinha dúvidas, a noite escondia algum segredo quanto ao destino do homem negro na terra. Eram castigados aqueles que se rebelavam. Pensou muitas vezes em deixar a militância. (CONCEIÇÃO, 1991, P. 51).

O trecho acima, sem dúvida, fala por si. Somente a hipótese de o casarão ter abrigado seus antepassados como escravos deixava Armando desassossegado. Mais grave ainda é a possibilidade de abandonar a militância por medo de um suposto castigo por ser um “rebelde”em sua época.

Retomando o segundo personagem citado no parágrafo anterior, encontramos mais um problema vivido pelos afrodescendentes, o branqueamento. Pedro divide o quarto com Armando, é negro, embora se apresente como “filho de uma raça morena”. Armando, assim como o “eu-que-se-quer-negro” (BERND, 1988, p.76), alerta o companheiro de quarto para o fato de que isso era uma armação para que o negro perdesse a sua identidade. Sônia aprofunda ainda mais a complexidade do problema ao afirmar através do narrador que Pedro só chorava quando lhe “acusavam” de negro. Essa questão aparece de forma tão recorrente em nossa sociedade que às vezes parece ser correto chamar o negro de moreno. Esse sistema priva o negro de se reconhecer como tal.

Contrário ao branqueamento, Jofre representa a valorização das características físicas e culturais do negro. Quando o narrador o descreve, faz questão de exaltar sua “boca de preto”, seu “enorme rasta”, em reverência a Bob Marley, motivos de orgulho para o personagem. Sônia faz aquilo que Zilá Bernd chama de inversão da simbologia (BERND, 1988). Ou seja, se antes essa imagem estivera marcada por uma conotação negativa, tanto na Literatura como na sociedade, agora revela justamente o seu oposto, um símbolo positivo, uma tentativa de reverter os padrões eurocêntricos do que é considerado belo.

As personagens femininas merecem destaque na novela. Beokis, a namorada do protagonista, aparece no enredo como a representação da mulher negra bem sucedida. Não tem paciência para a militância, mas afirma vibrar com os grupos de combate ao racismo. Após um encontro em um bar, acolhe Jofre em sua casa, mas logo é traída pelo machismo do mesmo. Ele conhece Suzana e, no ímpeto de desejo, e com a velha desculpa de que nenhum homem resiste à beleza de uma mulher, trai Beokis no apartamento onde vivem. Não fosse bastante a infidelidade com aquela que lhe recebeu em casa, usa de uma fala da namorada para justificar a falta de lealdade “neste mundo, onde nos tiram tudo, só resta o direito sobre o corpo. Nosso corpo negro”. É com essa alegação que Jofre encara o que fez com naturalidade e aprovação. Sua fraqueza e contradição ganham força com outras atitudes. Ele acredita na igualdade entre os sexos, mas acha absurdo Beokis não o perdoar por uma atitude que julga ser um privilégio masculino. O “herói” é finalmente humano. Não é difícil acharmos em pessoas de nossa convivência os conflitos apresentados por ele.

Sônia não só questiona os costumes do sexo masculino, como põe em reflexão as figuras femininas da sua narrativa. Maria Clara, também integrante do MMN, é nomeada pelo narrador de “mulher-vítima”. Não faz nada para mudar a situação, mas apenas reclama do machismo dos homens, aceitando-o já que, de certa forma, lhe é cômodo mostrar-se como a vítima, injustiçada. A respeito da situação da mulher Sônia adverte:

Mais uma vez tento, a partir daquilo que escrevo, questionar a relação da mulher com esta sociedade, onde é desenvolvida toda uma trama no firmar a situação de inferioridade, apesar de seu papel de dominância para a perpetuação da espécie. (CONCEIÇÃO, 1987, p.139).

A partir dessa afirmação, percebe-se que a autora não concorda com a tradição que define a mulher como o “sexo frágil”. Sendo assim, a atitude da personagem citada acima é uma forma de alerta para aquelas que ainda não tomaram consciência da importância que representam na sociedade. Essa atitude é válida não só porque discute a postura do homem perante a mulher, mas também a submissão e conformismo que algumas ainda têm. O mesmo sistema que oprimiu o negro também agiu sobre as mulheres: machismo e sexismo caminham juntos.

É também com esse trecho que se retoma o conceito de autoria questionado anteriormente. Mais uma vez uma opinião de Sônia pode ser relacionada diretamente à sua obra. Ela, que já declarou ser partidária do feminismo, consolida sua ideologia através das personagens descritas acima. Maria Clara faz o papel de uma “provocação” a tudo aquilo que a escritora acredita. Ou seja, a ficção faz parte da realidade assim como resguarda o julgamento da autora. Isso opera no leitor uma reflexão dos valores, da cultura que exalta o homem em detrimento da mulher e que ganha reforço não só nos homens como em algumas mulheres.

Outro ponto a destacar é a influência dos Orixás na vida de Jofre. Percebe-se que a religiosidade está quase sempre presente nas obras consideradas afro-brasileiras. Segundo Duarte (2005), a temática negra engloba as tradições culturais e religiosas trazidas para o Brasil, ressaltando a importância dos mitos e lendas. Sônia explora esse aspecto dando um ar de “magia” à obra. O clima de espiritualidade e tradição se faz presente cada vez que Jofre conversa com seus Orixás. Ele, que não teme nada no mundo, tributa grande respeito a suas crenças. Tem medo de ser castigado pela traição a Beokis e por qualquer outra coisa. Além do aspecto místico mostrado na obra, natureza e homem fundem-se em uma só coisa e vivem em harmonia.

Marcas Sonhos e Raízes

Com esse estudo sobre a novela de Sônia Fátima da Conceição e reconhecendo na autora uma militante que aborda sistematicamente a temática da Literatura Afro-brasileira através de personagens que podem ser reconhecidos em nossa sociedade, as palavras de Zilá Bernd se aplicam tanto à obra analisada, quanto à autora.

Para que exista um discurso ficcional do negro é preciso que o negro defina a imagem que possui de si mesmo e que consolide o processo já iniciado de construção de uma consciência de ser negro na América. (BERND, 1988, p.76).

A própria Sônia reconhece a importância de fazer uma literatura que busca reafirmar a identidade negra:

Para nós negros, oprimidos e completamente destituídos de valores dentro de uma sociedade racista, que sufocou e ainda sufoca de maneira anti-humana o nosso “eu mais profundo”, não devemos nos limitar a relatar fatos ou ficar questionando de forma reacionária a situação vigente, mas sim buscarrmos formas de, entre os nossos, nos encontrarmos e daí partirmos para uma literatura que vise a transformação social, porque se não ela para os nossos não terá razão de ser. (CONCEIÇÃO, 1982, p. 88).

Considerando-se todos os levantamentos realizados, destaca-se mais uma vez a importância da autoria em obras como essa. Não há como desvencilhar a postura político-ideológica de Sônia dos problemas que a mesma apresenta em sua novela. Além disso, pode-se afirmar que se trata de alguém que vê o problema de um ângulo privilegiado, pois ela, indiretamente, também faz parte da história que narra. Estamos diante do caso onde o eu fala pelo outro. Não importa se Sônia ou Jofre, realidade ou ficção, a obra preocupa-se em ser porta-voz de uma comunidade, expondo, principalmente, as dificuldades de uma organização negra.

Há ainda muito que fazer para que esse círculo de preconceitos finalmente chegue ao final. A literatura pode, e deve, ser mais um meio de denúncia e conscientização. A autora consegue unir, através de sua novela, a realidade que conhece de perto e a lealdade com o seu povo, sem comprometer a qualidade de sua obra.

É impossível separar até que ponto estamos diante de uma ficção ou mergulhados em realidade histórica. O perigo está em ver na novela de Sônia um mero discurso panfletário. Se da perspectiva social essa hipótese já é questionável, do ponto de vista literário pode não ter nenhuma eficácia crítica.

Referências

BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

CONCEIÇÃO, Sônia Fátima da. Marcas, Sonhos e Raízes. São Paulo: Quilombhoje, 1991.

_____. Ser negro, povo, gente: “Uma situação de urgência”. Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Quilombhoje, p. 88-89, 1982.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea: Relações Raciais. Brasília, n 31, p. 11-23, janeiro/junho, 2008.

______. Literatura e Afro-descendência. In: Literatura, Política, Identidades: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, p.113-130, 2005.

QUILOMBHOJE (org). Cadernos Negros 10. São Paulo: Ed. dos Autores, 1987.

Nota

* Marina Luiza Horta é professora de Português e de Literaturas de Língua Portuguesa e Mestre em Estudos Literários pela UFMG.

 

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