O caminho das palavras: o negro e a mulher na literatura de Míriam Alves

Maria do Rosário Alves Pereira*

Em uma tentativa de se resumir o funcionamento da escrita da autora, a professora Kátia Bezerra conclui:

 

pode-se afirmar que a escrita de Miriam Alves permite demarcar um espaço de diferença que funciona como um mecanismo de rejeição e problematização de uma prática totalizadora, que procura impor uma leitura hegemônica e opressiva do outro. Uma luta que, no entanto, deve-se ressaltar, por ocorrer no âmbito da literatura, não se restringe à esfera social, uma vez que sua obra também se empenha em desafiar o autoritarismo hierarquizante e discriminador da historiografia oficial.

 

A obra literária de Miriam Alves é composta por contos, poemas e ensaios acerca da condição negra e também da condição feminina. Em seu texto “O Discurso Temerário” (Criação Crioula, nu elefante branco) a autora ressalta o caráter “político” presente na escritura dos afro-descendentes, mas não utiliza o termo “para designar passeatas de ficcionistas e poetas negros”. Ou seja, o que há não é o panfletarismo político:

 

“falo do ato político que praticamos, escrevendo-nos em nossa visão de mundo. Quando digo nossa, falo Brasil e toda questão econômico-politico-histórico-cultural e relacionamentos plurirraciais que (sic) permeiam. Nossa produção reflete isso”.

 

Pode-se dizer que a escritora confere à política o mesmo significado atribuído por Hall. Segundo o autor, a pós-modernidade traz um novo sentido para a palavra, o de ser “política de identidade” (Hall, 2003, p. 21). É justamente a questão identitária que será enfocada por muitos escritores afro-brasileiros, e Míriam Alves está inserida nesse ciclo.

Em seus poemas torna-se pungente o caráter de busca de uma escritura vinculada a valores identitários bem como a uma auto-afirmação: é o negro que reconhece sua cultura, enxerga os problemas oriundos do alijamento social, mas ao mesmo tempo vislumbra novas possibilidades. No texto “Noticiário”, o eu-lírico reconhece que as chagas da senzala ainda se fazem presentes, mas paralelamente a este movimento há um outro, o das palavras, indício de que o status quo pode ser revertido:

 

O canto da senzala embala meus sonhos

ainda

As lanças dos Quilombos armam minhas palavras

ainda

Vamos cultivar nossa roça ainda

A poesia brota em várias formas

sempre

As fomes subsistem ainda

estômagos raquíticos analfabetos roncam

ainda

Temos sede Sempre

As inundações desmoronam nossos barracos

desarmam nossos sonhos ainda

 

Somos muitos de vários pesadelos

Os apelos crescem sob o sol sempre

Nossos olhos estatelados em esperanças e revoltas

Povoam o noticiário das seis

ainda

As palavras brotam nas hortas

sempre

Temos fome ainda

As notícias faturam sobre nossa miséria

ainda,

 

(Cadernos Negros 9, p. 47)

 

Os advérbios “ainda” e “sempre” reiteram algumas das principais idéias veiculadas pelo poema, alternando-se em um jogo lingüístico que contribui para reforçar a significação: ainda há fome, exclusão social, vestígios de um tempo de escravidão que os afro-descendentes ainda vivenciam na pele; contudo, sempre há mecanismos capazes de trazer uma esperança concreta, tais como os apelos que se fazem ouvir, por exemplo, através da literatura (ainda que a imprensa – é bom salientar – continue explorando a miséria e indigência de alguns, transformando-as em notícias sensacionalistas).

Conforme dito anteriormente, em seus contos a temática da negritude também se faz presente. Em “A cega e a negra – uma fábula”, o leitor entra em contato com dois universos interligados pelo mesmo sentimento: o preconceito que conduz à segregação social. Cecília é uma mulher negra já cansada de ser excluída: eram olhares inquisidores, portas de bancos que sempre travavam... Flora é uma cega e, em um daqueles “acasos” do destino, as duas se encontram em uma agência bancária. Cecília, decidida a não mais ser barrada pela porta eletrônica, entra a toda no local e, surpresa por finalmente ser tratada com igualdade, tropeça na bengala de Flora, uma importante cliente. Logo os seguranças aproximam-se a fim de resguardá-la da “ameaça” representada pela outra, no que são impedidos pela própria Flora. Daí em diante segue-se uma amizade profunda entre as duas, na qual uma é o esteio da outra perante os percalços enfrentados no dia-a-dia. Ao relembrar a história Cecília, no conto, observa o movimento de uma aranha, fazendo o tempo todo uma analogia entre sua teia e o tecido da vida:

Cecília e Flora teceram sua amizade nas teias do viver. Transformaram o destino árduo, os estigmas, como insistia em afirmar Flora, no prazer de ver. Isto! Ver! A aranha supera-se a cada teia, por mais que a simetria dos fios pareça sempre a mesma. (Cadernos Negos 24, p. 93).

No final, Cecília compreende o que Flora há muito já havia entendido: que a cada obstáculo ultrapassado ambas erguiam-se mais preparadas para enfrentar a vida e os desafios que esta lhes impunha.

Paralelamente à abordagem da condição que permeia o universo de grande parte dos afro-descendentes, Míriam Alves também trabalha com a condição feminina, seja para mostrar a servilidade a que muitas mulheres ainda se submetem, seja para retomar a feminilidade sob uma perspectiva erótica. Vejamos o poema a seguir:

 

Rainha do lar

Mesas, copos, minha casa

trancafio-me

silêncio nas paredes

esmurram meus ouvidos

palavras, ecos abandonados

 

Mesas, copos, minha casa

na couraça da espera

nuvens de cigarros

colorem fantasias cinzas

 

As vozes dos discos

calam-se. Nem choro. Nem risos.

Triste tranqüilidade

livros paralisados

solidão e medo

dor sem remédio

 

Mesas, copos. Minha casa

e

uma janela aberta.

 

(Cadernos Negros 19, p. 135)

 

 

O eu-lírico feminino sente-se enclausurado por uma situação social na qual ainda predominam valores patriarcais que condenam a mulher ao gueto da passividade e da exclusão. Isso é representado no texto pelo silêncio que domina a cena e conduz a personagem poética a uma “solidão e medo/dor sem remédio”. A monotonia do cotidiano se estende, e essa idéia é trazida ao leitor pela reiteração de palavras tais como “mesas” e “copos”. No entanto, o último verso parece vislumbrar uma nova possibilidade: a “janela aberta” pode ser uma saída para que o ser feminino ultrapasse as barreiras impostas pelo status quo.

Dessa forma, nota-se que a escrita de Miriam Alves é engajada com valores que concernem tanto à etnicidade quanto à questão feminina. Em seus textos trabalha não só o lugar tradicionalmente ocupado pelo negro e pela mulher ao longo da história universal, mas também o lugar que, por direito, lhes deveria ser concedido.

 

Referências bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

_____________________________________

*Doutora em Estudos literários pela UFMG

Texto para download