Expressões do erotismo e sexualidade na poesia feminina afro-brasileira contemporânea1

Cristian Souza Sales*

Mulheres negras: calando o verso da dor

O Verso Orou

calei o verbo dor e o verso amor

metáforas profundas não vieram

emoldurei-me no silêncio

Na cara da lua mais tarde

explodiu

gozo

debochado

plenitude temporária

O poema inscreveu-se

entrelinhas negritou metáfora

Orou

desenhou palavras

fortes nos espaços em branco2.

 

A poesia O Verso Orou, utilizada como epígrafe, de autoria de Miriam Alves, escritora afrobrasileira, nascida em São Paulo, pertencente a uma geração de intelectuais, militantes do movimento negro e afrofeministas, que surge no Brasil a partir de 1978 que reflete o modo como as mulheres negras sentem, escrevem e percebem seus corpos. São olhares e vozes que rompem com um silenciamento imposto historicamente pela dóxa patriarcal. Elas investem e buscam inserir outras formas de escrita do corpo feminino negro, no atual contexto da literatura afrobrasileira, diferenciando o(s) seu(s) discurso(s) poético(s) das imagens, dos sentidos e das representações depreciativas (sutis, veladas ou explícitas) disseminadas em inúmeros textos da literatura nacional.

Em verso ou em prosa, desde o século XVII, os textos literários produzidos no Brasil, em diferentes contextos e momentos histórico-culturais, criaram modos de identificação para alteridade, cujo objetivo principal era enquadrar e classificar as mulheres negras, o corpo feminino negro com base em categorias fenotípicas e “escalas cromáticas”: a mulata, a negrinha, a pretinha, a moreninha, a crioula, entre outras3. Os corpos negros femininos foram inscritos nas relações de gênero estabelecidas pela dominação masculina, sendo submetidos às normatizações sociais, a um conjunto de valores morais e inúmeras tentativas de controle e disciplina de seus movimentos, de seus gestos e de suas atitudes: de sua aparência e de sua sexualidade4.

Cito como exemplo os sonetos atribuídos ao escritor Gregório de Matos dedicados à mulata Jelu; as características da personagem Vidinha, no romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Joaquim Manuel de Almeida (1854); as imagens construídas pelo narrador para as personagens afrodescendentes Eufêmia, Esméria e Lucinda, em As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão, de Joaquim Manuel de Macedo (1869); os poemas de Castro Alves (1868) nos quais o escritor se refere ao processo de escravização dos negros africanos em nosso país; a representação da personagem Rosa, em A Escrava Isaura, romance escrito por Bernardo Guimarães (1875); a figuração das personagens Rita baiana e Bertoleza, em O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1891); o conto intitulado Negrinha, de autoria de Monteiro Lobato (1918); o poema Essa Negra Fulô, de Jorge de Lima (1929); a imagem da mulher negra presente na poesia Irene, de Manuel Bandeira (1930); as personagens afrodescendentes do livro Casa-grande senzala, de Gilberto Freyre (1930); os Poemas da Negra, de Mário de Andrade (1929); e, finalmente, as incontáveis personagens das obras do escritor baiano Jorge Amado, entre elas, destaco o romance Gabriela, cravo e canela (1958), entre outras (os).

Foram e são romances, contos e poemas, cujas configurações construídas por escritores não negros, em sua maioria, expressam situações em que a malícia, a imoralidade, a permissividade são apresentadas como características inerentes ao comportamento moral da mulher negra, aparecendo no imaginário brasileiro como um corpo à disposição, pronto para consumo pela dominação masculina: um corpo possuidor de uma sexualidade voraz e pervertida, tratado como um corpo-produto e corpo-objeto.

Leda Maria Martins (1996: 112), em O Feminino corpo da negrura, observa que no plano ficcional a relação submissão e dominação das mulheres colocaram o corpo da mulher negra em um jogo de imagens e de símbolos, sob a ótica do “alheio e do alienante”, com base em uma lógica racial e sexista. Nas “cenas literárias nacionais”, Martins destaca que “os corpos femininos da negrura” aparecem sob as seguintes miragens da “dóxa masculina” e visão falocêntrica:

[...] a mãe preta, perfil da generosa mãe-de-leite, sempre sorridente e amável, sempre alimentando e ninando a criança branca; a empregada doméstica, uma espécie de força bruta assexuada, de rosto indiferenciado, na função reificada de objeto do lar; e a insinuante mulata, corpo erotizado em excesso, objeto dos desejos "ocultos" do homem branco. (Martins, 1996: 112).

Dessa perspectiva, Eduardo Assis Duarte (2009), em Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade, também identifica que as imagens da afrobrasileira repassada “à ficção e à poesia de inúmeros autores, expressam o exercício do poder da “dóxa patriarcal” herdada dos tempos coloniais” em diferentes épocas. Elas integram um arquivo, “ocupando o lugar” no que toca, em especial, “à representação estereotipada que une sensualidade e desrepressão”. Para Duarte, na literatura nacional, nota-se “uma semântica erótica obcecada pelos corpos de pele morena”, de pele mulata e negra, identificados como “desfrutá­veis”, reduzidos à “esfera carnal” ou como mão de obra servil. (Duarte, 2009: 6-7).

Com efeito, o corpo da mulher negra tornou-se, sob a ótica do discurso patriarcal e etnocêntrico, que se expressou nas vozes dos escritores nacionais, ao mesmo tempo “objeto de escárnio e de desejo”, sendo inscrito em duplo jogo de dominações e de marginalização. Codificado por um conjunto de afirmações e figurações quanto ao seu comportamento social, lido pela visão dominante como “imoral, lascivo e torpe”, as mulheres afrobrasileiras foram tratadas desde sempre como uma diferença sexual negativa para a ideologia patriarcal que precisava de coerção, controle e disciplina.

A emblemática afrofeminista e militante negra Lélia Gonzalez (1983), em seu trabalho pioneiro sobre Racismo e o Sexismo na cultura brasileira, denuncia como essas formas de representação das mulheres negras e de seus corpos, verificadas no soneto de Gregório de Matos e nas personagens do romance As vítimas-algozes: quadros da escravidão, entre outras, determinaram os lugares ocupados por elas na sociedade brasileira, através das relações de poder mantidas entre brancos e negros historicamente.

Para Gonzalez, nessas figurações mencionadas e em muitas outras, expressam-se “os modos de rejeição contra a negra e a mulher”, assim como os aspectos “simbólicos do racismo e do sexismo”, os quais devem ser pensados em termos de contextos e lugares, funções e papéis sociais “naturalmente” atribuídos à mulher negra como “a mucama, a mãe-preta, a mulata rebolante, atualizadas nas passistas do carnaval, sem esquecermo-nos da atual empregada doméstica”. (Gonzalez, 1983: 227).

Essas questões levantadas por Gonzalez são atualizadas nas reflexões propostas pela feminista e afroamericana bell hooks (1995)5. Embora as autoras pertençam a espaços geográficos diferentes, ambas compartilham experiências sociais e culturais semelhantes que se entrecruzam, visto que são mulheres, negras e intelectuais, e isso torna as linhas do tempo e de fronteiras quase que imperceptíveis. Para hooks, em decorrência dessas imagens produzidas pelo discurso dominante, o sexismo e o racismo agiram (agem) duplamente sobre a mulher negra, tentando produzir uma “iconografia de representação”, que “imprime na consciência cultural a ideia de que ela está neste planeta para servir aos outros e ser governada”.

Desde o processo de escravização, conforme define hooks, o corpo da mulher negra tem sido visto pelos ocidentais como o “símbolo quintessencial de uma presença feminina natural e orgânica, mais próxima da natureza animalística e primitiva”. (Hooks, 1995: 468). Por isso, a autora reitera:

[...] as negras têm sido historicamente vistas como encarnação de uma “perigosa” natureza feminina que deve ser governada. Mais do que qualquer mulher [...], as negras tem sido consideradas como só corpo sem mente. [...] a utilização de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era exemplificada prática da ideia e que as “mulheres desregradas” deviam ser controladas. (Hooks, 1995: 469).

Na ótica desses pensamentos coexistem afirmações sobre os perfis dirigidos às mulheres afrodescendentes, cujas marcas simbólicas de representação são elaboradas com base em categorias raciais, orientadas por uma visão masculina essencializada para classificá-las a partir de seu tom de pele. Com efeito, o corpo da mulher negra tornou-se, sob a ótica do discurso racial brasileiro, que se expressou nas vozes de alguns escritores, ao mesmo tempo objeto de escárnio e de desejo, sendo inscrito em duplo jogo de dominações e de marginalização. Codificado por um conjunto de afirmações e figurações quanto ao seu comportamento social, estas mulheres, seus corpos, sua sexualidade, sua sensualidade, foram tratados pela visão dominante e patriarcal como imoral, lascivo(a) e torpe.

Por outro lado, marcando o seu lugar de enunciação como sujeito e objeto de sua produção literária, evidenciando a sua identidade racial e de gênero, Miriam Alves é autora de um discurso poético que contesta as representações ficcionais já existentes sobre o corpo feminino negro, denunciando o silenciamento, a desumanização, a repressão e a invisibilização a que este foi submetido historicamente pela dominação masculina. Constituindo uma nova forma de escrita literária, a afrobrasileira, Alves delineia imagens de um corpo negro que se revestem de outros significados e sentidos positivos.

Em seus dizeres poéticos, Miriam Alves considera nesta outra forma de constituição corporal negra, as marcações sociais, históricas, estéticas e culturais que este traz consigo. São versos que projetam imagens de um corpo feminino negro carregando as dores do tempo (e de seu tempo), de onde ecoam as vozes de seus/suas antepassados (as) africanos (as), homens e mulheres que vivenciaram as agruras e as amarguras das experiências vivenciadas durante o escravismo colonial e a diáspora africana no Brasil.

Apresenta-se como um corpo feminino negro que pode agora, enfim, (re)composto na visão de Miriam Alves, solto, alforriado, vivenciar a sua liberdade individual. Corpo-território onde o ser-mulher-negra pode exercer e organizar a sua liberdade de transformação. Corpo feminino negro que produz questionamentos e constrói respostas as suas interpelações, inquietações e frustrações. Corpo feminino negro em luta que se movimenta e se contrapõe a todas as formas de opressão. Corpos femininos negros que guardam vontades reprimidas, que “falam de amor à vida e ao outro”, mas que também refletem sobre sua sexualidade. (Alves, 2010: 70).

 

Expressões do erotismo e sexualidade na poesia de Miriam Alves

Em Vivendo de amor, bell hooks (2006: 188) afirma que muitas mulheres negras sentem que em “suas vidas existe pouco ou nenhum amor”. E essa é uma de “nossas verdades privadas” e inquietações que “raramente discutimos em público”: uma realidade que é tão dolorosa em nós, da qual dificilmente, falamos à vontade sobre o assunto. Para a autora, um dos motivos que explica este nosso comportamento social é a herança deixada pelo sistema escravocrata e as divisões raciais estabelecidas entre os brancos e os/as afrodescendentes pelo racismo e pelo sexismo6. Por isso, “nós negros (as) temos sido profundamente feridos”:

[...] feridos até o coração, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e, consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. [...] Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. [...]. Mas, a vontade de amar tem representado um ato de resistência. (Hooks, 2006: 189, grifos meus).

Conforme sugere a intelectual afroamericana, juntos, a opressão patriarcal, o racismo e a violência, experimentados de todas as formas por nossas ancestrais africanas, colaboraram para afetar, distorcer e “impedir”, “embora não fosse impossível”, a capacidade que as mulheres afrodescendentes, na condição de escravas, tinham “de amar e de sentirem amadas”. De acordo com hooks, foram as mulheres que sofreram castigos físicos e “testemunharam seus filhos sendo vendidos” – “seus amantes – familiares – companheiros – amigos apanhando sem razão” – sendo punidos de “forma cruel”. Acrescento ainda que, nesse contexto, elas foram expostas à violência sexual e definidas pela cultura dominante como objetos sexuais, como corpos negros anormais e sexualizados em excesso, logo, elas não poderiam ter saído dessa conjuntura, nem entender aquilo que se chama de “amor”. (Hooks, 2006: 188).

As mulheres africanas e suas descendentes sabiam, por “experiência própria”, que enquanto o escravagismo estivesse presente em suas vidas, seria difícil “experimentar ou manter uma relação amorosa”. Contudo, após o término desse regime, alforriadas das trancas, dos colares de ferro, das amarras, “dos olhares dissolutos dos senhores brancos”, elas estavam ansiosas para experimentar “relações de intimidade, compromisso e paixão”, “fora dos limites antes estabelecidos”, já que esse sistema as condicionou “a conter e a reprimir” muitos de seus sentimentos – experiências amargas e dolorosas que deixaram marcas profundas para essa geração, assim como para as gerações posteriores, enraizando-se nos corações das mulheres negras sob a forma de “feridas emocionais”. (Hooks, 2006: 188-189).

Segundo hooks, no atual contexto, essas “feridas emocionais” estão sendo revertidas e curadas com doses altas de autoestima e autoafirmação. A autoestima e a afirmação do lugar étnico racial e de gênero têm possibilitado às mulheres negras cultivarem o seu “amor interior”. Dessa forma, elas estão superando os complexos de inferioridade e de incapacidade de sentir e de amar incutidos pelo racismo e pelo sexismo. Em uma “sociedade racista e machista”, conforme afirma a autora, nós, afrodescendentes, “não recebemos muito amor”, não percebemos a sua presença, assim como também não nos sentimos amados. Nós não aprendemos a “reconhecer que nossa vida interior também é importante”. (Hooks, 2006: 197).

Observo que Miriam Alves, por meio de sua escrita literária, tem procurado explorar esta vida interior mencionada por hooks. Alves tem buscado acessar um universo de emoções e sentimentos dos quais a mulher negra esteve privada historicamente em função, também, dos muitos preconceitos de que foi e é vítima. Ela tem descoberto as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais, utilizando-lhes no atual contexto da literatura afrobrasileira para empreender transformações significativas no que tange às representações do corpo feminino negro. Modificações marcadas por um olhar interno, que vai desvelando a sua intimidade, expondo uma nudez quase envergonhada, apropriando-se de um repertório linguístico e semântico, cujo conteúdo e sentidos das palavras desconstroem estigmas e estereótipos sexuais e raciais construídos nos discursos da tradição cultural hegemônica, conforme é possível fazer a leitura nos versos seguir:

Necessidade

Os lamentos soltos

Esfarrapam minhas vestes

Descobrem os meus pensamentos

Fico só

Emano ondas de calor

Endurecidos nos medos

Amolecidos nos abraços

Prontos para amar

(Alves, 1985:43, grifos meus).

Por meio da voz lírica, a mulher negra revela outras necessidades que emanam de seu corpo – amar e sentir prazer – sem, no entanto, repetir ou apelar para formas depreciativas de exposição de sua intimidade. Trata-se de um discurso feminino negro que traz à cena uma voz poética transbordando em desejos que são transmitidos no corpo por “ondas de calor”. Um corpo de onde emergem vontades secretas que vão substituindo os “lamentos soltos”, descobrindo-se em pensamentos novos, ainda que “endurecidos” por medos e receios, parecendo se recordar das marcas negativas deixadas pelo passado colonial. Apesar disso, das interdições sofridas no discurso da tradição cultural hegemônica, o corpo se diz pronto, finalmente pronto para viver sensações novas.

Falar da intimidade, do prazer erótico e da sexualidade sob as mais diferentes orientações e formas, aparece como temática importante no discurso ficcional de escritoras negras como Miriam Alves7. Discussões que perpassam e dizem respeito também às relações de gênero e raça, assim como as reflexões associadas às discussões sobre identidade, a autorrepresentação e a autoafirmação das mulheres negras brasileiras na primeira década do século XXI. São direitos que lhes foram negados, ao longo de sua história e trajetória social pela dóxa masculina que apoiada “no essencialismo, no naturalismo e no biologismo”, definiram seus corpos negros apenas como objetos receptivos, atraentes e disponíveis para a prática do sexo livre de compromisso. (Grosz, 2002: 62). Por esse motivo, as mulheres negras têm pensado “na sexualidade não apenas como uma questão pessoal”, mas, sobretudo, como uma “questão social e política” que precisa ser explorada e debatida em todos os âmbitos. (Louro, 2000: 7-8).

Conforme destaca Guacira Louro em Pedagogias da sexualidade, em nossa sociedade, os grupos sociais que ocuparam e ocupam as “posições centrais” ou hegemônicas (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.), àqueles que são considerados como “normais”, tiveram e “têm a possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros”. Eles “falam por si e também falam pelos outros” (e sobre os outros) e definem “normas”. Apresentam como padrão sua “própria estética, sua ética ou sua ciência e comportamento”. Produzem a sexualidade dita “normal”. Exercem um controle social e pedagógico sobre os corpos. E, dessa forma, “arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos” que ficam socialmente “marcados”. (Louro, 2000: 9).

Esses grupos sociais impuseram e impõem determinadas características que passam a ser reconhecidas como uma “marca” definidora de identidades, de comportamento e de personalidades. E, como essa “marca” está atravessada pelas “relações de poder”, os grupos sociais hegemônicos tentam apagar as diferenças, construindo “contornos demarcadores” das fronteiras entre aqueles que representam a norma (que estão em consonância com seus os “padrões culturais”, raciais, sociais e sexuais) – e aqueles (as) que ficam de fora dela, às suas margens. (Louro, 2000: 17). Exercitam uma “pedagogia da sexualidade e do gênero” e colocam em “ação várias tecnologias de governo”, a partir de mecanismos que foram utilizados pela ideologia patriarcal para naturalizar e generalizar o seu discurso normatizador e estigmatizador sobre funcionamento do corpo e a sexualidade da mulher negra. (Louro, 2000: 9-10).

De acordo com Arleen Dallery (1997: 64-65), no ensaio A Política da Escrita do Corpo: Écriture Féminine, através da escrita ou reescrita do corpo, a mulher tem a possibilidade de liberá-lo do discurso normatizador, da “objetificação e da fragmentação do desejo masculino”8. Escrever o/e sobre corpo “celebra as mulheres como sujeitos sexuais”, ao invés de “objetos” da dominação masculina. Celebra “o erotismo autônomo da mulher, separado de um modelo” projetado pelo desejo masculino, baseado em “necessidade, representação e falta”. Um erotismo que foi “simbolicamente” e historicamente “reprimido na linguagem e negado pela cultura patriarcal”.

Segundo Dallery, “as práticas discursivas masculinas ou falocêntricas” têm, ao longo da história, “moldado e demarcado o corpo da mulher para ela mesma”, sem que esta se reconheça nessas representações ou construções, exatamente como aconteceram as mulheres negras brasileiras. Consequentemente, falar do/ e sobre o corpo pressupõe um “corpo real” com suas construções anteriores que são desconstruídas pela mulher no processo de se “apropriar discursivamente de seu corpo”. Dessa forma, as mulheres projetam em sua escrita literária “significados” de um corpo “não mais para ser censurado”, mas, ao contrário, elas constroem representações de um corpo para ser “vivido materialmente” por ela mesma. (Dallery, 1997: 69-70).

Para a feminista francesa, a mulher delineia o corpo e dá significado àqueles “territórios corporais” que foram “mantidos ocultos”. Ao escrever o corpo, ela considera-o como um processo de reelaboração de si – como um ato de “escrever um novo texto”, “não com a pena fálica”, mas com o olhar feminino, inserindo “novas inscrições” em seu corpo, separadas das “codificações falocráticas”, o que, simultaneamente, contradiz essas codificações que produziram o seu corpo a “censura, o apagamento e sua repressão”. (Dallery, 1997: 70).

Observo que estas considerações feitas por Dallery ecoam no discurso poético de Miriam Alves, no que diz respeito, principalmente, a reapropriação da imagem e a reescritura do corpo feminino negro. Por meio de outras representações, Miriam Alves projeta em sua produção artística significados de um corpo “não mais para ser censurado” pela ideologia patriarcal. A autora rechaça as “marcas” sociais negativas, produzindo outras formas de dizer este corpo que contestam o “discurso normatizador da objetificação e da fragmentação do desejo masculino”, conforme interpreto a poesia a seguir:

Despudor

Arregacei as vestes

Deitei sem seu regaço

Sonhei meu nego tolo

Tolas coisas

O seu calor esquentando

O meu corpo

Cantei um aí surdo!!!

abafado

Nos meus ouvidos

Respiração entrecortada

O encontro a confirmação

Você em mim.

Suas mãos possuidoras

Calorosamente, despudoramente

Confirmam afirmam

AMOR

[...]

(grifos meus. p. 54).

O título do poema me remete às novas descobertas do corpo feminino negro feitas na escrita feminina de Miriam Alves. Sem timidez, sem medo e sem receio, desvestindo o seu corpo, o sujeito literário expõe questões internas como a sexualidade e a sensualidade da mulher negra, explicitando o seu ponto de vista sobre estes assuntos cercados de mitos e tabus. Mitos que representaram as mulheres afrodescendentes como “criaturas distorcidas”, “desumanizadas”, cujos corpos “diferenciados dos padrões brancos de beleza”, eram descritos como possuidores de uma “temida” atividade sexual, classificados pela dóxa masculina como “repulsiva, suja, obscena e apresentada como a menos aceitável” socialmente. (West, 1994: 101).

Atenta a estas reflexões, embora elas sejam enunciadas em outra realidade, desvencilhando-se dessas “codificações falocráticas”, de sua opressão, de sua censura, de sua repressão e do silêncio, o eu lírico busca desmitificar e desconstruir a sexualidade feminina negra pela “ótica do negativo, do desprezo e da aversão”, utilizando como recurso a imaginação poética. (West, 1994: 103). Através de um sonho, o olhar feminino negro nos descreve um encontro amoroso que culmina no ato sexual entre um casal, investindo em outras formas de representação de sua intimidade.

No texto, os movimentos iniciais dos corpos afloram desejos, fantasias, prazeres e sensações. A imaginação poética, o sonho, o desejo, o prazer sexual aparecem em função das novas necessidades do corpo feminino negro. Ao arregaçar as vestes, a nudez feminina negra fica à mostra e pode ser observada por todos os versos, em seus contornos mais íntimos e delicados. Uma nudez feminina que reúne os “pensamentos soltos” e as “coisas tolas”, preenchendo-se por um conjunto de emoções gradativas e sutis que, no ritmo da aproximação dos corpos, vai tomando a proporções de curvas mais ousadas: “[...] você em mim, suas mãos possuidoras, calorosamente, despudoramente”. Uma nudez feminina que ressurge no discurso literário de Miriam Alves intrinsecamente ligada à sexualidade, ao prazer sexual e ao desejo do sujeito da escrita que está interessado em valorizar outras formas de representação do corpo feminino negro.

Logo, é preciso ressaltar que neste processo de reconstrução, o sexo aparece no poema como uma ação compartilhada que se concretiza pelo desejo dos dois, pela cumplicidade dos corpos e pelo vínculo afetivo que une o casal. Trata-se de uma visão sobre as mulheres negras que desconstrói e transgride os discursos literários nacionais sexistas, concernentes ao comportamento obsceno do corpo negro, à sua sexualidade infrene, voraz e submissa. A transgressão no discurso pode ser observada no posicionamento da voz poética que coloca a mulher e homem no mesmo nível. Ao invés de estar subjugada ao “desejo masculino”, ela quer e ele consente, em um movimento de completude dos corpos. Isto permite ao eu lírico celebrar a sua autonomia na busca pela realização de seus desejos.

E é neste celebrar a autonomia feminina que Miriam Alves redescobre a sexualidade da mulher negra, revestindo a sua linguagem poética por um erotismo que não se constitui por expressões negativas, estigmatizantes ou por termos vulgares relacionados à cor da pele negra, mas sim, por um erotismo, a meu ver, canalizado por imagens e por metáforas que reabre “territórios” do corpo feminino negro que ficaram “ocultos”, reprimidos e silenciados. (Dallery, 1997: 70). É um erotismo que se expressa junto ao sexo, ao amor, ao carinho, à sensualidade, à ternura, ao prazer erótico, ao lirismo e à emotividade. Erotismo que se revela na escrita do texto por meio de toques, sensações, movimentos e olhares, os quais propiciam a união entre os corpos, segundo leio: despir o corpo, deitar no colo, dizer palavras carinhosas, procurar aconchego, sentir o calor esquentando... cantar um “surdo abafado”, o som da “respiração entrecortada”, ao encontro das “mãos possuidoras”.

Em As Incuráveis feridas da natureza feminina, Lúcia Castello Branco (1989: 90-93) afirma que o erotismo surge como uma das questões mais “delicadas e movediças que entram em jogo quando se fala da escrita feminina”. Nos estudos de gênero, acredita-se que a linguagem feminina seja “essencialmente erótica ou erotizada”. Por outro lado, defende-se que o erotismo na escrita da mulher é sempre uma “pulsão angustiante e corajosa”, ao levar o olhar feminino em direção a um “universo desconhecido” e incógnito.

Por essa ótica de pensamento, é possível entender que a capacidade de “erotizar o discurso ou de escrever o corpo” com esse conteúdo pode ser lida como um ato – uma ação de entrega total da mulher – como uma característica “marcante da escrita feminina”. De acordo com Branco, a escrita feminina, ao penetrar esse universo “desconhecido”, “invade um terreno que não lhe pertencia”: “o da expressão de uma sexualidade sem disfarces e sem sublimações”, o que tem possibilitado às mulheres de modo geral, “o uso e o abuso do próprio corpo”. (Branco, 1989: 101). No caso específico das mulheres negras, após tantos séculos de prazeres “abafados”, sublimados e estigmatizações, elas podem, finalmente, expressar a sua sexualidade em diferentes contornos:

Confluência das coxas

Encontro pleno da geometria

Há um triângulo isóscele

triângulo isóscele

Triângulo isóscele pede

isóscele padê

pode

pede posse

 

(padê)

(Alves, 1993, CN 17: 50). 9

O discurso poético-erótico de Miriam Alves constitui uma nova geometria do desejo feminino negro composto por linhas, traços, retas, pontos, ângulos, simetria, sonoridade e aspectos ligados à religiosidade de matriz africana que combinados no texto, promovem a “confluência” dos corpos (das coxas). Esta representação do corpo feminino negro, elaborada em linguagem matemática, religiosa e ficcional, objetiva-se a apresentar as estratégias variadas de que a escrita feminina negra, na atualidade, tem se utilizado para desconstruir os modos de figuração das mulheres afrodescendentes dentro da tradição cultural hegemônica. Mostra o empenho de Miriam Alves e de outras autoras negras de seu tempo, a partir de outro panorama literário, o afrobrasileiro, em estabelecer outras e as mais abrangentes formas de escrever este corpo, valendo-se de um conjunto de signos, símbolos e figuras colocados no mundo, nos cosmos, na vida e na natureza, os quais oferecerem múltiplos sentidos e significações repletas de lirismo, paixão, prazer erótico, gozo e orgasmo.

Na poesia acima, a voz enunciadora emprega, na construção dos versos, elementos sonoros de criação e de construção sintática que possibilitam à mulher negra desfrutar no corpo o prazer erótico do desejo sexual, do gozo e do orgasmo. A anáfora, usada pelo eu lírico no início de cada linha poética, garante a repetição da expressão “triângulo isóscele”. A repetição, tanto da expressão, quanto do significante “isósceles”, produz o efeito erótico esperado pelo discurso poético. Catalisa os sussurros, a respiração, a emoção, a transpiração e a fricção dos corpos que se movimentam em simetria. A aliteração em /p/ libera os sons corporais que mostram a harmonia desse encontro amoroso: “pede, pode, posse, padê”. E, no modo como estão alinhadas as palavras na última estrofe, representando um triângulo ou uma encruzilhada, é possível visualizar os corpos dispostos por inteiro (simbolicamente) em todos os ângulos, medidas e dimensões.

Portanto, da figura geométrica ao discurso erótico-poético, do desejo feminino, ao orgasmo e o prazer sexual, Miriam Alves não se afasta de seus referenciais identitários e afroreligiosos. Ao contrário, eles são sempre invocados nos textos da escritora como elementos culturais importantes que marcam o seu lugar de fala e pertencimento étnico racial da poetisa. A presença do termo “padê” nos remete a uma cerimônia-ritual que antecede as festas de candomblé de nação iorubana “para invocação de todos os orixás e ancestrais” feitas para Exu. (Lopes, 2004: 506). Trata-se de uma “oferta conciliatória” que é realizada para “apaziguar” a divindade, pedindo-lhe que seja “intermediário e intérprete”, “embaixador dos mortais”10. (Bastide, 2004: 221)11.

Exu é considerado como a “força motora, geradora, criativa e onipresente”, cuja existência se faz, “nos limites, na limiaridade e nas múltiplas caracterizações”. É o “mestre das encruzilhadas e das aberturas, conhecedor dos caminhos, início da vida, mensageiro da palavra e da escrita”12. (Barbosa, 2000: 155). É considerado como o “senhor dos caminhos”, pois só ele tem o direito de ligar entre si “os conceitos diretores e as categorias organizatórias do mundo”. (Bastide, 2004: 184). O seu elemento na natureza é o “fogo” que na simbologia mundial está associada ao “ardor da sexualidade”. A sensualidade e a sexualidade atribuída a esta divindade nas religiões de matriz africana, principalmente, em sua versão feminina, são consideradas como “símbolo da fecundação e vida”, ligado ao “princípio criador, à invenção”, à reprodução humana e ao poder da sedução. (Barbosa, 2000: 156).

Se escrever o corpo, erotizando o discurso literário, refletindo sobre a sexualidade “sem sublimações ou disfarces”, faz a mulher penetrar um “universo desconhecido e incógnito”, “invadindo um terreno que não lhe pertencia”, e que ainda não lhe pertence, segundo Branco, Miriam Alves, por meio da palavra-ritual, oferece um “padê” a Exu, reverenciando a energia vital, força cósmica e criadora do mensageiro dos orixás, pedindo licença e proteção para abrir os seus caminhos literários na reescrita do corpo feminino negro. Caminhos repletos de encruzilhadas que levam a mulher negra a outras formas de representação ficcional e significados novos, no que se refere à sua sexualidade e sensualidade pela via da ruptura e da reinvenção poética:

Íntimo véu

Arregaço o ventre
corcoveio no ar
gemo
Você?
tira o meu último véu.

(Alves, 1986: 60).

Na escrita do corpo feita por Miriam Alves, embalada pelo axé e pela fé nos orixás, promovendo o processo de recriação de imagens, a voz poética “libera” o corpo feminino negro para usufruir, definitivamente, de uma rede infinita de prazeres sexuais e para vivenciar as suas próprias fantasias e fetiches, desafiando, mais uma vez, a ordem social controladora sobre si. Uma escrita feminina afrobrasileira que promove o autoconhecimento, a retomada de consciência do próprio corpo e de sua relação com o desejo sexual, colocando a mulher negra como o sujeito na cena erótica, e não mais como objeto, o que colabora para “demolir” princípios patriarcais arraigados.

Nas linhas do texto, repletas de libido e erotismo, podemos flagrar através do uso da expressão verbal “gemer”, o momento exato da explosão do gozo e o instante da fruição do orgasmo feminino – do toque naquelas zonas do corpo que provocam a excitação sexual no sujeito poético, as chamadas zonas erógenas: “ouvidos, pernas, coxas, ventre, rosto e pele”. Assim, os véus (as máscaras sociais alicerçadas em valores falocêntricos) que encobrem este corpo são retirados completamente para que o eu lírico possa desfrutar estas sensações corporais com mais liberdade e vivenciar a experiência erótica extraordinária do prazer sexual sem limites ou demarcações sociais negativas. O poema torna-se o lugar da encenação e da enunciação plena do desejo, de infinitas descobertas do corpo que se revelam por meio de uma linguagem poética cheia de sedução, ritmos, ecos, sons, dissonâncias e ressonâncias.

Em Corpo e Sexualidade, Jeffrey Weeks (2000: 25) explica que sexualidade é uma “construção social”, uma “invenção histórica”. O sentido e o peso que lhe atribuímos são, entretanto, “modelados em situações sociais concretas”, e têm “profundas implicações para nossa compreensão do corpo, do sexo e de nossas identidades que precisam ser exploradas”. Por outro lado, o autor lembra que a sexualidade tem tanto a ver com “as nossas crenças, identidades, ideologias e imaginações”, quanto com “o nosso corpo físico”. (Weeks, 2000: 27-28). A sexualidade é construída como um “corpo de conhecimento que modela as formas como pensamos e conhecemos o nosso corpo”. Trata-se de uma “preocupação individual”, assim como de uma “questão claramente crítica e política”, exposta “às relações de poder”, conforme também explicita em seus argumentos Guacira Louro (2000).

De acordo com Michel Foucault (1988: 100-101), em A História da Sexualidade: a vontade de saber, é o nome que se pode dar a um “dispositivo histórico”: não a uma “realidade subterrânea que se apreende com dificuldade”13. É uma “invenção social” que se constitui historicamente por múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que “regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”. (Louro, 2000: 6). É uma “grande rede de superfície” em que a “estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns a outros”. Nas relações de poder, a sexualidade “não é elemento rígido”, mas um dos dotados da maior “instrumentalidade”. Ela é utilizável no maior número de “manobras” e pode servir de apoio, “de articulação às mais variadas estratégias”. (Foucault, 1988: 98).

Citando algumas dessas estratégias mencionadas por Foucault, Weeks vai afirmar que a sexualidade envolve questões relacionadas ao gênero, à classe e à raça. As categorias gênero, classe e raça são “forças sociais” que interferem, modelam, determinam e agem diretamente sobre a sexualidade. Conforme relembra o autor, “as ideologias sexuais da última parte do século XIX apresentavam a pessoa negra como o feroz selvagem” e primitivo, dotada de uma hipersexualidade – “àquela situada mais abaixo, na escala evolutiva, do que a branca: mais próxima das origens da raça humana; isto é, mais próxima da natureza”. (Weeks, 2000: 42).

No atual contexto, ainda que estas forças sociais permaneçam ativas, embora tenham apenas remodelado os seus discursos, construído outras formas de marcação e identificação, além de continuarem agindo para regular a sexualidade de determinados grupos e sujeitos sociais, tomando sempre como parâmetro “o homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão” – é importante lembrar o quanto as mulheres – como as mulheres negras - têm sido ativas participantes na modelação de sua própria definição de sua sexualidade e necessidades. Um dos mecanismos utilizados por elas é o de apropriarem-se discursivamente de seu próprio corpo, como um direito que têm de falar sobre suas próprias vidas, da satisfação de seus desejos e prazeres, de sentir dor e amar, da felicidade: de enfatizar a sua diferença e expressar a sua sexualidade nas variadas formas de expressão, possibilidades e cruzamentos:

Passos ao mar

[...]

Os pés alisando a areia molhada

arrepiando o corpo a cada passo

Os passos dirigindo-se às águas salgadas

O sol a água banhado-me

[...]

Razão de sentir um único desejo

Desejo adulto forte

bom solto

quase completo

O rosto sorrindo

Esvaindo-se prazerosamente

sensação

Areia, mulher, luar, sorriso

Completando o inevitável

Natureza seguindo seu curso

Mar

Mulher cumprindo o seu curso

Vida

(grifos meus. p 37).

A natureza contemplada é a fonte de inspiração da poetisa afrobrasileira: “areia molhada, luar, sol, mar, as águas salgadas”. Ela é representada como uma realidade transformadora, fecunda e inesgotável que, por seu intermédio, a vida adquire exuberância, beleza e plenitude. A sua força e potência faz movimentar a vida, o corpo e o universo. Mulher e Mar. Mulher e Natureza. Mulher Corpo Natureza. Através da recriação de imagens, a voz lírica resgata esse elo sagrado e espiritual. A partir desta comunhão, as sensações corpóreas, se expressam nas linhas do texto em linguagem sinestésica e melodiosa, propagando-se de modo suave, delicado e sensual.

São sensações físicas que se disseminam por todos os versos, as quais revelam a emoção e o êxtase místico da fusão do corpo feminino negro com os elementos da natureza: “[...] os pés alisando a areia molhada [...] o rosto sorrindo [...] o sol a água banhado-me [...] prazerosamente [...] sensação [...] a vida cumprindo o seu curso”. Os pés alisando a areia molhada, o rosto feminino sorrindo, o desejo adulto vindo forte à tona, as águas banhando o corpo, deixando aflorar a sensualidade da mulher negra. Uma sensualidade feminina restituída e reconfigurada no discurso ficcional de Miriam Alves, que se une a beleza da terra, da natureza, iluminada pela luz do sol e da lua, abençoada pelas águas salgadas do mar.

Em Passos ao mar, cada um dos três elementos da natureza evocados na poesia (terra, fogo, água) possui uma simbologia particular. Simbolizam a sutileza do momento vivido pelo sujeito poético feminino negro. A presença da terra (areia) representa a materialidade e a firmeza das transformações duradoras obtidas pelas mulheres negras na atualidade. O fogo (sol) é aquele que motiva a transformação da matéria, fonte de luz, de energia, de calor e vida. As águas estão interligadas às ideias de origem da vida, mas, sobretudo, de renascimento do corpo. É o caminho da purificação e da metamorfose do Ser. Da cura de “feridas emocionais”, das marcas de discriminação gênero e preconceito racial: das dores profundas que foram enraizadas nos corações e nos corpos de gente preta.

Finalmente, nas cinco poesias analisadas, o corpo feminino negro, o prazer sexual, o erotismo e a sexualidade se constituem como elementos centrais. A partir de outra forma de olhar, Miriam Alves reescreve a sexualidade da mulher negra – ao passo que desconstrói estereótipos sexuais e raciais – exorciza mitos e tabus – preenchendo lacunas e vazios. Alves escreve o desejo. Explora imagens literárias que expõe a nudez feminina negra sem apelar para uma forma de dizer vulgar e pejorativa. Fala do gozo. Grafa o gozo que se insinua no corpo dos versos.

Contrariando os discursos hegemônicos, o ato sexual se realiza em nome do amor. O erotismo se dá em nome do amor. O discurso erótico desvenda o sexo ora subentendido, ora explícito. Nele, a escritora Miriam Alves faz emergir a voz de um corpo-mulher que se conecta ao cosmos, a vida pulsante da natureza, a aspectos afroreligiosos e identitários de matrizes africanas. Uma voz feminina revestida de lirismo, sensualidade, sonoridade e sedução, que compõem e recompõem significados novos ao corpo feminino negro.

 

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1As reflexões apresentadas neste artigo foram desenvolvidas durante a elaboração da dissertação de mestrado intitulada Composições e Recomposições: o corpo feminino negro na poesia de Miriam Alves. (Sales, 2011).

2ALVES, Miriam. In: Cadernos Negro 31. São Paulo: Quilombhoje, 2008.

3Destaco as terminologias utilizadas por Lídia Avelar Estanislau, em Feminino Plural: negras no Brasil, artigo publicado no livro Brasil Afrobrasileiro, organizado por Maria Nazareth Fonseca (2000). Neste texto, a autora apresenta retratos de mulheres negras que “ultrapassaram as bordas do silêncio”, mostrando a efetiva participação da mulher negra na formação da sociedade brasileira”.

4Utilizo o termo “dominação masculina” em consonância com o pensamento de Pierre Bourdieu (1999), em A dominação masculina. Sem mencionar o corpo da mulher negra, mas refletindo sobre as questões de gênero, o autor considera que o corpo feminino se tornou alvo de mecanismos ideológicos. Segundo Bourdieu, a “dóxa masculina” encontrou terreno fértil na articulação mulher, violência e poder, utilizando-se de diferentes estratégias para aplicar “coerções e disciplinamentos” aos seus corpos.

5bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora afroamericana, que escolheu esse apelido para assinar suas obras como uma forma de homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. Grafo o seu nome em letras minúsculas, atendendo ao pedido da própria autora que afirma o seguinte: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”.

6A autora discorre sobre a realidade das mulheres afroamericanas. Embora construa suas reflexões em um lugar geograficamente distante, procuro aqui estabelecer uma aproximação com a realidade vivenciada pelas mulheres negras brasileiras, pensando que essa situação descrita pela autora é comum a todos nós, independente do espaço onde nos localizamos.

7Refiro-me à sexualidade como uma necessidade da mulher negra que não está, necessariamente, associada ao objeto fálico pertencente aos homens.

8Publicado no livro organizado por Alison Jaggar e Susan Bordo, Gênero, Corpo e Conhecimento. Écriture féminine trata-se de uma teoria desenvolvida no contexto do feminismo francês, enraizado em uma tradição da filosofia, da linguística e da psicanálise europeias, a qual situa o feminino como aquilo que é “reprimido, mal representado nos discursos da cultura e do pensamento ocidentais”. Com base na alteridade radical da diferença sexual da mulher, invoca-se uma nova e manifesta-se a escrita ou linguagem sobre o corpo feminino: écriture féminine, parler-femme. No referido ensaio, a autora explora a recente “reescritura” do corpo pelo feminismo francês e sua ênfase na potencialmente “radical alteridade” da sexualidade e do prazer das mulheres como fontes de novas metáforas não falocráticas. (Dallery, 1997: 62).

9 O título do poema é Geometria Bidimensional.

10Exu é o mercúrio africano, o intermediário necessário entre o homem e o sobrenatural, o intérprete que conhece, ao mesmo tempo, a língua dos mortais e a do Orixá. Essa informação está disponível no livro de BASTIDE, Roger. Candomblé da Bahia (rito nagô). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961.

11Analisando a presença de Exu na poesia afrobrasileira, o escritor negro Luiz da Silva, o Cuti, no artigo Poesia erótica nos Cadernos Negros (2000: 274) considera que a presença do orixá mensageiro é o princípio dinâmico que rege o universo, além de carregar o emblema da virilidade. Na poesia negra, “Exu atua como impulso libertário, dando a relação sexual seu tom combativo”. “É o prazer em sua dimensão maior o que pretendem os afrodescendentes”.

12Refiro-me ao artigo intitulado Exu: verbo-devoluto, escrito por Maria José Somerlate Barbosa, publicado no livro Brasil Afrobrasileiro, organizado por Maria Nazareth Fonseca.

 

13O dispositivo é um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas.

* Professora de Literatura brasileira e afro-brasileira, Universidade Aberta do Brasil-UAB.

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