Geni Guimarães, uma escritora negra
Daniela Guedes*
Em sua apresentação a Leite do peito, Ricardo Ramos afirma que Geni Guimarães, “mais que um acréscimo, nos traz inegável ampliação, em sua prosa de múltiplas aberturas. Na visão feminina, indispensável. No acento popular, tão pessoal quanto impressivo. Nos temas em baixo-relevo, de povo, agravado pelo dia-a-dia rural. Afinal em termos de linguagem, na fala que flui, com a dignidade da oratura.”
Leite do peito é um livro que aponta várias manifestações de racismo e as dificuldades enfrentadas pelos negros devido à cor da pele. Logo nas primeiras páginas, a pequena protagonista começa a perceber que ser negro é ser diferente: ela conclui que não precisaria chamar seu irmãozinho de Jesus, já que o menino era negro. Em outra cena, passada na escola, a personagem dá-se conta do gesto de nojo de sua professora que, sendo beijada pela menina negra, apressa-se em rapidamente enxugar o rosto. Mais adiante, a autora toca em um ponto crucial: a criança se decepciona ao observar que a história dos escravos apresentada pela instituição escolar, não coincide com a versão contada pela Vó Rosária. A narrativa dos contos que compõem Leite do peito segue esse acento de dor e de rememoração crítica do passado da criança. O livro marca-se, fortemente, pelo tom memorialístico que caracteriza certa narrativa feminina afrodescendente no Brasil, a exemplo de Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus. Trata-se de uma ficção que revira as entranhas de uma memória coletiva e individual, a fim de trazer a público situações de preconceito e opressão racial, presentes no cotidiano dos afro-brasileiros.
Já o volume Balé das emoções é uma coletânea de poemas cujo nome não poderia ser mais adequado. Como em uma dança, a autora passeia pelos vários tons e ritmos que a emoção pode ter: a dor, o prazer, a revolta, o amor... Mas o destaque desse livro é de fato a consciência do ser negro – a reivindicação da igualdade dentro de um mundo excludente. Há nos versos um grito revelador da realidade do preconceito que merece ser ouvido:
Quando me vem oferecer uísque
aproveita o dedo que segura a taça
e me indica a porta, disfarçadamente.
Eu consciente
do direito a festas,
(inclusive a comemorada no mês de maio)
bebo. E não saio.
(Balé das emoções, p.54)
Os versos acima denunciam a elite, que enquanto segura a taça de uísque, em um gesto de aparente delicadeza, aponta a porta de saída, num ato de negação ao direito de socialização do negro. Um outro poema de Geni Guimarães reforça o pedido de justiça, que percebemos ao ler os versos a seguir:
Não sou racista.
Sou doída, é verdade,
tenho choros, confesso.
Não vos alerto por represália
nem vos cobro meus direitos por vingança.
Só quero,
banir de nossos peitos
esta gosma hereditária e triste
que muito me magoa
e tanto te envergonha.
(Balé das emoções, p.74)
O poema se enquadra no conjunto de textos marcados pela militância em torno da política da cor, umas das marcas registradas da literatura afro-brasileira das duas últimas décadas do século XX. O ímpeto de protesto contra o racismo, predominante nesta produção, inscreve a presença de um eu-lírico que se assume enquanto sujeito afro-brasileiro e que coloca a questão identitária como crucial para o desenvolvimento de seu projeto poético.
Os poemas de Balé das emoções são entremeados por fotos em preto e branco, nas quais sobressaem closes de rostos e corpos negros em diversas expressões, numa manifestação intersemiótica em que a imagem dialoga com a poesia. Nas ilustrações, esse eu negro se mostra tanto individualmente como em grupo, encenando movimentos de dança e aproximação. Seguindo o tom dos poemas, surgem imagens individuais onde predominam as feições de dor e desespero. Já nas imagens de grupo, nota-se o empenho em retratar posturas amorosas, de união e disposição para a resistência. Assim, as fotos entremeadas ao discurso poético enfatizam a postura do eu-lírico em manifestar-se também numa faceta coletiva, fato que caracteriza o projeto literário fundado na afirmação de uma identidade social afro-brasileira.
Referências
GUIMARÃES, Geni Mariano. Leite do Peito (anteriormente A cor da ternura). 3 ed. Revista e ampliada. Belo Horizonte: Mazza, 2001.
GUIMARÃES, Geni Mariano. Balé das emoções. Barra Bonita: Evergraf, s/d.
RAMOS, Ricardo. Apresentação. Leite do peito. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988.
* Daniela Guedes é Graduada em Letras pela UFMG.