Questões da afro-brasilidade nos poemas de Cyana Leahy-Dios
Eduarda Rodrigues Costa*
Cyana Leahy é uma intelectual que se destaca no circuito literário contemporâneo, contribuindo tanto com a escrita poética e ficcional, quanto pela via do trabalho acadêmico, no que se refere ao ensino de literatura. Neste sentido, torna-se relevante atentar para a situação em que seu texto é produzido, em especial o poético. Para esse trabalho, foi escolhido o volume Seminovos em bom estado, obra de 2003 que reúne uma seleção de poemas seus publicados entre 1989 e 2001. Nestes textos, é possível observar uma voz feminina a relatar sua percepção de mundo traduzida num olhar para as coisas cotidianas dotado de lirismo, humor e mesmo melancolia.
Apesar de o texto estar marcado por uma voz poética marcadamente feminina, questionamentos de outra natureza são levantados por seus versos. Neste trabalho, pretende-se discutir outro tópico também abordado e não menos relevante na obra da autora: a condição a que o afro-descendente é submetido em nosso país. A forma com que a poeta trata tal questão denuncia o modo cético com que percebe as relações interétnicas na atualidade, identificando-se com o oprimido, sem, contudo, assumir uma postura de comiseração e nem mesmo de militância. Sua denúncia perpassa pela sensibilização do leitor a partir da exposição de uma realidade crua e objetiva. No poema “cena rodoviária”, a partir de uma imagem urbana e corriqueira, é possível notar o caráter efêmero do relacionamento entre um negro e uma branca demonstrado pela autora:
Em se tratando de casais interétnicos, ao contrário do que se costuma encontrar na literatura, no poema acima é um homem negro e uma mulher branca que compõem o dueto e não o inverso. Além disso, nele, a figura feminina é quem desempenha a ação do flerte. Essa talvez não seja a questão mais relevante no poema, quando se nota uma maior identificação do eu lírico com o elemento masculino, que por sua vez está colocado na posição de “outro”, por ser negro e pobre.
Da mesma forma como a mulher branca se aproxima, ela se afasta “sem olhar para trás”, enquanto “o moço preto bonito/ suspira/ aprende e/ aprende”. O sujeito lamenta-se por ter sido deixado, e seu aprendizado pode ser lido como a conclusão de que seria muitas outras vezes descartado por mulheres brancas, devido a sua cor. No poema, a figura feminina, interessada na excentricidade do “moço preto bonito”, aproxima-se dele a fim de ter um envolvimento casual e nada mais. O poema expõe o tratamento do negro como algo exótico, que é desfrutado pela mulher branca como objeto de desejo apenas.
Na mesma linha cética, em “resposta ao amigo” é feita uma crítica ao conformismo, àqueles que acreditam que a afro-descendência é respeitada, quando é, no máximo, tolerada:
No poema acima, o eu lírico questiona a construção da identidade étnica a partir da negação da cor, do branqueamento por dentro e por fora. Apesar da pele ser negra, a alma é branca e a tez passa a refletir esta postura. A alma pálida do interlocutor, ou seja, sem cor, pode ser entendida como sinônimo da não identidade. Ele é um ser alienado que não percebe o quanto ainda é colonizado e nem a maneira estereotipada com que é visto pelo outro. O eu lírico ressalta em que mãos está, ou melhor, permanece o poder e lembra ao amigo que as marcas sofridas pelo povo negro podem estar escondidas, porém há cicatrizes guardadas pela história. A partir de um trocadilho feito com os ditos populares “Nem tudo que reluz é ouro” e “O peixe morre pela boca”, o eu poético alerta o interlocutor para que este busque enxergar além das aparências e passe a questionar o modo como é aceito na sociedade.
Essa atmosfera de descrença é também encontrada em “banzo”, poema que traz uma reflexão do sujeito que é levado a deixar seu lugar de origem e obrigado a conviver em terra alheia. O tema negro, evidenciado logo no título, permanece ao longo do poema, de modo que o exílio já mencionado representaria a mesma espécie de atrocidade que os africanos sofreram no Brasil, durante o período escravocrata. Segundo o discurso do eu lírico, o exilado não deve se sujeitar às privações a que é submetido e nem aceitar como verdade a palavra do outro em detrimento da sua. No poema, o eu lírico chama os desterrados à reflexão:
A metáfora do mar aparece na primeira estrofe como um meio pelo qual se desloca e, mais adiante, ela passa a representar o oposto: assume o caráter de barreira, denotando a impossibilidade da transposição. Na segunda estrofe, o poema incorpora parodicamente o tema da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, transformada pela poeta em “banzo triste”: manifestação do desejo de retorno
à terra natal. Para o eu lírico, o estado de extrema melancolia em que fica prostrado o exilado não pode ser expresso em palavras, mas somente pelo canto que deveria ser levado aos céus por uma nuvem. Porém, na ilha em que se encontra o povo negro, o céu de chumbo impede que esta mensagem chegue ao seu destino. Resta, então, o lamento.
Outro signo carregado de metaforicidade já identificado no poema e que reaparece no último trecho é a ilha, que denota o lugar do isolamento, das privações e da falta de perspectivas. Nela, até o céu aparece como algo hostil, pois é comparado ao chumbo, oferecendo uma imagem de horizonte fechado, tomado por nuvens carregadas, abortando qualquer comunicação com algo mais distante.
Em “senhores, eu vi” permanece esse sentimento de desolação do sujeito com a realidade que o circunda:
O trecho acima descreve a figura de um homem negro faminto e perturbado mentalmente, de modo que este pode funcionar como metáfora para a grande população de rua, composta majoritariamente por afro-descendentes. Porém, esta não parece ser a única discussão presente no texto. O sujeito que observa o mendigo também transmite suas impressões sobre o que vê e parece falar por si e pelos outros que viam a cena. Estes “bem alimentados” não se mostram sensibilizados com a situação, mas apenas preocupados com a própria segurança, e consideram tal sujeito como um “alien”, ou seja, um ser de outra realidade, um não humano, “um semi homem imundo”. Aflora, então, a crítica aos que não se solidarizam com o outro, àqueles que preferem ficar alheios aos problemas sociais, encarando-os como elemento externo a sua realidade.
Em outro momento, no poema “trilogia ensandecida” o eu lírico se apropria da história até então instituída de Branca de Neve e a recria com uma leitura diversa:
A voz que se apreende no último excerto parece querer desmontar a idealização de pureza e bondade que compõem a personagem da clássica história infantil. Ou melhor, pretende-se desvincular tais características do adjetivo “branca”, de modo que o mesmo não necessariamente precisa estar associado a uma significação positiva. Essa necessidade de reversão de valores, identificada no trecho acima, revela a preocupação da autora em trazer para sua poesia uma discussão bastante pertinente: a necessidade de problematizar estereótipos como os que associam o “branco” a um campo semântico positivo e o “negro” ao extremo oposto.
Ao perceber as inflexões levantadas ao longo do comentário, entende-se a relevância do trabalho poético da autora para a discussão de assuntos que a sociedade insiste em manter silenciados. Seus textos ilustram muito bem o preconceito étnico e o lugar marginal a que estão relegados os afro-descendentes, além de, a certa altura, retratar a necessidade de reflexão crítica por parte desta população que muitas vezes renega sua identidade étnica. É pertinente afirmar que esse fundo ideológico está relacionado ao papel de educadora que Cyana Leahy-Dios também executa, quando se pensa na literatura como importante formadora de leitores mais críticos e conscientes.
Referência
LEAHY-DIOS, Cyana. Seminovos em bom estado. Rio de Janeiro: CL Edições, 2003.
* Graduada em Letras pela UFMG.