Cristiane Sobral: uma escrita comprometida com o ser humano

Michelly Pereira*

Cristiane Sobral é considerada revelação na área literária. Sua poesia trata, sobretudo, da posição feminina na sociedade atual. Mostra uma mulher que sonha, mas é consciente da dominação e dos valores sociais aos quais está submetida. Para a autora, “palavras são centelhas de libertação” (Cadernos Negros 25, p. 45), por isso o eu lírico é livre na medida em que sua voz se sobrepõe às convenções sociais, como percebemos em seu poema “Estrangeira”:

[...]
Resolvo conjugar o Eu em voz alta.
Sem papai, igreja, nem sistema.
Sem o menor dilema.
Nesta vida tão gostosa.
(Cadernos Negros 23, p. 20).

O título do poema possui significado ambíguo. Primeiramente pode estar sugerindo o fato de a mulher ser estrangeira porque está em outra cidade, sendo assim deslocada de seu lugar de origem. Todavia, após a leitura do poema, o título nos remete muito mais a alguém que está se assumindo ao subverter valores sociais. Alguém que se coloca em primeira pessoa e deixa de se sentir estranha a partir do momento em que ultrapassa as imposições machistas e religiosas. A mulher passa a ser livre, assume-se através da liberação de seus desejos e vontades.

Em seu poema “Paradoxo”, Sobral evidencia de forma significativa, através da bipolaridade dia/noite, a ambiguidade da natureza feminina representada pelos diversos papéis que a mulher vivencia:

[...]
Durante o dia preservo a rigidez dos meus costumes.
O comprimento sóbrio das minhas saias.
A retidão dos gestos.
Sob a luz do sol assino todos os relatórios.
Discurso em seminários.
À noite quero sexo e cachos de uva.
Preservativos importados e suítes presidenciais.
Hora marcada, tempo hábil. Prazer.
Sob a luz da lua quero encher a boca de esperma
e de palavrões.
Gozar tranquila desta minha paradoxal posição.
[...]
(Cadernos Negros 23, p. 17).

A mulher refletida no poema vive a situação instituída como paradoxal em nossa sociedade, ela é mãe/esposa e ao mesmo tempo “liberada” porque assume seus desejos e sua sexualidade, o que, segundo valores patriarcais, é condenável. Durante o dia, suas atitudes são regidas pelas normas sociais. À noite, ocorre a liberação através da transgressão erótica. Para Bataille, essa transgressão representa, sobretudo, a desobediência às convenções sociais. Diz ele que, “o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas” (BATAILLE, 1987, p. 18).

Já seus contos enfatizam a questão racial. Em “Garoto de Plástico”, a autora narra o cotidiano de um jovem negro que busca ser branco inconscientemente, o que é demonstrado através das atitudes da personagem, como por exemplo, “seus cabelos raspados à máquina zero a cada sete dias” O jovem repete os moldes de uma sociedade burguesa e fútil, até se apaixonar por uma garota. Daí, sente-se inferior: “sob a sua cara máscara de plástico totalmente derretida, havia um complexo de inferioridade estrutural, que o fez ficar trancado em casa durante quatro longas semanas [...]”. Nesse momento de reclusão interior e exterior, sua consciência desperta para o “mito de uma democracia racial”. Na busca de suas origens, o garoto encontra uma foto do casamento de seus pais, “um casal negríssimo, sem dúvida.”. O conto culmina com a revelação de um país negro que não se reconhece como tal, “[...] esse país que também usa uma máscara de plástico para disfarçar a cara de pau que lhe permite vez em quando esquecer que está aqui a maior população negra fora da África”.

“Pixaim” é um outro conto de afirmação identitária. A localização geográfica em que se desenvolve a ação pode indicar que se trata de um texto autobiográfico. O conto inicia-se no Rio de Janeiro e termina em Brasília. A questão afro-descendente é apresentada em torno da discussão sobre o tipo de cabelo que caracteriza o negro. A menina do conto luta contra a mãe para manter seu cabelo como ele é. Sua mãe tem dificuldade em aceitá-la, porque os outros filhos eram mestiços e podiam se passar por brancos. Nas palavras da personagem, em comparação aos seus irmãos, ela é “a ovelha mais negra, rebelde por excelência, a mais escura e a que tinha o cabelo ‘pior’. ” (Cadernos Negros 24, p. 16).

A mãe recorre a todos os métodos disponíveis para alisar o cabelo da filha, mas este representa, para a menina, a força maior de afirmação, da negritude: “o meu cabelo era a carapaça das minhas ideias, o invólucro dos meus sonhos, a moldura dos meus pensamentos mais coloridos”. A menina cresce. Em Brasília, longe dos olhos reprovadores, recomeça. Cheia de cicatrizes, mas mais do que nunca livre para ser o que é.

Já em “A discórdia do meio” temos o conflito entre negro e mulato. Irmãos de pais diferentes, Jupira é negra e Jupi, mulato. Em um memorável almoço em família, num domingo de agosto, os ânimos exaltados, os irmãos se confrontam e se ofendem ao reproduzirem estereótipos construídos no imaginário cultural. Jupira inicia a discussão e seu irmão, que sempre permaneceu calado, revida. A “máscara branca” da irmã é tirada na frente de todos. Ela sempre usou peruca para esconder os seus cabelos naturais. O conto finaliza com a imposição do silêncio sobre os gritos de ambos, modo de todos refletirem sobre suas posições e preconceitos sociais.

A autora comprova que, seja tratando da restauração de traços identitários ou de outras questões sociais, a literatura que faz busca a valorização da cultura afro-brasileira. Cristiane Sobral é comprometida, antes de tudo, com o ser humano. Através de sua produção textual nos instiga a lutar pelo que acreditamos, pelo direito de ser o que somos e pela realização de nossos sonhos, demonstrando que somos livres para viver como queremos, o que nem sempre é fácil, mas nunca impossível desde que se encare o mundo de frente: “quando escrevo, me sinto inteira, de frente para o mundo. Fazer poesia é um grito de liberdade” (Cadernos Negros 23, p. 15).

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antônio Carlos Vianna. Porto Alegre: L & PM, 1987.

SOBRAL, Cristiane. Estrangeira. In: Cadernos Negros 23. São Paulo: Quilombhoje, 2000.

SOBRAL, Cristiane. Paradoxo. In: Cadernos Negros 23. São Paulo: Quilombhoje, 2000.

SOBRAL, Cristiane. Pixaim. In: Cadernos Negros 24. São Paulo: Quilombhoje, 2001.

SOBRAL, Cristiane. A discórdia do meio. In: Cadernos Negros 24. São Paulo: Quilombhoje, 2001.

 

* Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas.

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