Alteridade e subalternidade em Clarice Lispector e Conceição Evaristo

 

Cristiane Felipe Ribeiro de Araujo Côrtes, CNPq/UFMG/CEFETMG1

Resumo

Este trabalho visa evidenciar os olhares femininos da literatura ocidental sobre subalternidade feminina. Para tanto, serão discutidas as personagens empregadas domésticas nas obras de Clarice Lispector e Conceição Evaristo. A escolha se dá pela narrativa sensível-poética que ocorre em ambas nas quais se tem, de fato, uma perspectiva feminina que emerge de tais textos. Cada qual, a partir do seu ponto de vista, construiu e constrói uma história literária engajada e inovadora. Pretende-se, com este texto, indicar Conceição Evaristo como leitora de Clarice Lispector e reconhecer as proximidades e distanciamentos de ambas as escritoras no que tange à subalternidade.

Palavras-chave: Literatura brasileira, gênero, etnia, subalternidade e memória.

 

A relação da mulher com a sociedade em que ela vive está diretamente ligada à sua produção literária. Nos séculos passados, pouco se sabe sobre as escritoras e, consequentemente, pouco se sabe sobre como as mulheres viam o mundo em que viveram. No século XIX, por exemplo, eram representadas pelos autores do romantismo ora como puras, ingênuas, incapazes de viverem sem o sexo oposto, ora como luxuriosas a ponto de levar um homem à loucura. Com o amadurecimento político e intelectual da mulher, as autorias femininas se fizeram mais presentes e persistentes na sociedade, havendo uma representação mais marcada pela vontade de se posicionar e de se fazer notar como mulher diante do meio em que vive.

É nesse âmbito que pretendo analisar a manifestação da classe subalterna nas narrativas brasileiras, especificamente, a figura das empregadas domésticas presentes nas obras de Clarice Lispector e Conceição Evaristo, a partir de reflexões teóricas relacionadas ao gênero, à raça e à classe.

Clarice Lispector se destaca pelas reflexões feitas sobre a mulher do século XX habitante dos grandes centros urbanos. A escritora inovou a estética literária brasileira e se destacou pela perspectiva intimista, no que tange à estrutura do texto narrativo. As personagens clariceanas representam a situação alienada dos indivíduos das grandes cidades, geralmente tensas e imersas num mundo repetitivo e inautêntico, que as despersonaliza. As mulheres estão sempre envolvidas com os problemas de casa e não se dão conta do quão medíocre é a vida que levam e os homens são sempre inexpressivos ou autoritários.

Apesar de toda complexidade de sua narrativa, não se pode afirmar que sua obra é de cunho social. Mesmo em “A hora da estrela”, que tem como protagonista uma imigrante nordestina, a questão social não é tratada com a mesma profundidade que a questão psíquica, isso não significa que a autora ignora o tema, muito pelo contrário.

Influenciada pelo existencialismo de Sartre, Lispector se ocupa, em grande parte de sua obra, das mulheres. Ela foi, a seu tempo, inovadora no que tange à imersão poética na década de 50. Sua literatura introspectiva e intimista busca fixar-se na crise do próprio indivíduo, em sua consciência e inconsciência. É dessa forma que começa uma narrativa interiorizada, centrada num momento de vivência interior da personagem provocando o fluxo de consciência. Esse fluxo é um sistema para apresentação dos aspectos psicológicos da personagem na ficção.

Em Laços de Família, por exemplo, as personagens vivem sufocadas pela rotina até que algo as deixa desequilibradas, estremecidas. Isso faz com que tomem consciência de alguma peça fundamental para que sua existência possa ser palpável, concreta. Esse processo de descoberta do óbvio e profundo as provoca o desequilíbrio; as personagens são levadas a uma a uma reforma íntima e radical, mas temporária. Elas vivem um estado crítico de solidão e tristeza, abandono, culpa e, principalmente, auto-enfrentamento. O narrador de terceira pessoa expõe o íntimo das personagens com toda dor e compaixão que as palavras suportam narrar.

Lispector traduz em ações um sentimento muito próprio da mulher ao longo história, descrito por Perrot, ao considerar que “dizer “eu” não é fácil para as mulheres a quem toda uma educação inculcou a conveniência do esquecimento de si.” (PERROT, 2005, p. 42). Para tanto, era preciso uma educação diferenciada que saiu muito caro à produção feminina, pois os homens sempre tiveram acesso à filosofia, poesia, viagens, escolas e universidades. Às mulheres, restavam as situações corriqueiras, os bibelôs, os sonhos e fantasias de donas de casa.

As crônicas de A descoberta do mundo, livro composto por crônicas publicadas aos sábados no Jornal do Brasil de agosto de 1967 a dezembro de 1973, assumem um caráter metaficcional em vários momentos e isso é particularmente interessante para a produção da análise que se segue neste trabalho. Isso porque, ao falar sobre o seu fazer literário, Lispector “denuncia” não só a sua postura diante da vida, mas também de uma parcela significativa da classe média brasileira da qual ela fazia parte.

Não são raras as reflexões da autora sobre a alteridade, mesmo evitando o engajamento social, Lispector aponta questionamentos fundamentais sobre as diferenças de classe a partir das discussões existencialistas. Pode-se perceber que sua inspiração brota da crítica feita pelo feminismo de meados do século XX, retratando o universo da mulher de classe média, dona-de-casa, solitária e incompreendida até por si mesma. Essa temática engendrada, ou o fato de colocar uma nordestina como protagonista de um romance ou, ainda, evidenciar, em tantos textos, seu conflito em relação ao trabalho subalterno feminino, como das empregadas domésticas e cozinheiras em sua obra reflete a constante preocupação com alteridade da autora, mesmo não sendo esse seu foco de escrita.

Mesmo envolvida com a alteridade, a relação de Lispector com a subalternidade é, por vezes, conflituosa, como relatada na crônica “Por detrás da devoção” (LISPECTOR, 1999, p. 49) quando a autora afirma que
 

[...] por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e explorada, piorei muito depois que assisti à peça “As criadas”, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de ódio mortal. (LISPECTOR, 1999, p. 49, grifos nossos).

A culpa sentida pela autora é a consciência de que ela tem acesso a uma “versão” de suas empregadas diferente do que elas realmente são. Isso se evidencia quando ela reconhece que se sentiu mais culpada quando viu, através de Martim Gonçalves, como elas são por dentro. Há um conflito instaurado em seu texto entre quem é ela diante do outro e quem é o outro para ela, como exemplifica o trecho “minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.” (LISPECTOR, 1999, p. 23), aqui, ela reconhece que o desconhecido do outro seria o que desconhece dela mesma. Uma análise de A hora da estrela focada na alteridade evidencia esse conflito, quando a autora constrói uma protagonista que desconhece o mundo em vive na mesma proporção que desconhece a si mesma e um narrador que se interessa particularmente por essa faculdade - do não ser - da sua personagem.

A obra de Conceição Evaristo já apresenta a alteridade com uma ótica menos conflituosa, embora mais contundente do ponto de vista da crítica social, pelo fato de a autora ser de origem economicamente e intelectualmente diferente. Sua estréia na literatura foi em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros. Desde então, Evaristo tem mostrado uma produção literária marcada pela presença de uma voz feminina que promove a denúncia e reflexão passando pela memória, que é usada como instrumento de reconhecimento dos fatos pessoais ou histórico-sociais, ressaltando a realidade social e cultural dos afro-descendentes. Segundo Eduardo de Assis,
 

a poesia de Conceição Evaristo enfatiza a abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa sociedade que os exclui e, ao mesmo tempo, camufla o preconceito de cor. A descrição da dor, do sofrimento negro e da sua desesperança faz-se de modo incisivo. (ASSIS, Disponível em: <http// www.letras.ufmg.br/literafro>).
 

Podemos encontrar na literatura de Evaristo, além da temática do feminino, comum em Clarice Lispector, a questão da raça e da classe. Os dilemas, angústias e anseios de uma mulher marcada pelos valores patriarcais vão permanecer em suas narrativas e poemas, contudo, o olhar sobre esses sentimentos parte não mais da classe dominante, mas sim da experiência da subalternidade. Por isso, o conflito refletido na culpa de Lispector cede lugar a uma crítica mais engajada, inclusive, ao discurso da classe dominante em relação à subalternidade.

A postura de mulher, negra e escritora sobre a sua própria condição coloca a obra de Conceição Evaristo em cheque numa sociedade que pratica o racismo e o sexismo velados. A abordagem temática de sua narrativa é considerada inovadora, pois passa pela literatura existencialista de Clarice Lispector – pela precisão com que descreve os sentimentos humanos – e pela narrativa contemporânea que enfatiza de forma direta a vida do subalterno. Dessa forma, algumas influências que Conceição Evaristo sofreu ao longo de sua vida fizeram com que sua literatura se distanciasse, em certo ponto, da narrativa clariceana. Ela afirma que não nasceu rodeada de livros como os escritores da classe média, nasceu rodeada de palavras. Com isso, constata-se o trato com a memória e a imagem, elementos recorrentes da narrativa oral; além do lirismo e intimismo presentes na literatura brasileira da década de 40 do século XX.

É possível afirmar que a escrita de Lispector abre precedentes para uma literatura, além de engendrada, engajada, como a de Evaristo. A experiência do escrever é fundamental para essas personalidades, uma vez que é ela (a escrita) que conecta o que pensam com o que vivem e como vivem. Clarice Lispector afirma que “escrever é uma maldição, mas uma maldição que salva”, isso porque esse ato
 

Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 1999, p. 134, grifos nossos).

Para ambas as autoras, a escrita proporciona a inscrita. É possível entender melhor o mundo quando se fala e escreve dele e sobre ele. No caso de Evaristo, a necessidade da escrita é pela afirmação, além do gênero, da classe e da cor também, ela reconhece que é preciso “fugir para sonhar e inserir-se para modificar” (Evaristo, 2007, p. 20) e essa inserção, para ela, pedia a escrita. É nesse exercício de inserção que é possível estabelecer a partir de que ponto de vista cada autora parte. Evaristo, ao reproduzir o irreproduzível, dialoga com uma classe que Lispector desconhecia profundamente, embora se demonstrasse envolvida com o tema. Uma (Evaristo) parte do universo da pobreza para ressignificar o existencialismo tão presente na outra (Lispector).

Ao dizer “ a gênese da minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossas casas e adjacências” (EVARISTO, 2007, p. 19), a autora demonstra o desejo de aproximar seu universo de identificação literária à oralidade para representar uma voz coletiva pobre, economicamente, mas farta, culturalmente. A experiência da leitura para ela “foi um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que vivia” (EVARISTO, 2007, p. 20). Percebe-se, portanto, que a escrita torna-se a performance da vida, não por representá-la como um simulacro, mas por ser uma forma de se ver inserida na vida pelo ato de escrever sobre ela. Lispector ilustra tal condição ao reconhecer que a máquina corre antes que seus dedos corram, a máquina escreve nela (LISPECTOR, 1999, p. 232); isso porque ela imprime a vida e se imprime no ato de escrever.

Dessa forma, claro fica justificar a ambigUidade de C.L. em relação às domésticas na sua literatura. Sua culpa está no fato de ela reconhecê-las como um alter (outro) que merece viver dignamente. Tanto que questiona, na crônica “Ao correr da máquina” a vida da faxineira "que mora na Raiz da Serra e acorda às quatro da madrugada para começar o trabalho da manhã na Zona Sul, de onde volta tarde para a Raiz da Serra, a tempo de dormir para começar o trabalho na Zona sul". (LISPECTOR, 1999, p. 232). 

Porém, a visão “de fora” do universo da faxineira limita as impressões de Lispector a uma compaixão paradoxal que oscila entre a cumplicidade dentro do universo feminino e a perversidade dentro do universo sócio-econômico. Como, por exemplo, na crônica “A mineira calada” em que a autora se surpreende ao ver sua empregada lhe pedir um livro para ler que seja interessante e não água com açúcar:

[...] de repente – não, nada é de repente nela, tudo parece uma continuação do silêncio. Continuando, pois, o silêncio, veio até a mim a sua voz: “A senhora escreve livros? Respondi um pouco surpreendida que sim. Ela me perguntou sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se podia emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que, continuando a arrumar, e com a voz ainda mais abafada, respondeu: ”Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar”. (LISPECTOR, 1999, p. 48). 

Tivera Lispector passado pelas experiências de Evaristo, sua postura diante de uma empregada culta não seria de espanto. Há, no romance Becos da memória2, de Conceição Evaristo, uma personagem, Ditinha, que trabalha de empregada doméstica na casa de D. Laura. A apresentação dessa personagem se difere em vários aspectos das de Lispector, principalmente pela ausência do conflito ou culpa, substituída ora pelo respeito, ora pela revolta. As metáforas utilizadas para representar Ditinha se dão sempre a partir de um universo de significação positivo exemplificando esse tratamento na personagem:
 

Ditinha olhava as joias da patroa e seus olhos reluziam mais que as pedras preciosas [...] continuava a arrumação do quarto, varria debaixo da cama, olhava o teto à procura de teias de aranha [...] Um raio de sol batia nos fios de cabelos trançados, fazendo-a brilhar que nem as joias. (EVARISTO, 2006, p. 92-93, grifos nossos).
 

A comparação de Ditinha com uma joia é colocada em oposição às joias da patroa, essas reluziam e refletiam a angústia da empregada que vivenciava uma realidade extrema oposta quando chegava a casa após o trabalho. Em artigo publicado, Evaristo escreve sobre sua infância em que a mãe desenhava um grande sol no chão do quintal para que ele se materializasse naqueles dias. Neste, a autora lança mão de alegorias que projetam a crítica social feita pela autora, mas, mesmo assim, a diferença no trato e na linguagem permanece em relação à Lispector: 

Nossos corpos tinham urgências. O frio se fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena casa, roupas, roupas molhadas, poucas as nossas, muitas as alheias, isto é, das patroas, corriam o risco de mofarem acumuladas nas tinas e bacias. A chuva contínua retardava o trabalho e pouco dinheiro, advindo dessa tarefa, demorava mais e mais tempo. (EVARISTO, 2007, p. 17).
 

Aqui, a autora se declara filha de lavadeira e que, por isso, necessitava do calor para secar as roupas, para a mãe não ficar sem o pagamento e usa a metáfora do frio associada à fome, num leve tom de denúncia. Não se pode, entretanto, afirmar que há em Evaristo a ausência de conflitos, o que se percebe, em comparação à Lispector, é um desejo consciente de denúncia ou reflexão para que haja um novo universo semântico associado a tais personagens. Enquanto o conflito desta beira a culpa, o daquela questiona os estereótipos. C.L. tem consciência de tais estereótipos criados pelas classes médias e altas brasileiras; mas aceita-os, muitas vezes, tanto que confessa sua paradoxal postura diante de suas empregadas.

Ao contrário de Evaristo, Lispector espera que suas empregadas sejam sempre rasas e se surpreende quando uma lhe pede um livro mais interessante para ler ou uma outra que ia ao analista e a incomodava profundamente: “fazia análise, juro... Duas vezes por semana ia ver uma Dra. Neide. Telefonava-lhe nos momentos de angústia. [...] Compreendi, mas terminei não suportando.” (LISPECTOR, 1999, p. 51). O comportamento tido como moderno até para uma mulher de classe média dos anos 60, quem dirá para uma doméstica. O universo de identificação da classe surge, principalmente, quando a autora ressalta “juro” como se os leitores pudessem duvidar do que estava a dizer.

O conflito na escrita de Evaristo é marcado pelo questionamento da postura retratada por Lispector na relação patroa-empregada que oscila entre a satisfação, a desconfiança, compaixão ou espanto, como na passagem em que Ditinha acaba o seu trabalho e, antes de ir embora, D. Laura confere tudo o que ela fez: "Estava tudo um brinco! A casa reluzia! Ela elogiou o trabalho de Ditinha, gostava do trabalho da moça. [...] D. Laura gostava muito do trabalho de Ditinha. Olhando e admirando a beleza de D. Laura, Ditinha se sentiu mais feia ainda. Baixo os olhos envergonhada de si mesma”. (EVARISTO, 2006, p. 94). 

A patroa gostava muito do trabalho de Ditinha e não de Ditinha. A comunicação entre as duas se resumia nos momentos de conferência das tarefas, antes de ela ir embora. A admiração se restringia ao resultado do trabalho, mas D. Laura não concebia como era a vida de sua funcionária fora de sua casa. O local da subalternidade tirava-lhe o direito de ter uma essência. A atmosfera de desconfiança e desconhecimento na relação patroa-empregada é retratada também em Lispector, na crônica “Por detrás da devoção”, quando a narradora afirma que teve uma empregada argentina que tinha um ódio declarado em forma de devoção: 

[...] Pseudamente me adorava. Nas piores horas de uma mulher – saindo do banho com uma toalha na cabeça – ela me dizia: como usted é linda. Bajulava-me demais. E quando eu lhe pedia um favor, respondia: como não! Usted vai ver o que vale uma argentina. Faço todo o que a senhora pede. Empreguei-a se referências [...]. (LISPECTOR, 1999, p. 50). 

Outro exemplo da condição ou não-condição das empregadas na obra clariceana está no texto “Como uma corsa”, em que Eremita, uma criada de 19 anos, é descrita como nem feia nem bonita, nem magra nem alta, traços indecisos, unhas, carnes, dentes. Uma mistura de resistência e fraqueza, uma doçura em forma de lágrimas. Tinha medo, fome, vergonha e um noivo. Era gentil e honesta. A narrativa ressalta a falta de personalidade da personagem na sua condição subalterna, que lhe impedia de qualquer manifestação: “os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem – abertos, úmidos.” (LISPECTOR, 1999, p. 71). Nada a patroa sabia sobre Eremita, tal distanciamento revela uma hierarquia social determinada por uma microfísica do poder que engessa as personagens em seus estereótipos: a patroa, fútil e desconfiada X a empregada prestativa e misteriosa.

Tal mistério advém do local de identificação da narrativa que reflete o universo da patroa. Em Becos da Memória, quando esse universo é invertido, o leitor tem acesso à vida da empregada. A narração se ocupa em descrever a trajetória de Ditinha até o momento em que vai trabalhar com D. Laura e continua depois do trabalho. Neste caso, o leitor percebe que o foco está na empregada, enquanto no outro está na patroa. A alteridade é o foco de ambas as autoras, entretanto, uma irá refleti-la a partir do ponto de vista economicamente privilegiado e outra do subalterno.

Em Evaristo, o subalterno ganha visibilidade, mas sua voz está na narradora que teve a experiência da subalternidade e não ocupa esse lugar. Daí a justificativa para tal diferença entre as autoras. O lugar da subalternidade é descrito quando o foco da narrativa retrata as reflexões da empregada ao chegar a casa depois do trabalho:
 

Ditinha estava cansada, humilhada. Olhou em seu barraco, uma sujeira. As roupas amontoadas pelos cantos. Olhou as paredes, teias de aranha e picumãs. Um cheiro forte vinha da fossa. [...] tirou o pai da cadeira de rodas e o colocou na cama. O pai fedia sujeira e cachaça. Lembrou-se da patroa tão limpa e tão linda como as joias. Pensou que o dia de amanhã seria duro. A casa estaria de pernas pro ar depois da festa. Seriam tantas louças. Na certa sobrariam doces e bolos. A patroa haveria de dividir com ela, com a cozinheira e com a babá. Traria para casa e seria a vez de os olhos dos filhos brilharem mais que qualquer joia. Ela seria um pouquinho feliz. (EVARISTO, 2006, p. 97).
 

A autora permite que o leitor tenha acesso a esse “outro lado” retratado como “profundezas” por Lispector em relação à Eremita. É possível afirmar que aquela “traduz” os pensamentos das personagens que esta não é capaz de apreender: eremita era ausente, 

às vezes o seu rosto se perdia em uma tristeza impessoal e sem rugas, essas ausências iam e vinham sem muita explicação como tudo na vida de Eremita”. [...] Quando voltava, estava mais rica, não se sabe em que fonte bebera, mas devia ser antiga e pura. [...] Voltava como um cabrito recém-nascido que se ergue sobre as pernas. [...] Se alguém descesse às suas profundezas, não encontraria nada além de profundezas. Seguindo muito além, talvez encontrasse um indício de caminho guiado por um bater de asas ou um rastro de bicho. Ela mesma não poderia narrar o que lhe sucedia, porque ela não sabia. (LISPECTOR, 1999, p. 71).
 

A narradora afirma que ela viera da floresta e em suas ausências, era para lá que ia. Uma escuridão, um lugar primitivo e ignóbil, já Ditinha é colocada como uma moradora da favela, mas vizinha de D. Laura. Morava a poucos minutos da casa da patroa, porém em um lugar totalmente adverso.

A caracterização feita pela narrativa é uma visão de fora, de uma terceira pessoa que se aproxima e observa o que é diferente e exótico para ela. Isso é facilmente percebido quando há a descrição da origem de eremita. A floresta representa o desconhecido, o exótico e primitivo. A favela talvez? Para Evaristo, sim.

A imprecisão com que ela é descrita também denuncia o ponto de partida desse enunciador. Ele não descreve Eremita, apenas faz algumas considerações sobre ela, como se nunca se detivesse para olhar seu rosto ou pensar sobre quem e como ela é. A narradora representa uma classe que vê o subalterno como um outro desconhecido. A essa narrativa, interessa o que Eremita não manifesta, não demonstra, por uma razão que ela não sabe qual é. As ausências dela, que são descritas por um enunciador que não vive a realidade de Eremita.

O silenciamento de Eremita é traduzido por Foucault, em Microfísica do Poder, quando o autor alega que o poder está ligado à verdade e à voz. O narrador representa a voz de uma classe, de uma sociedade. O texto, por exemplo, aborda a temática do furto como uma prática natural, como se todos já esperassem isso de uma criada. Não há profundidade, no que tange à questão social de causa e efeito do ato: 

A única marca de perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da dispensa. A roubar de leve ela também aprendera das florestas. (LISPECTOR, 1999, p. 72). 

O conto finaliza com essa afirmação, como se a narrativa não desse conta da situação. O conflito clariceano em relação à alteridade ressurge nessa passagem, quando o leitor percebe o esforço da autora para evitar o julgamento na narrativa. Há uma insinuação de que a fome é o impulso para os atos ilícitos, pois somente ao comer o pão é que a personagem demonstra avidez ou aparenta perigo. O roubo é uma consequência do modo fugitivo de se alimentar, aprendido na floresta, certamente. O mesmo assunto é levantado em Evaristo quando Ditinha vai trabalhar mais feliz no dia seguinte à festa, pois sabe que poderá levar para casa doces e bolo.

Lispector tem uma particular preocupação com a fome. A crônica “Crianças chatas” retrata esse paradoxo, pois a autora sugere acreditar que o sofrimento causado pela fome é ficção e confessa sua incapacidade para lidar com a situação: “Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme”. (LISPECTOR, 1999, p. 23), a não possibilidade de ver tal cena como real retrata o distanciamento da autora dessa realidade e a impossibilidade de pensar na cena retrata a preocupação da autora com o fato de isso não ser ficção. Cena parecida aparece no conto “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, quando a narradora afirma que a mãe fazia brincadeiras para despistar a fome: 

Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía. Ás vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes-nuvens no céu. Umas viram carneirinhos, outras cachorrinhos; algumas gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. (EVARISTO, 1990, p. 29).
 

A fome, aqui, é descrita com uma certa ternura. O universo lúdico é apontado como solução para tal sofrimento e a violência está num campo muito sutil, quando se pensa que era preciso brincar para distrair a fome. Já em “Crianças chatas”, a mãe, refletindo a angústia da narradora na impossibilidade de conceber essa realidade, responde violentamente aos apelos do filho faminto: “ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio, no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? Pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar.” (LISPECTOR, 1999, p. 23). Evaristo traz uma alternativa para a situação descrita na angústia de Lispector da mesma forma que seus textos são uma alternativa para aqueles que retratam as situações subalternas sempre com a atmosfera da violência e da incapacidade de algum sentimento positivo.

Outro exemplo desse trato é a crônica “Mineirinho” (C.L.) em que a autora reflete sobre o paradoxo que viemos tratando até aqui. A narrativa começa questionando a postura da própria narradora ao reconhecer sua compaixão por um assassino: “É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram o Mineirinho do que seus crimes.” (LISPECTOR, 1999, p. 123). Nesse, a narrativa se anuncia coletiva e representante de um nós, que questiona sua piedade por um criminoso. A autora reconhece que há um nós que difere do eles por não conceber certos fatos sociais e por não conseguir compreender, de um outro lugar, como se dá toda a trama das injustiças sociais. Para a autora, Mineirinho possuía uma violência assustada e inocente, como a da criança que pede reclama da fome para a mãe que grita assustada. O sentimento paradoxal continua quando ela afirma:
 

Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho [...] essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa em que Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede. (LISPECTOR, 1999, p. 125).
 

Há, então, uma necessidade de aproximação do objeto narrado para que se possa compreendê-lo e entender o que há de um em outro. O que há de Lispector em Mineirinho ou Eremita, o que a faz culpada em relação ao subalterno. Evaristo trata da criminalidade, em ralação à Ditinha, sob um outro viés e sua justificativa foge do padrão convencional que a coloca como uma faminta que necessita roubar para sobreviver. O que Ditinha retrata é o conflito sofrido pela narrativa de Lispector, um conflito muito mais existencial do que físico em que feio e belo, rico e pobre, paixão e ódio se misturam a impulsionam para uma outra vida. A personagem, ao chegar ao quarto da patroa e se deparar com os tantos presentes ganhos na festa, não acredita no que vê, pensa estar em um sonho ou conto de fadas. Percebe-se que há uma inversão na impossibilidade apresentada anteriormente associada ao fato de uma criança não conseguir dormir de fome. Ditinha até se lembrou que fizera 29 anos na semana anterior, mas ninguém, nem ela, havia notado. Quando guardou os presentes, a criada viu um broche com uma “pedra verde que até parecia macia”. Ele adorava essa jóia e quando a patroa a colocava, ficava mais linda que nunca. Em um ímpeto, sem saber por que, nem para que ela recolheu a pedra e a colocou dentro do sutiã encardido, entre os seios.

Ao voltar para casa, a personagem sofre, seu corpo sangra com a marca da pedra, ela já não se dá conta das coisas, anda sem rumo, chega em casa sem saber o que fazer. Ditinha entrou no quarto da fossa, refletiu sobre sua vida: estava na merda, só tinha merda ali e, assim, joga a pedra nos excrementos. A empregada não se perdoa, vive em um conflito de culpa e submissão, até que é presa pelos policiais, denunciada pela patroa.

Após longa data, Ditinha volta para a favela envergonhada, dilacerada, incapaz de erguer a cabeça, olhar para os filhos. Os vizinhos descobrem sua volta no dia em que ia mudar, seu filho e amigos colocam-na, com todos os seus erros e enganos, aos olhos da favela. Inesperadamente, ouvem-se vozes emocionadas: Ditinha voltou! Choros e risadas invadem a favela para comemorar a volta dela. Carregaram-na como em um cortejo e colocaram-na, todos muito emocionados, dentro do caminhão de mudança como se fosse santa. Com toda essa emoção, Ditinha retirou as mãos dos olhos envergonhados e sorriu pela primeira vez desde o episódio da pedra que até parecia macia.

O trecho descrito é o ápice do que venho tratando neste texto, nota-se um narrador que representa a voz que se contrapõe ao anterior. Aqui se tem uma visão do quarto de despejo, do íntimo da subalternidade, lá há o envolvimento e a preocupação, mas isso não dá conta do mistério que é para a autora esse universo. Prova disso é o final do conto “Eremita”, em que há o reconhecimento dos furtos, uma justificativa para eles, mas nenhuma reflexão sobre a dimensão desse ato para a própria Eremita. Em nenhuma narrativa Clariceana, das estudadas aqui, é possível perceber a naturalidade da essência subalterna. Ela sempre aparece no âmbito do exótico, do misterioso ou piedoso, em uma narrativa violenta e sofrida pela culpa e paradoxal de querer compreender um universo do qual não se consegue ter as dimensões que ele ocupa.

As reflexões feitas por Ditinha ao longo da narrativa demonstram a simplicidade e ternura com que o tema é tratado. Ela não se reconhece na mansão, mas também não se sente bem em casa. A narrativa deixa claro que a empregada tem respeito e admiração pela patroa, que ela procura fazer tudo o mais perfeito possível para poder voltar no dia seguinte, mas a lida do dia-a-dia, a luta por dias melhores, o enfrentamento da realidade que é suja e pobre são alguns dos aspectos que impulsionam a quere uma pedra bela que aparenta ser macia.

Nota-se que o narrador prepara o leitor para a cena do furto. Mesmo o ato em si é de tal inocência que a personagem não sabe o que fará depois com a pedra roubada e nem tem ideia de seu valor material. Em momento algum esse gesto parece comum ou corriqueiro, embora a patroa devesse sempre ter aguardado por ele. É como se o narrador fizesse questão de justificar o ato para que a personagem não fosse julgada erroneamente.

Para Foucault (2003), o poder é uma força que atravessa todo o corpo social e deve ser considerado muito mais do que uma instância negativa que tem como função a repressão. Ele produz coisas, gera prazer e produz discurso. O abismo existente entre D. Laura e Ditinha ilustra essa relação de poder na sociedade. Enquanto aquela dita as regras, manda e cria as leis esta obedece e se vê cada vez mais subjugada à situação criada pela patroa graças ao poder que lhe foi concedido.

Para finalizar, mostramos a figura da criada Ditinha diante de sua comunidade – Eremita na floresta – sendo reconhecida aplaudida por seus pares que em momento algum a julgaram pelo seu ato. O enunciador deixa clara a sua identificação com a atmosfera da alegria presente nas festas da favela quando narra que

“as vozes e as emoções se liberam. Ditinha! Era Ditinha! A mulher havia voltado! [...] Grandes e crianças que nem estavam acostumados a grandes demonstrações de carinho correram para ela e a pegaram no colo. Andaram com ela ali em volta feito santo em andor. Gritando, chorando, rindo. Que bom, Ditinha havia voltado! Depois solenemente colocaram a mulher no caminhão como se colocassem uma santa no altar. Todos choravam. O motorista do caminhão enxugou uma lágrima no canto dos olhos. Ditinha, que se mantivera o tempo todo com o rosto entre as mãos, olhou para todos e sorriu. Era o primeiro sorriso desde aquele dia em que escondera no seio a pedra verde-bonita-suave que até parecia macia”. (EVARISTO, 2006, p. 126).
 

Essa passagem exemplifica bem a proximidade do enunciador do discurso com sua personagem. A cumplicidade que impera entre os moradores da favela é toda exposta nessa aqui quando a criada, é carregada como se tivessem revivendo seus medos, traumas; expurgando suas culpas, todos ali, em uma só emoção. Como se fosse um cortejo.

Enquanto os dramas clariceanos retratam a mulher da década de 50 denunciando sua alienação e apatia diante da sua existência, os de Evaristo refletem a figura feminina que sofre por lutar contra a fome, a pobreza e a discriminação. Ambas muito contribuíram para a questão do gênero na literatura brasileira, inovaram, cada uma a sua época e perspectiva, trazendo a mulher em cena e refletindo sobre sua condição, que é ainda vista como subalterna, seja por seu trabalho, seja por estar subjugada a um marido ou a uma sociedade machista. Pode-se pensar, então, em Conceição Evaristo como leitora de Clarice Lispector que, influenciada pela necessidade de inscrever seus dramas existenciais na literatura, o faz com uma perspectiva contemporânea, agregando ao gênero, reflexões de classe e raça.

 

Referências

ASSIS, Eduardo Duarte de. Notas sobre a Literatura Afro-descendente. In: Poéticas da Diversidade. Org. Marli Fantini Scarpelli e Eduardo Duarte de Assis. Belo Horizonte: UFMG/FALE: Pós-Lit, 2002. P. 47-61.

ASSIS, Eduardo de. Conceição Evaristo: literatura e identidade. Disponível em: <http//: www.letras.ufmg.br/literafro>. acesso em: 12/03/2011.

ESTANISLAU, Lídia Avelar. Feminino Plural. Brasil Afro Brasileiro. SOARES, Maria Nazareth (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

EVARISTO, Conceição. Vozes-Mulheres. In: Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje, 1990. P. 28.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

EVARISTO, Conceição. Da grafia–desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Representações performáticas brasileiras: Teorias, práticas e suas interfaces. ALEXANDRE, Marcos Antônio. (Org). Belo Horizonte: Mazza, 2007. P. 16-21.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 18 ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.

GOTLIB, Nádia Batella. Clarice – uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PERROT, Michelle. As mulheres ou o silêncio da história. Travessa: Bauru, 2005.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

1 Professora de Língua Portuguesa efetiva do CEFET – MG, pesquisadora do grupo Letras de Minas, registrado no CNPq, mestre pela UFMG.

2 Becos da memória é um romance entrecortado de caráter multifocal, publicado em 2006, pela Mazza Editora.

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