Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: Um Bildungsroman Feminino e Negro

Aline Alves Arruda*

 

A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte e reside no Rio de Janeiro há alguns anos. É mestre pela PUC/RJ e doutoranda em Literatura Comparada na UFF. A autora publica poemas e contos na coletânea Cadernos Negros desde 1989 e é chamada para palestras e congressos em todo o Brasil e no exterior, quando aborda as questões de gênero e etnia na literatura brasileira. Ponciá Vicêncio é o primeiro romance de Conceição Evaristo e vem sendo tema de artigos e discussões no meio acadêmico desde sua publicação em 2003. A obra narra problemas do cotidiano das mulheres afrodescendentes sob um ponto de vista claramente feminino e negro.

A literatura afro-brasileira pode ser considerada uma contra-narrativa da nação porque abala a ideologia do nacionalismo; tem um olhar critico sobre o Estado - nação e a identidade nacional; e, ainda, porque reescreve a seu modo a História. É o caso de Conceição Evaristo no romance Ponciá Vicêncio. A autora se apropria do modelo ocidental do romance de formação para subvertê-lo. Os ciclos vividos pela protagonista do romance configuram-se como paródia das trajetórias de vida dos personagens do romance de formação europeu tradicional.

No caso de Conceição Evaristo, a autora demonstra seu testemunho de resistência, individual, a princípio, e coletiva, contra, pelo menos, uma tripla exclusão: a racial, a de gênero e a de classe. Exclusão também vivida pela autora de Úrsula, romance escrito no século XIX por Maria Firmina dos Reis, uma escritora maranhense negra. Assim, Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo que também é herdeira de uma linhagem memorialista feminina na literatura afro brasileira. Como Maria Firmina e Carolina de Jesus, Conceição dá voz aos despojados da liberdade, mas não da consciência. É essa consciência que marca os textos dessas autoras e de tantos autores considerados hoje afro-brasileiros. A identidade deles é marcada no texto através dos temas tratados e da estética usada.

Segundo Luiza Lobo (1989), um dos aspectos que define esta escrita é o fato dela ter surgido "quando o negro passa de objeto a sujeito dessa literatura e cria sua própria história; [...] quando o negro deixa de ser tema para autores brancos e passa a criar sua própria escritura". É essa a prática de Conceição Evaristo e de tantos autores desde séculos passados. Ao dar ao personagem negro o direito à voz, esses autores o tornam porta-vozes das narrativas ao mesmo tempo em que também eles, escritores, são sujeitos literários de um processo histórico que transcende a diáspora africana.

A partir dessa concepção literária, histórica e política, fazemos uma leitura de Ponciá Vicêncio como uma apropriação de um gênero caro ao cânone literário: o bBldungsroman. O termo se origina do alemão: bildung = formação e roman = romance, foi utilizado pela primeira vez em 1810 e denomina aquela forma de romance que "representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau de perfectibilidade" (Morgenstern apud Maas, 2000). Morgenstern define o gênero assim:

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido ao seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance. (Morgenstern, 1988, apud Maas, 2000).

O gênero nascido na Alemanha diante das necessidades burguesas constitui então uma forma literária muito estudada e na qual se encaixam romances canônicos como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe e as clássicas histórias de Robinson Crusoé. Sua característica pedagógica parecia preencher a função da literatura no século XIX como instrumento educacional, servindo de exemplo aos leitores das obras. Mas como afirma Benjamim (1994), "O romance de formação (Bildungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance".

O herói do Bildungsroman vive um ciclo no qual seu amadurecimento é o objetivo final. Ele sai da casa paterna, passa por transformações que o mundo lhe proporciona até chegar ao autoconhecimento e autodescobrimento. Em sua trajetória, passa por percalços, dificuldades, instabilidades e normalmente tem sua formação através de instrutores, mentores, pessoas mais velhas e encontros com a arte, com a política e com a vida pública

Bakthin (1997) afirma que há cinco tipos de romance de formação: o primeiro, ligado à tradição idílica do século XVIII, que utiliza ciclos para construir a temporalidade; o segundo conduz sempre o protagonista à desilusão diante do mundo; o terceiro é o do tipo biográfico; o quarto seria o romance de formação didático-pedagógico e por último o realista, sendo este o mais importante: "aquele em que a evolução do homem é indissolúvel da evolução histórica". Nesse tipo, o homem, o herói, se forma ao mesmo tempo que o mundo. É o caso de Os anos de aprendizado... de Goethe, que se aproxima de Ponciá Vicêncio.

No gênero literário romance de formação, entretanto, há pouco espaço para a mulher. Cristina Ferreira Pinto (1990) afirma que o Bildungsroman retrata o processo em que o personagem aprende a ser "homem". A autora confirma esse pensamento valendo-se de várias definições sobre o gênero em que sempre as personagens são tratadas no masculino. Cristina Pinto verificou ainda que embora existissem romances de aprendizagem cujas protagonistas eram mulheres, sua formação enfocava sempre a maternidade e o casamento.

Verifica-se, assim, que nesses romances, as protagonistas têm seu bildung interrompido pelas "obrigações femininas". Elas, diferentemente dos personagens masculinos, não chegam à formação final, confirmando mais uma vez a alteridade da mulher na literatura mundial: "no contexto da sociedade brasileira - e de forma semelhante ao que se vê em outros contextos sociais -, o "feminino" representa a expressão do que tem sido sempre subjugado, silenciado, colocado em uma posição secundária em termos culturais (histórico, político, económico, etc.)" (PINTO, 1990, p. 26).

Sabemos, então, que o chamado "centro" não é mais totalmente válido. Assim, o "marginal", aqui representado em termos de classe, etnia e gênero, assume, como confirma Hutcheon, "uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura não é o monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido" (1991, p. 36).

No caso de Conceição Evaristo, a questão de gênero ainda é acrescida da questão étnica e da questão de classe. É isso que difere, ao meu ver, escritoras como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles entre outras brasileiras, de autoras como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, entre outras tantas escritoras afrodescendentes. É como afirma Leda Martins:

[...] a letra ficcional e poética torna-se, em seus [das escritoras afrodescendentes] textos, um instrumento e um locus privilegiado para uma potente e persistente rasura, descontinuidade e desconstrução, tanto dos inumeráveis vícios de figuratização da persona negra feminina na literatura brasileira quanto de alçamentos de uma voz alterna em relação ao racialismo e sexismo que permeiam oblíquas práticas discursivas. (MARTINS, 2002, p. 219).

No caso de Ponciá Vicêncio, a autora descontinua, rasura e desconstrói o romance de formação através da estilização paródica do género Bildungsroman; a personagem, assim como o herói masculino de Goethe, por exemplo, passa por um ciclo de vida, um percurso de formação em que o protagonista sai da casa dos pais, conhece outra realidade, aprende com outras pessoas e volta ao lar completando seu aprendizado. Entretanto, o ciclo da personagem de Evaristo é bem diferente: em sua diáspora, que repete aquela de seus ancestrais no navio negreiro, Ponciá vai do campo para a cidade à procura de uma vida melhor, entretanto, seus sonhos não se realizam e sua formação passa por momentos muito diferentes dos heróis europeus dos Bildungsroman. A começar pelo sexo, a menina/mulher tem em seu desenvolvimento todos os percalços que a sociedade patriarcal lhe oferece. Essa mesma sociedade também oprime a personagem por sua cor, sua descendência e pela classe social a qual pertence. Seus anos de aprendizado estão, portanto, vinculados a essas especificidades.

A formação de Ponciá é diferente dos heróis dos Bildungsroman conhecidos. A menina começa a aprender a ler com alguns missionários católicos que passam por sua vila a alfabetizar as crianças e batizá-las. Depois que vão embora, ela continua seu aprendizado sozinha, tomando-se, assim, uma das poucas pessoas de sua comunidade que domina a leitura e a escrita. Ao contrário também dos canônicos heróis dos romances de formação, Ponciá não tem um mentor que marque seu amadurecimento; ela herda do avô, que foi escravo, além da condição afrodescendente, a sagacidade, a indignação e um certo olhar vazio, que transcende a realidade. Em sua passagem pela cidade grande, encontra pessoas, como a patroa e o marido, que nada lhe acrescentam enquanto formação, mas que lhe sugam a vivacidade e os sonhos de menina

A memória é, então, para a autora, uma espécie de motor da narrativa. É ela que conduz Ponciá a seu destino e ao seu bildung. Além disso, o conceito de identidade está relacionado ao conceito de memória individual. Para Ricouer (2000), a memória é erigida como critério de identidade e está a serviço da busca desta. É o que acontece com Ponciá, que vive sua busca a partir da memória afirodescendente herdada de seus ancestrais, em especial seu avô Vicêncio. Para Frye (1957), a procura é aventura principal do herói romanesco, o elemento que dá forma à estória romanesca. Ponciá vive essa procura, mas de forma muito diferente dos heróis romanescos que conhecemos na literatura

Para Bhabha (1998), "existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou locus. É uma demanda que se estende a um objeto externo". Se é assim, a própria noção de memória individual tem seu caráter particular, firmado em uma experiência individual, mas é também dependente dos ensinamentos que recebemos dos outros para se constituir. A escritora Conceição Evaristo, em recente depoimento, afirmou que sua literatura é baseada nas histórias que ouviu de sua mãe e de outras pessoas. Ao se identificar com essas histórias, Conceição constrói sua identidade baseada em algo externo. Todos os personagens citados em Ponciá Vicêncio fazem parte de uma rede identitária formada através da memória individual e coletiva que trazem também a nostalgia e melancolia como forma de reapropriação do passado.

Walter Benjamim afirma que "Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens - é a imagem de uma experiência coletiva" (BENJAMIN, 1994, p. 215). É nessa escada que se move a autora em questão, a partir do ponto de vista de sua identidade afro-brasileira e feminina, transmite para seus personagens a experiência da diáspora, revelando a memória coletiva através do olhar nada distante de seus personagens.

Referências

BAKTTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

__________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Unesp, 1998.

BENJAMIM, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1957.

GOETHE, Joham Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ensaio, 1994.

LOBO, Luíza. Auto retrato de uma pioneira abolicionista. In: Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Franciso Alves, 1993.

MAAS, Wilma Patrícia Marzardi Dinardo. O cânone mínimo: o Büdungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 4 ed. Organização, atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.