Conceição Evaristo1: escritora negra comprometida etnograficamente

Omar da Silva Lima

Mineira de Belo Horizonte, Maria da Conceição Evaristo nasceu no dia 29 de novembro de 1946. Filha de Dona Joana e de José. Quanto a esse pai biológico, a autora sabe pouco sobre ele, se vivo, morto ou desaparecido, e considera como sendo seu verdadeiro pai o senhor Aníbal Vitorino, casado com sua mãe.

Aos sete anos, ela foi morar com a irmã mais velha de sua mãe, Maria Filomena da Silva. Essa tia, casada com Antônio João da Silva, o Tio Totó, viúvo de outros dois casamentos e que não tiveram filhos, foram recriados literariamente no romance Becos da Memória. Tio Totó era pedreiro e a Tia Lia, lavadeira, como sua mãe. Aos oito anos surgiu seu primeiro emprego doméstico e ao longo dos anos, outros foram acontecendo. Conceição Evaristo também participou com sua mãe e tia da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas. A vida de lavadeira da mãe da autora, como a de tantas outras, aparece no poema “Vozes-Mulheres”:

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.2

A aquisição da escrita e da leitura por Conceição Evaristo é relatada no artigo “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” (2007, p. 18)3, onde a autora de Ponciá Vicêncio recorda que as mãos de lavadeira da mãe “guiaram os [seus] dedos no exercício de copiar [seu] nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, os difíceis deveres de escola, para crianças oriundas de famílias semianalfabetas”. A tia de Conceição Evaristo, Maria Filomena da Silva, “tinha por hábito anotar resumidamente, em folhas de papéis, datas e acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à economia doméstica a acontecimentos sociais ou religiosos” (Idem, p. 18). À medida que Conceição Evaristo crescia, tais registros diários passaram para sua responsabilidade. Mais tarde, esta experiência foi transformada em matéria do seu discurso literário. Conceição Evaristo crê “que a gênese de [sua] escrita está no acúmulo de tudo que [ouviu] desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em [sua] casa e adjacências” (Idem, p. 19).

Adquirir o conhecimento formal, aprimorar e amadurecer o dom para as letras não foi tarefa fácil para Conceição Evaristo.

Ao terminar o primário, em 1958, Conceição Evaristo ganhou o seu primeiro prêmio de literatura, vencendo um concurso de redação que tinha o seguinte título: Por que me orgulho de ser brasileira?. Quanto à beleza da redação, reinou o consenso dos professores; quanto ao prêmio, houve discordâncias, pois a passagem da jovem escritora pela escola não tinha sido de uma aluna bem comportada. Foi necessária a interferência de Dona Luzia Machado Brandão, professora que trabalhava na Biblioteca, para que a menina negra recebesse o prêmio.

Ao terminar o Curso Primário, Conceição Evaristo fez um Curso Ginasial cheio de interrupções e a partir dos seus dezessete anos, viveu intensamente discussões relativas à realidade social. Foi quando se inseriu no movimento JOC (Juventude Operária Católica) que, como outros grupos católicos, promoviam reflexões que visavam comprometer a Igreja com a realidade brasileira dos menos favorecidos. As questões étnicas só entrariam objetivamente nas discussões da escritora na década de 70, quando parte de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro.

Em 1973, com ajuda de amigos, Conceição Evaristo partiu para o Rio de Janeiro, antigo Estado da Guanabara, depois de ter feito concurso naquele mesmo ano para professora primária. Ela havia terminado o Curso Normal no Instituto de Educação de Minas Gerais, em 1971. Dois anos depois de chegar ao Rio de Janeiro, em 1975, Conceição Evaristo prestou concurso para o quadro de magistério na Cidade de Niterói, local em que trabalhou quase dez anos, como professora do Supletivo. Em 1976, ela fez o vestibular para o curso de Letras na UFRJ. Ela estudava e trabalhava. Nesse mesmo ano também conheceu aquele com quem se casou, Oswaldo Santos de Brito, e teve a sua única filha, Ainá Evaristo de Brito, portadora de uma síndrome genética que comprometeu o seu desenvolvimento psicomotor.

O marido de Conceição Evaristo faleceu em 30 de dezembro de 1989, em Belo Horizonte, quando eles estavam ali para comemorar as festas de final de ano. Sua especial menina, Ainá, tinha nove anos. Ainá segue, com sua mãe Conceição Evaristo, vencendo as previsões médicas, que não lhe davam nem três meses de vida. Além da vitória no campo da sobrevivência, Ainá vem acumulando medalhas de maratonas de atletismo para especiais, na especificidade de corredora.

Em 1993, Conceição Evaristo começou o curso de Mestrado em Literatura Brasileira na PUC/RJ, onde defendeu a dissertação Literatura Negra: uma poética da nossa afro brasilidade, em 1996. Atualmente, mesmo aposentada, Conceição Evaristo vem trabalhando como professora convidada em cursos de especialização de professores, ministrando cursos relacionados à literatura, à educação, ao gênero e à etnia. Além disso, ela busca terminar seu Doutorado em Literatura Comparada, na Universidade Federal Fluminense, UFF, cujo objeto de tese é a Literatura Afro-Brasileira em confronto com a Literatura Africana de Língua Portuguesa, através da pesquisa de parte da produção poética de alguns escritores e escritoras do Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Conceição Evaristo continua residindo no Rio de Janeiro.

A obra de Conceição Evaristo é composta por poesia, romances e contos. Inicialmente, suas poesias, assim como os contos até o momento presente, não foram organizados em publicações individuais. A escritora tem nos Cadernos Negros o veículo para a divulgação de seus poemas e contos. A sua estréia no mercado editorial deu-se nos Cadernos Negros 13, em 1990. Nos Cadernos Negros, consegui fazer o levantamento dos poemas e contos. São 31 poemas e 7 contos e sobre alguns deles tecerei breves comentários mais adiante. Foram publicados com pequenos intervalos de 1990 a 2007 nos referidos Cadernos. Acompanhe quadro abaixo:

 

 

GÊNERO

ANO

TÍTULO

13

Poesia

1990

- Mineiridade (p. 29)

- Eu-mulher (p. 30)

- Os sonhos (p. 31)

- Vozes-mulheres (p. 32)

- Fluida lembrança (p. 34)

- Negro-estrela (p. 35)

14

Conto

1991

- Di Lixão (p. 9 – 12)

- Maria (p. 12 – 15)

15

Poesia

1992

- “Recordar é preciso” (p. 17)

- Menina (p. 17)

- Brincadeiras (p. 18)

- Pão (p. 18)

- Meu corpo igual (p. 19)

- Favela (p. 20)

- Filhos na rua (p. 20)

- Pedra, pau, espinho e grade (p. 21)

- Bus (p. 22)

- Meu rosário (p. 23)

- Stop (p. 24)

16

Conto

1993

- Duzu-Querença (p. 29 – 37)

18

Conto

1995

- Ana Davenga (p. 17 – 26)

19

Poesia

1996

- Malungo, brother, irmão (p. 24)

- A noite não adormece nos olhos das mulheres (p. 26)

- Ao escrever... (p. 27)

21

Poesia

1998

- Todas as manhãs (p. 32)

- Os bravos e serenos herdarão a terra (p. 33)

- Para a menina (p. 35)

- Se à noite fizer sol (p. 36)

- M e M (p. 37)

- Tantas são as estrelas... (p. 38)

22

Conto

1999

- Quantos filhos Natalina teve? (p. 21 – 28)

25

Poesia

2002

- De mãe (p. 36)

- Da velha à menina (p. 38)

- Da menina, a pipa (p. 40)

- Do menino, a bola (p. 41)

- Da esperança, o homem (p. 42)

26

Conto

2003

- Beijo na face (p. 11 – 18)

28

Conto

2005

- Olhos d’água (p. 29 – 33)

- Ayoluwa, a alegria do nosso povo (p. 35 – 39)

30

Conto

2007

- Zaita esqueceu de guardar os brinquedos (p. 35 – 42)

 

Em 2008 a escritora publicou seu primeiro livro de poesia intitulado Poemas da recordação e outros movimentos, pela Editora Nandyala. Esta obra é composta por 44 poemas intercalados por três epígrafes que separam esta antologia em temáticas diferentes: a primeira diz respeito ao afro-descendente e a diáspora negra, com 38 poemas; a segunda é lírico amorosa, com 4 poemas; a última é telúrica e metalinguística, em que a autora se refere à sua terra natal, Minas Gerais, em 3 poemas marcados por um saudosismo romântico que vai além do espaço territorial, alcançando, também, o ofício do fazer poético. Desse total, 31 são poemas migrados dos CN em suas várias publicações das quais Conceição Evaristo participou.

Os romances são dois, publicados pela Editora Mazza, de Belo Horizonte: Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006). Segundo me disse a autora, o próximo lançamento será o romance Sabela, ainda em elaboração.

O romance Ponciá Vicêncio é a obra de Conceição Evaristo mais festejada pela crítica literária. Escrito em 1988, esse romance tem alçado vôos longínquos. Isto talvez por ser uma obra bem elaborada, mostrando assim o domínio da técnica narrativa contemporânea por Conceição Evaristo cujo texto, permeado por uma linguagem poética, dialoga com outros grandes clássicos da Literatura Brasileira. Em novembro de 2007 este romance foi lançado em New York, em versão inglesa, pela HOST Publications, o que torna Conceição Evaristo a segunda escritora afro-brasileira a ter uma obra publicada em terras estrangeiras. A primeira foi Carolina Maria de Jesus com o seu Quarto de despejo: diário de uma favelada. Outra conquista do romance de estréia de Conceição Evaristo foi sua indicação para o Vestibular/2007 da UFMG e da CEFET de Belo Horizonte, fato que propiciou uma edição especial de Ponciá Vicêncio em formato de livro de bolso.

Quando Conceição Evaristo procurou a Editora Mazza Edições para que esta publicasse Ponciá Vicêncio, a autora não encontrou resistência ali, talvez porque já fosse conhecida no meio literário por seus poemas e contos publicados nos Cadernos Negros e por sua obra ser investigada pela crítica nacional e internacional. Entretanto, a 1ª edição deste romance foi totalmente custeada pela autora e a 2ª edição do mesmo custou-lhe só a metade do valor cobrado. Se alguns dos escritores/as brancos têm dificuldades para se inserirem profissionalmente no mercado brasileiro da publicação, para os escritores afro-descendentes é pior. Porém, de acordo com a escritora Conceição Evaristo, todo seu esforço foi válido, pois Ponciá Vicêncio tem lhe “proporcionado momentos de interação muito grande com as pessoas” através das inúmeras palestras e conferências sobre este romance. O sucesso de seu investimento inicial garantiu a publicação do seu segundo romance, Becos da Memória, por conta da Mazza Edições.

À página 9 de Becos da Memória, Conceição Evaristo, numa conversa com o leitor sobre a construção de Becos, informa que este romance foi escrito entre 1987 e 1988. Segundo a autora, este livro foi o seu primeiro experimento em construir uma narrativa, é um texto que nasce anterior aos seus contos e ao romance Ponciá Vicêncio. O enredo de Becos da Memória se desenvolve numa favela, a qual vai sendo dizimada – “Diziam que era para construir um hospital ou uma companhia de gás, um grande clube, talvez.” (BM, p. 108) – ao longo das 167 páginas da narrativa. Assim, o processo de desfavelamento e a miséria são os antagonistas da história que é protagonizada pela pluralidade de personagens que vivem nos becos daquela favela.

Atenção especial é dada à personagem Maria-Nova, uma mocinha negra de 13 anos que adora ouvir as histórias de vida dos mais velhos e, por ser curiosa, sabe o que se passa com a maioria dos moradores dali. Ela “sabia que a favela não era o paraíso. Sabia que ali estava mais para o inferno. Entretanto, não sabia bem por que, mas pedia muito a Nossa Senhora que não permitisse que eles acabassem com a favela, que melhorasse a vida de todos e que deixasse todos por ali” (BM, p. 47), já que não tinham outro espaço para viverem, o que revela a consciência humanitária de Maria-Nova. É através dessa personagem que Conceição Evaristo denuncia as mazelas sociais que atingem os moradores de qualquer favela, o que leva a autora a conceituar este espaço como sendo “Duas idéias, duas realidades, imagens coladas” que machucam o peito de Maria-Nova, metaforizadas pela imagem da “Senzala-favela” (BM, p.70). Por intermédio de Maria-Nova que a autora apresenta, também, as personagens Vó Rita, Tio Totó, Maria-Velha, Bondade, Mãe Joana, Negro Alírio, Cidinha-Cidoca, dentre outros, com suas células dramáticas desenvolvidas do início ao desfecho em forma de episódios, o que lembra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.

No final deste romance, restam na favela apenas Vó Rita em companhia da misteriosa “a outra”, que é enferma do Mal de Hansen, mas dali iriam para a Colônia São Lázaro (BM, p. 165), onde a amiga de Vó Rita receberia cuidados médicos em seus últimos sopros de vida. Fica a lição de resistência, luta e fé na vida, em que o amor é um dos remédios para curar as desigualdades entre os homens.

A escritora Celeste Dolores Mann (1995, p. 176) inclui Conceição Evaristo no grupo das autoras que procuram mostrar uma imagem mais positiva da mulher negra, porque a autora de Ponciá Vicêncio, ao situar suas personagens femininas negras no enredo, mesmo que elas estejam desempenhando papeis estereotipados da mulher negra, como doméstica ou prostituta, fazem com que elas transcendam estas funções e lhes dá uma dimensão humana mais abrangente. Acrescento que essa imagem é realista, com todos os seus problemas sócio-econômicos, mas sem deixar de representar a vibração e a alegria do povo negro.

As poesias e os contos de Conceição Evaristo ampliam a temática sobre a mulher negra por meio de diferentes situações. Sua poesia abarca temas que focalizam a maternidade, a pobreza, a mineiridade, o telúrico, o amor, homenagens a amigos e outros. Os contos, em geral, trazem uma temática ligada à vida na favela, com seus dramas e tragédias. Para demonstrar como se dá esta ampliação temática, comentarei sucintamente alguns poemas e contos.

A poesia foi a primeira expressão literária de Conceição Evaristo. O eu-lírico feminino é emblemático e alguns dos temas mesclam-se em um mesmo poema, como em “Todas as manhãs” (CN 21, 1998, p. 32). Nesse poema podem-se vislumbrar dois tempos: um presente e um passado incluso naquele. A expressão “Todas as manhãs...” aparece nas três estrofes do poema como variações: “Todas as manhãs acoito sonhos” // “Todas as manhãs tenho os punhos/ sangrando e dormentes” // “Todas as manhãs junto ao nascente dia/ ouço a minha voz-banzo”. Este presente fala do sofrimento que a “lida”, imprime à vida desse sujeito de enunciação. O passado se esgueira, por exemplo, em expressões como, “voz-banzo”, ou nos versos que trazem uma alusão aos tempos de escravidão: “onde os homens enterram/ a esperança roubada de outros homens”. Esses versos nos levam a inferir sobre os senhores de escravos que enterravam a esperança roubada de outros homens, os escravos do quais tinham usurpada a esperança de liberdade e mesmo de vida, de vida familiar. Nos nove últimos versos do poema,

E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.

Observa-se que a esperança foi enterrada, mas não destruída, porque “negras sementes resistem [...] em nós”. Essa esperança e o veio memorialista permanecem nas duas obras em leitura, como veremos adiante.

No poema “Vozes-mulheres” (CN 13, 1990, p. 32 – 33) o sujeito de enunciação por meio da gradação ecoa as vozes das mulheres de uma mesma família através das gerações. A primeira voz emitida é a da bisavó do eu-lírico, quando criança e dentro dos “porões do/ navio”, lamentando “uma infância perdida”. A voz seguinte é a voz da avó que “ecoou obediência/ aos brancos-donos de tudo”. Segue-se a voz da mãe que

ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela [...]

Essas três vozes figuram, marcadas pelo verbo no pretérito perfeito, passado categórico, três momentos históricos de escravidão. Nas duas primeiras a escravidão institucionalizada em tempos distantes e pouco distantes do sujeito lírico, a última voz fala de um passado próximo, e de uma falsa liberdade, pois a mãe continua escravizada economicamente, foi obrigada a se submeter aos possíveis maltratos verbais, exigências absurdas e provavelmente a baixos salários e, ainda, morar em favela sem conforto. Daí a voz que “ecoou baixinho revolta”.

A voz do sujeito lírico recolhe o passado e o presentifica, pois a sua “voz ainda/ ecoa versos perplexos/ com rimas de sangue/ e/ fome”. Esse ecoar memorialista de sofrimentos passados é recolhido pela última voz: a da filha, que “recolhe todas as nossas vozes/ recolhe em si/ as vozes mudas caladas/ engasgadas nas gargantas”. A voz da filha ao colher “[o] ontem – o hoje – o agora”, “se fará ouvir [nela] a ressonância/ o eco da vida-liberdade”. Esse “eco da vida-liberdade” não representa apenas a vida-liberdade da filha, mas simboliza o eco que atingirá os afrodescendentes, como uma bandeira de liberdade, ou seja, a memória do passado é o adubo para construção de presente e futuro melhores. Dentro dessa temática memorialista, presente – passado tem-se, dentre outros, os poemas “Meu rosário” (CN 15, 1992, p. 23), “Malungo, brother, irmão” (CN 19, 1996, p. 24 – 25) e “Para a menina” (CN 21, 1998, p. 35).

Para fechar a análise dos poemas tome-se apenas um exemplo que tem como problemática a atualidade das favelas com as dificuldades de toda ordem. Trata-se do poema “Favela” (CN 15, 1992, p. 20):

Barracos
montam sentinela
na noite.
Balas de sangue
derretem corpos
no ar.
Becos bêbados
sinuosos labirínticos
velam o tempo escasso
de viver.

A linguagem condensa em 10 versos por meio de imagens violentas – “Balas de sangue / derretem corpos / no ar” – realidades e frustrações que fundem metonimicamente homens e espaços – “Becos bêbados / sinuosos labirínticos” – que “velam o tempo escasso / de viver”. O poema nos faz lembrar as estatísticas sobre os jovens do morro cuja vida, em geral, não chega aos 25 anos. São, os jovens, sonhos e esperanças prematura e cruelmente interrompidos. Mas como dizem os últimos versos do poema “Pedra, pau, espinho e grade” (CN 15, 1992, p. 21) “os seus sonhos esparramados / adubam a vida, multiplicam / são motivos de viagem” para outros que, talvez, tenham melhor sorte.

Esse comprometimento com a temática negra verificado nos poemas ocorre, como já mencionado, nos contos e nos livros, os quais têm como um dos elementos chave da configuração das narrativas, o espaço. Este, como local das ações e da vivência das personagens, serve também como espaço que demarca a marginalização das personagens negras4 como se verá, primeiro, nos contos e, no capítulo seguinte, nos livros.

Nos contos de Conceição Evaristo, publicados nos Cadernos Negros, o tema mais recorrente, mesclado a outros subtemas como violência, dificuldades financeiras, é o da maternidade. As mães são representadas das mais variadas formas. Têm-se as mães heróicas que trabalham para sustentar os filhos apesar de todas as dificuldades como em “Maria” (CN 14, 1991, p. 12 – 15), “Beijo na face” (CN 26, 2003, p.11 – 18), “Olhos d’água” (CN 28, 2005, p. 29 – 33); a mãe por acidente que aborta ou termina dando a maioria dos filhos ou se torna mãe de aluguel, como em “Quantos filhos Natalina teve?” (CN 22, 1999, p. 21 – 28). Há, ainda, outras modalidades de mães.

A gênese de alguns contos me foi dada pela própria autora em entrevista, via e-mail. As fontes dos contos são as mais variadas: “Di Lixão” (CN 14, 1991, p. 9 – 12) foi inspirado em uma conversa com um menino vendedor de amendoim que se referindo a uma pedrada recebida por seu irmão, jurava vingança; o conto “Maria” nasceu de uma conversa ouvida dentro de um ônibus entre duas mulheres, que escaparam de ser assaltadas por conhecer um deles; o conto “Ana Davenga” (CN 18, 1995, p. 17 – 26) foi inspirado na letra de música “Meu guri”, de Chico Buarque.

Vejamos a leitura sucinta de uns dois contos para reforçar a proposta desse trabalho e mostrar que o comprometimento etnográfico afro-descendente da autora abarca toda a sua produção em prosa e verso. Tomemos o conto “Ana Davenga”. Nele encontram-se imbricadas a impossibilidade de um amor duradouro e da maternidade, devido à condição de favelada. Ana, negra de grande beleza, conheceu o seu amor em uma roda de samba. Ele era chefe de uma quadrilha e a leva para morar com ele em seu barraco, seu quartel general, onde planeja com seu bando os mais variados assaltos. Estavam cada vez mais apaixonados um pelo outro. Ana adota o nome do amado e que dá nome ao conto. Ela engravida, aumentando mais ainda a felicidade dos amantes. O mundo em que vivia e convivia com o bando de Davenga era cercado por inimigos: quadrilha oposta à sua e a polícia. Esta procurava Davenga há muito tempo e foi na madrugada da festa de aniversário de Ana que ocorreu o desfecho trágico. Após a saída dos amigos, os amantes dormiam plenos de felicidade, quando a porta do barraco foi aberta violentamente e dois policiais entram de armas em punho e outro policial do lado de fora empurrou a janela e apontou a arma para Ana. Ela encolheu-se protegendo a barriga e Davenga tentou vestir a roupa, a mando dos policiais, mas sem completar a ordem, foram fuzilados sumariamente. Assim, o sonho de maternidade como continuadora de uma paixão é interrompido por causa da vida bandida do homem de Ana.

A tragédia não atinge somente os adultos e jovens, mas também as crianças, vítimas de situações adversas, como no conto “Zaita esqueceu de guardar os brinquedos” (CN 30, 2007, p. 35 – 42). O espaço, como na maioria dos contos de Conceição Evaristo, é uma favela com suas vielas muito estreitas e becos onde o perigo estava à espreita. A protagonista é uma menina, Zaita, com 8 ou 9 anos, entre quatro irmãos. Os mais velhos estavam um no exército e o outro na liderança de grupo novo de bandidos, mas bem armado. As meninas, Zaita e Naita, são irmãs gêmeas, nasceram bem depois; embora fossem fisicamente iguais, tinham temperamentos diferentes. Um dia, brincando sozinha, Zaita descobre que sumiu a sua figurinha preferida, “a figurinha-flor”. O conto gira em torno da busca da menina por esta figurinha. Procurou debaixo do travesseiro onde tinha posto, depois na caixa dos brinquedos, espalhando-os pelo pequeno barraco, e não a encontrou; sai, então, pela vizinhança e depois pelos becos. Distraída em sua busca, a menina não prestou atenção ao tiroteio, tão freqüente na favela, e nem ao aceno que lhe faziam para entrar em uma casa qualquer. No beco em que ocorria o tiroteio outras crianças brincavam e muitas como Zaita foram atingidas por balas perdidas. Desse modo, os contos de Conceição Evaristo figuram, com algumas exceções, a vida de muitos afrodescendentes espalhados, principalmente, pelas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras.

Conceição Evaristo escreve de forma densa e seu estilo é demonstrado pelo uso de uma linguagem poética que transcende seus textos poéticos e desemboca, muitas vezes, nos seus textos em prosa – “Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome, a desesperança...” (BM, p. 51) -. A formação de palavras compostas é bastante usual em sua escritura e constrói bonitas imagens/mensagens como em “sangue-raiz”, “vida-liberdade”, “coragem-desespero”, “útero-terra”, “viver-morrer”, “manhã-menina”, dentre outras. Segundo a própria autora, as marcas de sua linguagem apontam para as culturas africanas, revelando a influência da etnia bantu na cultura negra do Brasil. O termo bantu, uma variação de banto, designa, de acordo com Nei Lopes (2004, p. 98-99), “cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiquenhos etc”. Tal influência bantu aparece na produção de Conceição Evaristo, principalmente, no resgate da Diáspora Africana por meio do recurso memorialístico de personagens ou do eu-lírico nos poemas. Assim, o tempo predominante na produção da autora, principalmente nos romances, é o psicológico, de forma que ela faz uma releitura própria e crítica do período escravocrata brasileiro e oportuniza ao leitor fazer a leitura de um eu enunciador que é e se mostra negro e comprometido etnograficamente.

Referências

ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

DURHAM, Carolyn Richardson. Women writers, black, in Brazil, literature written by women of African descent in Brazil. In: Africana: the encyclopedia of the African an African American experience/editors, Kwame Anthony Apriah, Henry Louis Gates. New York: Basic Civitas Books, A Member of the Perseus Books Group, 1999. p. 2014-2016.

_____. Narrative strategies and racial violence in two afro-Brazilian short stories. In: Palara: publication of the Afro-Latin/American n. 4. USA: Fall, 2000. p. 16-22.

EVARISTO, Conceição. Mineiridade. Eu-mulher. Os sonhos. Vozes-mulheres. Fluida lembrança. Negro-estrela. In: Cadernos negros 13: poesia. São Paulo: Quilombhoje, 1990. p. 29-36.

_____. Di Lixão. Maria. In: Cadernos negros 14: contos. São Paulo: Quilombhoje, 1991. p. 9-15.

_____. “Recordar é preciso”. Menina. Brincadeiras. Pão. Meu corpo igual. Favela. Filhos na rua. Pedra, pau, espinho e grade. Bus. Meu rosário. Stop. In: Cadernos negros 15: poesia. São Paulo: Quilombhoje, 1992. p. 17-24.

_____. Duzu-Querença. In: Cadernos negros 16: contos. São Paulo: Quilombhoje, 1993. p. 29-37.

_____. Ana Davenga. In: Cadernos negros 18: contos. São Paulo: Quilombhoje, 1995. p. 17-26.

_____. Malungo, brother, irmão. A noite não adormece nos olhos das mulheres. A escrever... . In: Cadernos negros 19: poesia. São Paulo: Quilombhoje, 1996. p. 23-27.

_____. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Letras) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996.

_____. Todas as manhãs. Os bravos e serenos herdarão a terra. Para a menina. Se à noite fizer sol. M e M. Tantas são as estrelas... . In: Cadernos negros 21: poesia. São Paulo: Quilombhoje, 1998. p. 32-39.

_____ Quantos filhos Natalina teve?. In: Cadernos negros 22: contos. São Paulo: Quilombhoje, 1999. p. 21-28.

_____.De mãe. Da velha à menina. Da menina, a pipa. Do menino, a bola. Da esperança, o homem. In: Cadernos negros 25: poesia. São Paulo: Quilombhoje, 2002. p. 36-43.

_____. Beijo na face. In: Cadernos negros 26: contos. São Paulo: Quilombhoje, 2003. p. 11-18.

_____. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

_____. Olhos d’água. Ayoluwa, a alegria do nosso povo. In: Cadernos negros 28: contos. São Paulo: Quilombhoje, 2005. p. 29 -39.

_____. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.

_____. Ponciá Vicêncio. 1ª reim. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006. (Edição Especial).

_____. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Organizado por Marcos Antônio Alexandre. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-21.

_____. Ponciá Vicencio. Translated by Paloma Martinez-Cruz. New York: HOST Publications, 2007. 145 pages.

_____. Zaita esqueceu de guardar os brinquedos. In: Cadernos negros 30: contos. São Paulo: Quilombhoje, 2007. p. 35 – 42.

_____. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

 


 1 Dados biográficos de Conceição Evaristo coletados dos textos Conceição Evaristo por Conceição Evaristo (Depoimento inédito concedido a mim, via e-mail em 18/12/2007) e “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”, de autoria da Conceição Evaristo.

2 EVARISTO, Conceição. Vozes-Mulheres. In: Cadernos Negros 13, 1990, p. 32-33.

3 Este artigo está inserido no livro Representações performáticas brasileiras, organizado por Marcos Antônio Alexandre. No “Prefácio” desta obra, página 11, a pesquisadora Sara Rojo informa que o artigo de Conceição Evaristo é uma mistura de ficção com a crítica. Sendo assim, esse “exercício escritural joga por terra a fronteira entre ambas as correntes; nele se discute o lugar da escrita, mas a partir do próprio corpo do sujeito-objeto do enunciado”, conclui a autora.

4 Nos poemas os espaços marginalizados aparecem poucas vezes, como uma inferência ou alusão em vocábulos ou expressões como “favela”, “barraco”, “becos”, entre outros, em função da própria linguagem condensada de lírica.

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