Dos vários territórios de uma produção

Emerson Inácio*

Há cerca de 8 anos fui apresentado à Cidinha da Silva, nos corredores da USP, acho! Na verdade, me perco, posto que, fraco de memória, nada tenho dos recursos dos mais velhos e dos griots, acostumados a, “de cabeça”, lembrar fatos, histórias, mitos, curas e receitas. Acho que por isso escrevo, anoto e critico, num constante exercício de registro que me garante, em algum grau, não me perder e nem me trair. Escrevo, como muitos, para me manter vivo, não na memória, mas no grafado, no datilografado, e me converto, escrevente, num arquivo guardado e convertido em bits e bytes nos HD’s e pen drives da vida, da minha e de outros. Diga-se, de passagem, memórias tão virtuais quanto o é a nossa própria memória, falháveis e falíveis por natureza.

Cabe aqui o resgate à memória, uma vez que ela caracteriza de maneira mais intensa o animal humano, sendo parte relevante na construção de gostos, afetos e predileções, dado que o ato de rememorar se liga intimamente à formação de nossos sentimentos sobre as coisas e o nosso olhar o mundo.

O pequeno passeio pode parecer em princípio distanciado do que nos traz aqui – celebrar neste momento 10 anos de vida literária de Cidinha da Silva. Pra melhor circunstanciar essa minha contribuição, darei ênfase a três aspectos da sua obra, seguido do meu olhar sobre os vários territórios pelos quais trafega a obra desta mineira.

Posso parecer tirar momentaneamente o olhar sobre a obra e sobre a autora para localizá-lo sobre o crítico. Afinal, o mau uso do cachimbo faz torta a boca. Mas pelo contrário, constitui-se como um comentário paralelo ao seu trabalho literário, que tem como um de seus temas geradores o percurso das memórias – mais ou menos ficcionais – tanto suas, penso, como de parte de homens e mulheres negras, brasileiros e brasileiras. Ou seja, vivifica, em textos como “Amor na pós-modernidade”, de Você me deixe, viu?, e “Licença aos meus que já foram”, de Cada tridente em seu lugar, a experiência sentida e que precisa ser lembrada textualmente, por um gesto autoral ora plenamente autobiográfico ora fruto de um olhar que observa na miudeza das coisas um motivo a mais para retirá-las do comum e relocalizá-las em espaços universais de beleza capazes de serem acessados com facilidade por seu leitor, tenha ele a idade que for. Aqui, um outro aspecto que nessa década me parece recorrente na obra da autora aqui próxima: certa preocupação com quem lê e, claro, tanto com o efeito do texto lido como com a capacidade de formação que o relato da experiência pode gerar nesse leitor.

Assim, um primeiro território em que esta literatura de que falo habita: aquele relativo à cidadania e a preocupação com os Direitos Humanos, pelo resgate da força sedimentar da literatura, ou seja, de sua capacidade de duplamente sensibilizar, por sua força estética, claro; mas também pela capacidade de nos obrigar, leitores, a olhar, a perceber no fato narrado de maneira simples, com jeitos de dedos de prosa, a profunda questão envolvida ali. Cito um exemplo: em “Wilson Simonal de Castro” transcende ao anedotário jocoso acerca da vida e da obra do cantor que dá título à crônica para por em letras a questão racista que, de fato, rondava o imaginário de seus ouvintes e que redunda nos vários deslocamentos a que o artista fora relegado no panorama musical brasileiro. O leitor vê-se duplamente provocado: primeiro a descobrir, afinal, de quem se trata, sendo lançado para o além-texto; tendo descoberto de quem se tratava e as histórias que o cercaram, leitor e texto celebram o pacto definitivo, que é repensar a história de Simonal tendo por horizonte a demolição total do mito da democracia racial brasileira.

A segunda observação que faço à obra de Cidinha – desde há muito “afilhada” e afiliada – dirá respeito à leve fronteira que ocupa no panorama dos gêneros literários. E aqui, novamente, lanço mão de um discurso duplamente orientado: o que diz respeito tanto a forma propriamente dita, quanto ao aspecto polígrafo de sua obra, uma vez que conto, crônica, novela e teatro vão se alternando e, em alguns casos, se misturando. Aliás, sobre este aspecto, ainda que Cidinha não pertença a nenhum grupo estético formalizado – pelo contrário, trafega por muitos – adota um procedimento formal que muito caracteriza a geração de escritoras e escritores surgida a partir dos anos 2000: a constante mistura de gêneros, de formas, que fazem do poema texto em prosa; da prosa, poesia, usando num campo elementos caracterizadores de outra expressão, como acontece no acalentado “Durga e a Senhora das Águas”, mas não só, que cito: “Vestirei o traje azul brilhante de Durga e emitirei raios que te darão tônus e calma. E quando quiseres descansar tua força descomunal, te oferecerei dez mãos macias e poderosas, fortes o suficiente para te amparar.”

Disfarçado de crônica que não é, o texto, primeiro, foge do universo cronológico e circunstancial da crônica, estabelecendo-se, na verdade, a partir da expressão de um desejo e de uma individualidade muito mais comuns no poema. No trecho que citei, por exemplo, salta aos ouvidos a sucessão de T’s, S’s, D’s (“E quando quiseres descansar tua força descomunal...”), bem como uma insistência das vogais A e O abertas, o que pode revelar uma clara preocupação formal que parece ora um sussurro, pela repetição dos S e do M, ora um som mais seco pela insistência em T’s, D’s, Q’s. Noutras palavras: há uma poeta nessa prosadora ou, pelo menos, alguém que não perde certo cuidado com o aspecto sonoro, rítmico do texto está sempre presente.

Meu terceiro movimento dirá respeito à inserção do trabalho literário de Cidinha da Silva no panorama emergente da Literatura Negrobrasileira, só para demarcarmos aqui um campo identitário e estético mais específico.

Penso que esta produção hoje esteja demarcada pela tentativa de se construir uma poética – um conjunto de procedimentos, portanto – muito caracterizados pela retomada das heranças da matriz africana no Brasil. Por outro lado, essa poética insiste na repetição de referenciais que em muitos casos beiram o estereótipo. Insisto no fato de que a variedade discursiva e temática torna tanto mais universal uma produção literária, como colabora para a caracterização de um campo específico no universo da escrita. Noutras palavras, não se trata apenas de insistir na tematização do preconceito, da exclusão e do racismo, da escravidão ou de elementos que demarquem a experiência religiosa, como, também, avançar sobre a abordagem de outros temas que conformem a amplitude e a capacidade criativa da textualidade negrobrasileira.

Neste quesito, devo observar com orgulho, que a produção literária de Cidinha da Silva constrói-se, justamente, nesse avanço temático, não deixando, claro, de retornar e retomar temas que caracterizam a realidade atual das pessoas negras no Brasil. Não, não estou desvinculando a obra da poeta de seu universo dialógico mais próximo, ou seja, da produção negrobrasileira ou afrodescendente, posto que assim eu iria contradizer o conjunto da obra que ora discuto. Mas quero denotar a capacidade de Cidinha de trafegar com tranquilidade sobre questões que se ligam desde à cultura de massa, ao futebol, às suas memórias mais pessoais ou ao lirismo amoroso, marcando a sua identidade de mulher negra nos textos que escreve. Também não se trata de propor aqui a diluição da autoria negra, já que isso seria, novamente, propor um desbotamento identitário, um embranquecimento desnecessários à construção de uma poética negra; mas, sim, de querer ver no papel e nos palcos o grande potencial criativo atinente aos artistas negros e que podem de fato demarcar a sedimentação de um campo estético específico, com procedimentos específicos e com um público leitor que não só se leia, mas que também se leia no outro, entendendo nessa leitura o jogo entre as identidades e as alteridades que conformam essa literatura de assinatura negra.

Cidinha, nesse campo, é uma autora feliz e uma feliz autora, já que se move entre Os Nove pentes d’África (2009) e seu Baú de miudezas (2014) mesclando olhares muito conscientes de seu papel formador, tanto de um campo específico – o da Literatura Negrobrasileira – quanto da universalidade que atrai leitores e leitoras não negros à leitura de seus livros.

Por último, explico o título que atribui a esta minha intervenção crítica, mas bem autobiográfica, da obra de Cidinha da Silva. Autobiográfica, explico, porque falo do que leio e de como me leio nesse universo literário.

Quando reclamo aqui uma “Desterritorialidade” para a obra de Cidinha da Silva, faço-o muito baseado naquilo que acabo de dizer sobre avançar com e a partir de uma estética negra brasileira. E disso advém esses múltiplos territórios que ocupam esta obra e que por esta obra também são ocupados. Deixo claro que desterritorializar-se, no pensamento de Deleuze e Guattari, pode se tratar, também, da capacidade que temos de abdicar de uma identidade ou de um sentido formatado dentro das lógicas usuais do mundo contemporâneo ou das formas que temos de conhecer e conceber o conhecimento mesmo. A obra de Cidinha, no caso, vai torcendo essas premissas, esse já dado muito comum à literatura brasileira, ocupando com desenvoltura o lugar do texto engajado, do texto preocupado com os embates étnico-raciais brasileiros, com a formação de uma consciência negra contemporânea; ao lado disso, as questões relativas à dessubalternização das mulheres e da experiência negra, os direitos humanos, as questões relativas às sexualidades e às suas dinâmicas. São todos lugares de sua obra, ainda que ela esteja no breve intervalo entre todas essas coisas, ali, naquela zona de sombra em que a deriva e a indefinição, como “a inconstância das ondas, a serenidade em nós”, gera sentido para as nossas vidas.

Trata-se, portanto, de uma obra que por trafegar em muitos territórios, ocupa um lugar singular. E bem sabemos que tudo o que é singular não pertence a campos específicos, mas a grande dinâmica da vida e do mundo. Sobre essa grande dinâmica, fecho com uma fala da própria Cidinha: “E como a literatura é um jogo jogado junto, meu barato é armar, pôr a bola pra rolar e deixar meus leitores na cara do gol”.

 

* Emerson Inácio é Doutor em Letras Vernáculas e Literatura Portuguesa. É professor da Universidade de São Paulo. Pesquisador do CNPq e autor de A herança invisível: ecos da ‘Literatura Viva’ na poesia de Al Berto (2013).

 

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