A importância da leitura e da escrita para Carolina Maria de Jesus:
uma análise do seu Quarto de despejo1

Elisângela Aparecida Lopes*

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar e avaliar a configuração da leitura e da escrita no diário Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, a fim de que se possa perceber como ambas as atividades que envolvem o texto literário são vislumbradas pela escritora como forma de marcar sua condição étnica, social e feminina nesse texto de cunho testemunhal.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus. Leitura. Escrita. Gênero. Etnia.

The importance of reading and writing for Carolina Maria de Jesus:
an analysis of Quarto de Despejo

ABSTRACT: This article intends to present and evaluate the configuration of reading and writing in the diary Quarto de Despejo, by Carolina Maria de Jesus. It aims at evidencing how these two activities involving literary text are glimpsed by the writer, so as to underline her ethnic, social and female conditions in this text, which is composed by strong testimonial characteristics.

Keywords: Carolina Maria de Jesus. Reading. Writing. Genre. Ethnicity.

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro”.

Quarto de despejo, p .147

 

O presente ensaio tem como objetivo analisar os papéis desempenhados pelo ato de leitura e pela escrita no livro Quarto de despejo: diário de uma favela, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960. Esse texto retrata o cotidiano de miséria, fome, violência e marginalização que se fazem presentes na vida da escritora. A voz de Carolina configura-se como a marginal e é desse lugar que ela “lê” a cidade de onde mora: “[...] eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2000, p. 28). O lugar de fala da autora, assim como sua condição feminina e étnica são de extrema importância para se pensar os papéis exercidos pela escrita e pela leitura no cotidiano de atribulações que a autora documenta.

Maria José Motta Viana, em seu livro Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, aponta alguns motivos que fazem da escrita do diário uma prática recorrente entre as escritoras brasileiras. Um deles é a possibilidade de, através dessa escrita, a figura feminina poder reaver-se enquanto sujeito. É através da escrita que Carolina torna-se sujeito de si mesma, uma vez que põe no papel seus dramas e angústias, seus medos e frustrações; e através dela torna-se sujeito social ao retratar a pobreza e a miséria presente no “quarto de despejo”.

Segundo Vianna, outra característica do diário é a prisão ao cotidiano e daí a constante repetição. Em se tratando dos escritos de Carolina, a repetição é uma marca. A descrição dos acontecimentos dos seus dias inicia-se sempre da mesma forma, ou seja, é marcada pela rotina: levantar, pegar água, voltar para casa, cuidar dos filhos, catar papel. Curioso é que em determinando momento do livro a repetição parece incomodar a própria escritora, ao anotar no dia 16 de junho: “[...] vocês já sabem que eu vou carregar água todos os dias. Agora vou mudar o início da narrativa diurna, isto é, o que ocorre comigo durante o dia” (JESUS, 2000, p. 110). A partir de então a descrição minuciosa cede lugar a uma frase enxuta “fiz meus deveres”. Vianna aponta também para o caráter fragmentar do diário: o relato do dia-a-dia torna-se uma unidade a partir do momento em que é escrito, tal unidade constrói-se também através do trabalho de tessitura dos significados feito pelo leitor-artesão.

A escrita da experiência vivenciada ou a literatura de testemunho de Carolina Maria de Jesus caracteriza-se não só pela descrição intimista, mas também por um forte tom de denúncia. Nesse sentido, conforme nos alerta Ricoeur, a literatura de testemunho configura-se enquanto “huella sentimental” (marca sentimental), mas também como “huella social” (marca social): lugar de fala, manifestação da alteridade. Os constantes questionamentos político-sociais presentes no diário de Carolina, assim como as denúncias da discriminação social que sofria marcam a marginalização dentro da marginalização: Carolina era discriminada por ser pobre, negra, mulher, catadora de papel, mãe solteira e escritora. Nesse momento é importante ressaltar o comentário de Maria Madalena Magnabosco sobre a importância dos textos da autora:

Os diários de Carolina Maria de Jesus podem ser, assim, considerados testemunhos que borram as fronteiras da literariedade ao denunciarem uma outra experiência do sujeito do feminino, a partir das vivências e posições de enunciações da autora, a qual buscou – pelo conteúdo da narrativa e não por sua forma – simbolizar o que escapou e continua escapando aos olhares progressistas da modernização, ou seja, as fraturas expostas pela miséria ecológica, econômica, emocional e relacional, cruamente expostas na favela de Canindé”. (MAGNABOSCO, 2002, p. 147).

A literatura de testemunho enquanto escrita de experiências-limite é o relato do que foge à “normalidade”, conforme Seligmann-Silva, testemunha-se algo excepcional e que exige um relato, algo que foge aos limites da compreensão humana e que precisa ser documentado, trazido à tona. Nesse sentido, a excepcionalidade do diário de Carolina é o relato da fome.

Após esse breve introito iniciaremos a discussão que fundamenta esse texto: qual é a importância dada à leitura e à escrita por Carolina Maria de Jesus? Qual é a importância desses dois processos para a autora a partir da leitura do seu diário?

Em vários momentos do Diário, a prática da leitura, sempre presente no cotidiano da autora, preenche os espaços vazios do tempo. Quando chove e ela se vê impossibilitada de sair para catar papel, debruça-se sobre o livro. Antes de dormir, ela lê para acalmar, relaxar e viajar. Depois de receber gêneros alimentícios doados por um centro espírita, Carolina acalma a fome e os ânimos: “o nervoso que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler”. (JESUS, 2000. p. 10), porém a leitura é logo interrompida pelo pedido de pão por parte dos filhos. Depois de saciar as suas duas fomes: a de pão e a de leitura, Carolina repousa.

Além disso, a leitura e a escrita distinguem a autora dos demais moradores da favela. Ela, uma mulher semianalfabeta que estudou por dois anos no Colégio Allan Kardec – primeira escola espírita do Brasil – mantida pela senhora para quem sua mãe lavava roupas, torna-se, naquele universo marcado pelo analfabetismo e pela falta de oportunidades, os olhos que fazem o movimento de saída e retorno ao quarto de despejo. Ela lê para as mulheres da favela uma notícia de jornal que informava sobre o assassinato envolvendo um deputado recifense. As mulheres diante da brutalidade do fato e talvez por serem informadas de que crimes acontecem também na “sala de visitas” revoltam-se e rogam uma praga ao assassino.

Em outro momento a autora associa às suas duas paixões a solidão em que vive. Seu Manuel, comerciante do lugar e um dos pretendentes da autora, vive a procurá-la e a informá-la do desejo que possui de a ela se unir. No dia 02 de junho de 1958, encontramos no diário a seguinte reflexão:

O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, o homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal (JESUS, 2000, p. 44).

O primeiro motivo anotado pela autora para refutar a união refere-se a sua idade. Aos 44 anos, com três filhos e sem grandes perspectivas de vida, prefere continuar sozinha... No entanto, parece-nos que tal argumento apresenta-se como insuficiente para a própria autora ao buscar uma outra justificativa de recusar a união. Podemos pensar que ela esteja apontando para a impossibilidade de compartilhar leitura, escrita e união afetiva. Nesse sentido, elege como única companhia em seu leito os livros e os cadernos achados nos lixos da cidade nos quais anota suas reflexões e angústias. Viana, no livro citado, comenta a mesma passagem transcrita acima com uma perspectiva complementar de leitura dessa anotação:

a autora nos oferece uma surpreendente demonstração de lucidez e entendimento da ameaça que a escrita da mulher pode representar [...] Em outros termos, Carolina M. de Jesus reconhece que deve ser difícil para o homem ver-se preterido em favor de outro desejo e de outro prazer que não ancore nele (VIANA, 1995, p. 69).

Em vários momentos do texto Carolina deixa claro o quanto preza a sua liberdade ao afirmar e reafirmar que cria sozinha os filhos, que mantém sozinha sua família, que é dona de si e que domina seus impulsos. Nesse sentido, a inserção de um homem em sua vida pode ser vista como uma ameaça, a partir do momento em que este se configura como elemento de dominação capaz de paralisar o seu processo de afirmação enquanto mulher, mãe e escritora. Talvez, mesmo diante do comentário que fizemos, uma questão não tenha sido esclarecida. Quando Carolina registra: “Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal”, cabe a nós perguntar: que ideal é esse? A resposta pode ser encontrada vinte e uma páginas antes: “todos tem um ideal. O meu é gostar de ler”. (JESUS, 2000, p. 23).

Nas entrelinhas do texto podemos compreender uma nova faceta para a autora do que seja o ato de ler. Nas anotações de 27 de junho de 1958, ela aponta para o caráter vicioso da leitura: “tem muitas pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga [...] Eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool” (JESUS, 2000, p. 65). Nessa anotação, há dois elementos que precisamos ressaltar: o livro, a possibilidade de leitura e da escrita diferem Carolina dos demais moradores da favela, conferindo a ela um certo status social. Para a autora, “o livro é a melhor invenção do homem” (JESUS, 2000, p. 22). Além disso, ao associar a leitura ao vício da bebida, a autora indicia que tal prática permite a ela embriagar-se, viajar pelo desconhecido, fugir da dura realidade na qual está imersa, sonhar. Enquanto práticas indissociáveis, a leitura fornece elementos para a escrita e a ambas se vincula o exercício do imaginário. Essa associação encontra-se poeticamente inscrita nas anotações do dia 12 de junho:

Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes. Que a minha vista circula no jardim, e eu contemplo as flores de todas as qualidades [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (JESUS, 2000, p. 52).

Enquanto escreve Carolina pousa o lápis sobre o papel e começa a imaginar uma outra vida para si. A leitura e a escrita, enquanto práticas solitárias, são interrompidas pela necessidade de reflexão, pela manifestação do imaginário. Barthes, em seu texto “Escrever a leitura”, traduz poeticamente a fragmentação do ato de ler: “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” (BARTHES, 2004, p. 26). Ao escrever e ler sua escrita, Carolina levanta a cabeça para se imaginar em uma realidade outra e cria um mundo imaginário, ideal, fugindo da pele preta que a encarcera e do lugar preto onde mora.

A fome, a miséria, a violência são os fatos do cotidiano que alimentam a escrita de Carolina e ela vê nisso um paradoxo: “quem escreve gosta de coisas bonitas. Eu só encontro tristeza e lamentos” (JESUS, 2000, p. 161). Dessa forma, a escrita do seu diário, enquanto relato da experiência, está fortemente marcada pela angústia, pela dor, pela inconformidade, pela fome. A autora registra também a limitação da escrita e a dificuldade de simbolizar o que está para além da sua realidade sofrida. Ao contemplar o céu em um dia ensolarado, registra a tentativa de simbolizar o que é irrepresentável, aquilo que não pode ser apreendido pela escrita. Curiosamente, para Carolina, o que transcende a sua realidade miserável torna-se irrepresentável: “Há coisas belas no mundo que não é possível descrever-se” (JESUS, 2000, p. 39). A escrita funciona para a autora como uma forma de desabafo, também como uma maneira de dominar seus impulsos. Quando insultada pelos moradores da favela, recorre ao lápis e ao caderno e lá tenta internalizar as injúrias sofridas, enquanto escreve processa as suas dores.

A escolha das palavras é outro elemento que é importante ressaltar, assim como a escolha de quem irá ou não retratar em seus textos. É interessante pensar como funciona para a autora a produção do texto escrito: um processo de recolha de dados marcado pela seleção de cunho social: “os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (JESUS, 2000, p. 54). Parecem se configurar como objeto de escrita da autora aqueles que como ela vivem de catar, mas só não catam felicidade.

Às vezes Quarto de despejo toma a feição de um livro de contabilidade. Ali a autora registra o dinheiro que recebe depois de levar a um depósito os papéis e materiais recicláveis recolhidos nas ruas. Todo o dinheiro que ganha e como o gasta está registrado. Outras vezes a folha de papel em branco é preenchida por um dilema: compro pão ou sabão? Compro macarrão ou gordura? Essas são apenas duas dentre muitas das suas difíceis escolhas.

A escrita diferencia Carolina dos demais moradores da favela, naquele universo marcado pelo analfabetismo ela se torna um incômodo, um ser fora do lugar. Pelo fato de autodenominar-se escritora, antes mesmo da publicação do livro, ela é insultada pelos moradores por almejar um status intelectual que, de acordo com o senso comum, só é digno de quem reside nos “Palácios” ou nos “jardins” das grandes cidades. A escrita também exerce o papel de instrumento de defesa e a certa altura do livro confessa que, não tendo força física para lutar contra os insultos, ela usa suas palavras cuidadosamente afiadas e capazes de ferir mais do que espada.

Ao documentar nos seus cadernos o cotidiano da favela, ao tornar público o que é aparentemente privado, Carolina torna-se indesejada no ambiente onde vive. Ela passa a usar a escrita para se defender: diante das agressões verbais o argumento é sempre o mesmo: registrar nos cadernos o nome daqueles que a insultam. Conforme ressalta Carlos Vogt, os diários da escritora eram “uma espécie de livro de São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar os comportamentos ‘errados’ de seus vizinhos” (VOGT, 1983, p. 207). Ressalta ainda como a escrita é o ponto de estranhamento entre Carolina e os moradores da favela, ao comentar:

O repúdio da autora à situação que se encontrava é visceral. Da mesma forma e na mesma medida é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos. O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo que vivia. A esperança que deposita nessa experiência é grande.” (VOGT, 1983, p. 211).

No texto podemos perceber também o quanto a favela causa em Carolina um enorme desconforto. O estranhamento no que é familiar, ou unheimlich, explica porque a autora nunca reconhece o espaço onde vive enquanto um espaço que seja seu, mas o vê como um espaço temporário, lugar de transição. Algumas vezes irrita-se por registrar em seus cadernos a palavra casa ao se referir ao barraco onde mora. Fica feliz ao sair nas ruas e as pessoas baterem-lhe com as portas na cara, pois assim não precisa parar e conversar com os vizinhos. Seus filhos são constantemente agredidos, indesejados, assim como ela.

A escrita para Carolina Maria de Jesus funciona principalmente como possibilidade de ascensão social. É através da publicação dos seus livros que ela visualiza a possibilidade de sair do “quarto de despejo” e passar a viver em uma casa de alvenaria, fato que só acontece com a publicação de seu segundo livro.

A palavra escrita parece possuir um caráter dúbio nas literaturas de testemunho: funciona como remédio e como veneno. Enquanto remédio, a escrita do diário tem possibilitado a manifestação da alteridade, conforme ressalta Magnabosco:

No mundo público, a palavra testemunhal vem denunciando a repressão, a invisibilidade feminina, a violência do gênero sexual e tem requisitado uma transformação sobre essas práticas culturais. No plano pessoal, a palavra tem permitido uma ‘cura psicológica’ pela recuperação e legitimação, a partir do próprio sujeito, das assertivas de sua vida. (MAGNOBOSCO, 2002, p. 171).

Anteriormente, ressaltamos que para Carolina colocar no papel suas impressões acerca da sua vida e do mundo funciona como um desabafo, uma forma de processar os traumas e as angústias, uma maneira de compreender-se. Por outro lado, ao escrever suas impressões ela estaria, de alguma maneira, revivendo o passado, trazendo para o instante da escrita o momento do trauma, da dor. Seguindo esse raciocínio, ler o diário de Carolina, feito documento após a publicação é um remédio ou um veneno para o leitor?

Outra questão importante e que não podemos deixar de mencionar aqui diz respeito ao constante questionamento por parte da autora das condições subalternas e miseráveis em que se encontram os negros nesse país. Carolina faz um paralelo entre a escravidão que vigorou no Brasil por quase 400 anos e uma nova forma de aprisionamento. Em 13 de maio de 1958, assim inicia o seu relato: “Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a liberdade dos escravos”. (JESUS, 2000, p. 27) Resta-nos perguntar: qual é a liberdade de Carolina? Logo em seguida comenta “que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes”, e aqui é possível fazermos um interessante jogo intertextual: o personagem Paulo, em Esaú e Jacó, comenta que “a abolição é a aurora da liberdade, esperemos o sol. Emancipado o negro, resta emancipar o branco” (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 992). Machado aponta assim para a impossibilidade do negro superar a questão do preconceito, sua visão avant a lettre é confirmada pela escrita de Carolina. Diante da impossibilidade de sair para catar os papéis e como consequência a ausência de comida nesse dia faz a autora escrever: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual – a fome!” (JESUS, 2000, p. 27).

Diante do que foi posto aqui, podemos concluir que a prática da leitura e o ato da escrita desempenham um papel transformador para Carolina Maria de Jesus. É através da escrita que ela formula e reformula sua realidade marginal, processa e reprocessa suas dores e angústias. É na leitura que ela transcende a sua condição marginal, é através da escrita que ela alcança o sonho da casa de alvenaria. Escrever é denunciar, é trazer à tona o subalterno. Ler é uma forma de imaginar-se outra, em outro lugar. Escrever é uma prática constante, forma de desabafo. Em síntese, Quarto de despejo é fruto de um processo duplo: leitura e escrita, dois vícios, duas faces de uma mesma moeda.

Nota

1 As citações referentes a Quarto de despejo foram mantidas de acordo como aparecem no livro, que por sua vez, segundo nos informa o editor da obra, o jornalista Audálio Dantas, mantém a ortografia da autora.

Referências

BARTHES, Roland. Escrever a leitura. In: O Rumor da Língua. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2004.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.

MACHADO DE ASSIS. Esaú e Jacó. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. Vol. I, p. 992.

MAGNABOSCO, Maria Madalena. Reconstruindo imaginários femininos através dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus: um estudo sobre gênero. Tese. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

RICOEUR, Paul. La historia, la memoria, el olvido. Buenos Aires: Fondo de Cultura económica de Argentina, 2000.

SELIGMANN-SILVA (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora Unicamp, 2003.

VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.

VOGT, Carlos. Trabalho, pobreza e trabalho intelectual: O quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus). In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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* Elisângela Aparecida Lopes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas - IFSULDEMINAS. Coautora do Volume 3 da Coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2a Reimpr., 2021), e também de Literatura afro-brasileira - 100 autores do século XVIII ao XXI (2a ed., 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2a ed., 2019).