A problemática da negritude: querer-se negro, querer ser livre

 

 Maria do Rosário Alves Pereira*

 

Sônia Fátima da Conceição manifesta, através de seus textos, preocupação e inquietude com o “não-lugar” do negro na vida social e cultural brasileira, pois sua identidade se dá a partir de referenciais brancos, e isso deve ser combatido, pois o afro-descendente deve encontrar suas próprias raízes no reconhecimento de sua cultura:

“para nós negros, oprimidos e completamente destituídos de valores dentro de uma sociedade racista, que sufocou e ainda sufoca de maneira anti-humana o nosso ‘eu mais profundo’, não devemos nos limitar a relatar fatos ou ficar questionando de forma reacionária a situação vigente, mas sim buscarmos formas de, entre os nossos, nos encontrarmos e daí partirmos para uma literatura que vise a transformação deste social que por hora se nos apresenta”. (In: Reflexões sobre a literatura afro-brasileira, p. 88)

Assim, sugere a vinculação entre o literário e o social, entre a realidade e a ficção. É nessa perspectiva que escreve a novela Marcas, sonhos e raízes, publicada em 1991. A preocupação da autora passa, portanto, pela reconstituição de uma identidade cultural negra e, ao mesmo tempo, também denuncia os preconceitos a que o afrodescendente frequentemente é exposto. Por trás de uma aparente democracia racial, ainda ressoam ecos da discriminação que condena o negro ao gueto social:

Ainda ressoam as passadas

Sorrisos metálicos, brilhos ofuscando
ocultando sombras no entanto
ainda ressoam as passadas
 
                 Falsos acordos ao redor da latrina
                 falseando verdades maquiando a
                 miséria que fede.
 
O olhar do estômago vela
o corpo inerte do servilismo
um cortejo lúcido o conduz
ao ventre da terra.
 
                               Do couro seco do atabaque
                               um toque anunciando
                               mudanças.
 
Mãos adúlteras prendem cristais
em meio à turbulência
não aceitando o inevitável...
 
                                 O dia de luz e azul
                                 a varanda com flores e verde
                                 já não titubeia:
                                 acolhe a todos.
                                        (Cadernos Negros 17, p. 71)

 

A suposta harmonia social existente é desmistificada pela autora, que denuncia os “falsos acordos” realizados em relação ao negro, ou seja, as aparentes concessões que no fundo mascaram desigualdades pungentes. Em geral, ouvem-se afirmações do tipo “o negro não é mais escravizado”, “não há discriminação racial”, mas o que se tem, de fato, é a permanência dos antigos muros do preconceito, que não permitem que o negro se torne cidadão. A miséria ainda “fede”, o servilismo ainda perdura. No entanto, ainda que a muitos não interesse a conquista de uma cidadania por parte do afrodescendente, eles tentam “não aceitar o inevitável”: o avanço do negro em busca de seu próprio lugar. O atabaque ganha uma simbologia particularizada: não é mero instrumento musical, mas sim aquele que anuncia mudanças, mostrando que uma das possibilidades de combate aos estereótipos e à submissão do negro é o resgate cultural. O poema termina com o horizonte que se abre: “o dia de luz e azul que acolhe a todos” é a esperança que permanece.

Em alguns contos, Sônia Fátima da Conceição retrata a cultura e a tradição brasileira, ressaltando nelas as influências advindas da África, e em outros a temática social torna-se pungente. De qualquer modo, neles encontra-se expressa, na superfície, uma linguagem simples, mas que ao mesmo tempo traz consigo grande riqueza de detalhes, dada através da sutileza presente no texto. Em “Mais uma história”, Sônia narra os acontecimentos que permeiam a vida de Maria, mulher decente e trabalhadora que se casa com José e com eles leva para morar Tereza, sua irmã. Com o passar do tempo, a chegada dos filhos e das dificuldades financeiras, o casamento (que havia sido tão idealizado por Maria) entra em crise e José começa a beber muito.

Com o dinheiro escasso (a família é despejada e vai morar com a mãe de Maria), podendo contar praticamente apenas com a irmã, e ainda traída pelo marido, Maria também acaba tornando-se alcoólatra e é internada em uma clínica de recuperação, ao passo que seu marido interrompe a bebedeira e começa a tomar as rédeas de sua vida. Volta a trabalhar e, vez por outra, faz agrados à sogra e às cunhadas. Diante disso, Maria, até então considerada vítima de José por seus parentes e vizinhos, passa a ser vista como culpada pela desestruturação por que sua família passava, afinal, “a mulher é o esteio do lar, se ela se enfraquece, como é que as coisas podem caminhar?... A tendência do lar onde mulher é preguiçosa e bêbada é sempre acabar mesmo." (Cadernos Negros 8, p. 87).

É interessante o jogo linguístico criado pela autora em torno da personagem masculina: quando ainda era um homem honrado, é nomeado José (todas as referências positivas em relação a ele se dão dessa forma). No entanto, o homem bêbado, mal trabalhador e mau caráter é nomeado Antonio. A autora parece denunciar a hipocrisia que perdura em uma sociedade machista: a duplicidade do nome masculino indica as “duas faces da moeda”. De um lado, o homem que se mostra honesto perante a comunidade, mas de outro aquele que destrói os sonhos da mulher e ainda é acobertado pelo sistema, pois no final todos lhe dão razão. Dessa forma, o título poderia sinalizar que essa é uma história banal, corriqueira, que se repete todos os dias com várias mulheres ainda subjugadas às formas patriarcais de dominação ainda vigentes entre as classes populares.

Para concluir, o tema que circunda a obra da autora é, sem dúvida, um clamor pela afirmação da identidade e da cultura negra no nosso país, como uma possibilidade de se solucionar os problemas enfrentados pelos afrodescendentes. Há também uma série de reflexões sobre a condição feminina, no que se nota um trabalho com a linguagem cujo objetivo é desvendar o que há por trás de valores inculcados durante muito tempo no imaginário coletivo, criando uma literatura que caminha do protesto ao resgate do sujeito enquanto produtor de seu próprio discurso.

Referências

Cadernos negros 8. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.

Cadernos negros 17. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1994.

CONCEIÇÃO, Sonia Fátima da. Ser negro, povo, gente: “uma situação de urgência”. In: Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Quilombhoje, 1982. 2 ed. São Paulo: Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985.

__________________

* Maria do Rosário Alves Pereira é Mestre e Doutora em Literatura Brasileira pela UFMG e professora do CEFET-MG. Além de inúmeros artigos e capítulos de livros publicados, é co-organizadora dos seguintes volumes: Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016); A escritura no feminino: aproximações (2011); e Linhas cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011).

 
 

 

Texto para download