DADOS BIOGRÁFICOS 

Nascida em Santos, Natasha Felix é educadora, escritora, redatora, poeta, e performer. Atualmente reside em São Paulo, onde estuda Letras com especialização em Espanhol na Universidade de São Paulo. Participou como educadora voluntária de Literatura do Curso Preparatório para o vestibular da UNESP entre 2014 e 2017, bem como do projeto Black Poetry, espetáculo apresentado em São Pulo, no SESC Ipiranga, como parte da programação oficial da Virada Cultural 2018. Iniciou sua jornada pela palavra poética ainda  no Ensino Médio, em 2014, sendo co-autora do livro Movimento — da Palavra ao Texto, uma coletânea fruto de experiências com a linguagem em uma oficina de Escrita Criativa. 

Natasha Felix estreou na literatura com a publicação de Use o alicate agora, que vem a público em 2018 e já se encontra traduzido para o espanhol. O livro reúne diálogos bastante atuais com temas como erotismo, violência e o corpo feminino, constituindo desta forma uma expressão provocadora na literatura contemporânea, marcada pela diversidade de vozes e lugares de fala e pertencimento. Use o Alicate Agora contém uma poesia que corta e causa silêncio. E, nessas lacunas silenciosas,  é possível sensibilizar leitoras e leitores com uma escrita que não detém privilégios, é acessível porque surge de uma pulsão humana, universal e democrática: a busca do prazer. O primeiro livro da autora também deu início às suas performances, que atravessam mais uma vez a junção do corpo com a poesia, mostrando que ela desvenda esse corpo por intermédio da escrita, mas também da fala e do movimento.

Sensibilidade antenada às tendências contemporâneas, faz sua poesia dialogar a todo instante com a oralidade e com as novas formas de expressão vigentes para além do objeto livro — este muitas vezes um objeto inacessível a grandes parcelas da população, sobretudo entre os jovens. Nessa linha, sua presença em trabalhos de palco propicia o diálogo da poesia com a expressão gestual e faz seus versos passarem por ambas representações, voz e gesto, palavra e corpo sempre em trânsito a fim de ultrapassar a prática da leitura silenciosa e solitária. 

Deste modo, dialoga com a contemporaneidade da performance e faz de seus poemas pontes para alcançar um público leitor mais amplo, contribuindo desta forma para a democratização da leitura e da literatura. Natasha produz videopoemas, utiliza de sonoridades e beats para que suas palavras saiam do papel e frequentem também outros modos e formas de expressão artística, com a escrita e o corpo conectados.

 A autora participa também da coletânea Nossos poemas conjuram e gritam, de 2019, organizada pela poeta e tradutora Lubi Prates, onde se encontram escritoras de relevo na literatura afro-brasileira, a exemplo de Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lívia Natália e Miriam Alves, entre outras. Atenta aos processos de internacionalização cultural, em 2019 lançou na Argentina o trabalho experimental 9 poemas. Além disso, tem diversos textos publicados em revistas digitais e físicas e um blog pessoal, onde é possível encontrar crônicas e poesias de sua autoria. 

Conforme declara em depoimento a seguir, seu primeiro contato com o mundo da leitura vem da convivência com a avó materna.  A poeta acredita que a fala é essencial em seu processo de escrita e nisto se identifica com a herança cultural vinda de África, com seus griots griottes a compartilhar saberes e histórias guardadas na memória de populações inteiras.

Natasha Felix foi entrevistada pelo projeto Mulheres que Escrevem, depoimento reproduzido a seguir:

Mulheres que Escrevem: Como foi seu primeiro contato com a escrita? Como você começou a escrever?

Natasha Felix: Eu estava na lavanderia da minha avó materna, Terezinha, quando ainda morávamos no Morro São Bento, em Santos. Foi ela quem me mostrou, pela primeira vez, como meu nome deveria ser escrito. A mesma mulher que, há anos, na fazenda Lagoa do Cedro, próxima a Riachão do Jacuípe, foi a professora responsável por alfabetizar boa parte dos irmãos e dos vizinhos, na escola erguida pelos meus bisavós — um casal sem estudo algum. Minha avó ensinou o pouco que sabia a todo mundo que a rondou. Lembro das letras formando no papel, de olhar bem de perto, parecia que estava presenciando algo mágico acontecer, uma impossibilidade tomando forma, isso de dar corpo ao meu próprio nome. Foi ali que a coisa toda descarrilou, eu acho.

MQE: Em que momento você entendeu que queria ser escritora? Quando essa possibilidade de trabalhar com literatura se tornou uma escolha viável?

NF: O problema é justamente esse: não é uma escolha viável trabalhar com literatura, a menos que você seja herdeiro. Qualquer romantização aqui não cabe, a conta não fecha. Respondo essa entrevista no dia cinquenta-e-cacetada da quarentena. Parece que envelheci 15 anos durante esses dias. Estamos todos exaustos, perdendo pessoas queridas, tendo que nos desdobrar para caber em editais de emergência insuficientes. O setor cultural sendo dinamitado há anos e as coisas só tendem a se agravar. Vejo amigos artistas de todas as áreas adoecendo, lutando para pagar o aluguel. Temos jornadas duplas, triplas. Tudo isso enquanto pairamos em um governo em que os interesses só desembocam no genocídio, na estupidez, no esquecimento. Não é viável trabalhar com literatura. Já estive em uma discussão em que, ao afirmar que sim, a arte precisa de incentivo financeiro e sim, necessitamos de meios para viver dignamente, outra artista afirmou que existimos independentemente disso, em um discurso positivo, falando que estamos há séculos aqui e assim permaneceremos, com ou sem remuneração. Não acho que ela estivesse de todo errada. Afinal, a despeito dos desmonte da cultura já conhecido, muitos de nós estamos aqui. Eu mesma pretendo incomodar por uns bons anos. Mas isso não muda o fato de que precisamos exigir sempre que nossos direitos sejam garantidos, que nosso trabalho seja viabilizado. E, ainda mais agora, em meio à quarentena, quais são as políticas públicas que nos protegem? O que tem sido feito, pelo Estado, para que a gente continue?

MQE: Você pode contar um pouco como é seu processo de escrita? Pra você, qual é a diferença entre escrever e publicar?

NF: O processo é me perder nos processos, sou bem desorganizada. Começo novos cadernos e estou sempre os abandonando. Não tenho um horário específico para escrever. Mas, para mim, começar os rascunhos no papel faz com que os textos ganhem uma visualidade única, é importante. Depois disso, passo os versos, palavras e ideias que acredito valerem alguma coisa para o google drive. Aliás, essa é uma plataforma que me ajuda muito. Ah, também estou sempre falando em voz alta enquanto escrevo. Sempre.

Tenho muito interesse nos processos de outros artistas, não apenas poetas. Passei a frequentar aulas de hip hop, por exemplo, e aprendi a lidar com a minha escrita de outra forma depois disso. Conheci outros dispositivos que funcionam para dançarinos e que eu passei a testar no papel.

Sinto que escrever tem muito a ver com a maneira como lido com as obsessões que vou encontrando pela frente. Como eu manejo essas coisas. Se, por exemplo, eu fico com uma ideia fixa em uma imagem. Um cubo mágico ou o que for. O lance é entrar no objeto, encontrar novos modos para ele. O que me interessa é a função da mentira dentro da linguagem, essa apropriação do blefe, da especulação. O flerte mesmo, a sedução do texto, da palavra.

Escrever é o que precisa ser feito para além de tudo. É o desejo, a pulsão de morte, tesão, tudo junto.

Publicar, principalmente para as minorias, tem muito a ver com a conquista de um território que antes era proibido ou impossível. Tem a ver com coragem e com com o nosso processo de autoestima, de formulação de uma identidade. Escrever um livro e publicá-lo, só se tornou algo palpável quando vi que existiam pessoas como eu que conseguiram fazer isso. Antes, era um sonho longo, distante.

MQE: E como foi o processo de publicação do seu primeiro livro, Use o alicate agora? Quando você sentiu que o livro estava pronto? Como escolheu sua editora? Qual foi a influência do trabalho de edição sobre o livro?

NF: Pra ser bem sincera, eu nunca senti que o livro estivesse pronto. Foi o Otávio Campos, poeta e editor da Macondo, quem me ajudou a romper com a insegurança. Eu já publicava poemas no meu facebook pessoal há algum tempo, tinha feito alguns zines por conta própria, circulava em umas poucas revistas de literatura e havia conversado com algumas editoras. Até que Otávio me pediu o original. Tive bastante medo, adiei muito o envio. Em Paraty, na FLIP 2018, nos encontramos e ele deu a carta — consegue me enviar o material em duas semanas? E aqui estamos.

A Macondo foi uma ótima casa para o meu primeiro livro. O cuidado e a atenção que o meu trabalho recebeu e recebe até hoje por eles foi definidor na minha vida. Essa leitura sensível e crítica dos editores, muito próximos e solícitos, foi marcante. Desde o momento que o livro saiu da gráfica, roxinho, aparentemente inofensivo, a gente viveu muita coisa. Mudou tudo.

MQE: E como está sendo a recepção do livro?

NF: Faz pouco mais de um ano que o Alicate saiu e desde então, recebi mensagens de toda parte. Ainda me surpreende que ele tenha virado parte da bibliografia de escolas e universidades, que tenha passado por rodas de leitura em projetos educacionais em presídios, que a minha vó tenha lido, que meu irmão mais novo tenha dado um de presente para a professora. Depois que o livro foi materializado, entrei em outros processos — elásticos, edificantes — com a linguagem que eu propunha lá. Muitos diálogos foram criados a partir dos saraus, dos vídeos, das performances, das leituras das pessoas e indicações. Pro artista independente, esse boca-a-boca, essa espécie de telefone sem fio, faz toda a diferença. O livro chegou em muitas mãos, em lugares que eu não imaginava, de muitas formas que não só pelo papel.

MQE: Seu trabalho está sendo traduzido e publicado em outros países da América Latina, certo? Você pode contar um pouco sobre essa experiência para nós?

NF: Quando soube que o meu trabalho havia chegado até o México — lugar que sonho conhecer desde que li Los detectives salvajes –, pelo tradutor Sergio Ernesto Ríos, perdi o chão. Depois, veio a publicação do 9 poemas na Argentina. Um livreto artesanal, editado pela Las Hortensias, com tradução assinada pela Carolina Tobar e pelo Marcelo Lotufo. Outro baque.

Conseguir enxergar os tons dos poemas em outra língua, em especial o espanhol — idioma que especializo no meu bacharelado em Letras — é o mesmo que adiar fronteiras. Ainda não conheci outros países, mas meus textos puderam chegar em alguns desses lugares. Sempre penso nisso.

MQE: Como surgiu a ideia de criar performances a partir dos seus poemas? Você acredita que as performances são uma forma de ampliar a circulação do seu trabalho? Qual é a diferença para você entre escrever e falar os poemas?

NF: Hoje, é muito evidente pra mim que, enquanto uma pessoa assiste a um slam ou um videopoema, ela está exercitando o hábito da leitura. O que muda é a plataforma.

Quando a gente se prende ao estereótipo do leitor ideal, imóvel, trancado no quarto com a cara afundada em algum livro, perdemos muitas outras possibilidades de criar vínculo com as pessoas. Esse acesso à poesia, para mim, se dá por muitas vias.

Com isso, quero dizer que a performance tem um caráter muito democratizante. Sempre quis que meu trabalho chegasse no máximo de pessoas possível. Comecei a falar meus poemas, mexer com paisagens sonoras e beats e com a dança, porque acredito que a escrita não termina no papel. Quem ganha com isso é a linguagem, as pessoas que a testemunham e tomam parte dela, além dos próprios artistas. Afinal, comecei a trocar ainda mais com atores, dançarinos, djs, rappers, beatmakers, fotógrafos, desenhistas. É uma viagem, isso de acompanhar o poema ganhando outras dimensões.

MQE: Em um ensaio sobre o processo criativo de suas performances, você diz que é “sobre botar o poema para rebolar”. O que você aprende botando o poema para rebolar?

NF: Eu queria uma boa desculpa para continuar varando noite, sarrando na frente da caixa de som, sem peso na consciência. Agora, dá pra falar na cara dura que, enquanto estou na festa, também estou trabalhando. É pesquisa de campo.

MQE: O corpo é muito presente na sua poesia, seja nos poemas escritos ou nas performances. A sua bio no Medium é, inclusive, “a escrita é o meu corpo” Para você qual é a relação entre corpo e linguagem?

NF: Vejo a escrita como um órgão, uma extensão do corpo. As coisas acontecem sempre a partir desse corpo de mulher negra. Sou atravessada pela linguagem e ela me atravessa de volta. O que é preciso ser feito? Escrever. Falar os poemas. Inventar a partir disso. Fazer com que esse órgão pulse.

MQE: Você acredita que a conjuntura política e econômica influencia nossos processo de escrita? Como é, para você, escrever poesia no Brasil 2020?

NF: Terrivelmente. Estamos vivendo uma das crises mais profundas dos últimos tempos. Tem que ser muito alienado e desonesto para, nessa altura do campeonato, insistir em dizer que arte e política não se misturam. Quando o presidente quer ainda mais corpos pretos e pobres tombados. Quando estamos, mais do que nunca, reféns da necropolítica. A todo vapor. Contando nossos mortos como números. Enterrando nossos mortos sem nos despedir.
Estou cansada e ansiosa como muitos. Os eventos remunerados foram cancelados assim que a quarentena começou e as medidas emergenciais para a cultura, reafirmo: são ineficazes. Tenho medo todos os dias, mais do que antes. Escrever poesia no Brasil 2020 é lutar contra a exaustão e a falta de perspectiva.

MQE: Para terminar, quais recomendações você daria para uma escritora ou poeta que está no início de sua carreira?

NF: Enumerei algumas coisas que eu falo para mim mesma e acho importantes. Talvez sirvam a alguém.

  1. Arriscar terrivelmente. Ser refém do risco primeiro, para depois saber como manejá-lo.
  2. Acho importante que a gente se pergunte sempre “por que eu estou escrevendo?”, não importa em que momento da vida esteja.
  3. Não ter medo de ler o próprio texto em voz alta. Passar a ter o hábito de falar alto — criar intimidade com o texto.
  4. Não se levar tão a sério.
  5. Respirar fundo e insistir.
  6. Não se subjugar ou deixar que os outros te nomeiem.
  7. A experiência é uma aliada. A intuição anda ao lado.
  8. O nosso corpo é a nossa ferramenta. É elétrico e definitivo. É bom que a gente encontre jeitos de usá-lo ao nosso favor no processo criativo.
  9. Que a escrita seja o seu norte, a sua obsessão.

Referência

FELIX, Natasha. Mulheres que Escrevem entrevista: Natasha Felix. Entrevista concedida ao Mulheres que escrevem, 2020. Disponível em: https://medium.com/mulheres-que-escrevem/mulheres-que-escrevem-entrevista-natasha-felix-ac98f8c0efa8. Acesso em 20 de jul. 2020.


PUBLICAÇÕES

Obra individual

Use o alicate agora. São Paulo: Editora Macondo, 2018. 

9 poemas. Buenos Aires: Las Hortensias, 2019.

Antologias

Movimento - da Palavra ao Texto. Santos: Editora Leopoldianum, 2014.

Nossos poemas conjuram e gritam. Organização de Lubi Prates. São Paulo: Editora Quelônio, 2019.


TEXTOS

Natasha Felix - na praça may aiym

Natasha Felix - As tranças

Natasha Felix - Oito nomes depois do seu

Natasha Felix - Preparo para a arena

Natasha Felix - Ao homem que se levanta comigo

Natasha Felix - Tarefas

Natasha Felix - A domadora

Natasha Felix - Feliz como Lázaro


CRÍTICA


FONTES DE CONSULTA


LINKS

Mulheres que escrevem entrevista Natasha Felix

O tesão como estratégia de guerra – um possível mapa para a poesia de Natasha Felix, por Taís Bravo. 

Jogo perigoso: aumentar as ideias no coração dos alegres, por Ana Luiza Rigueto.

Performance Considerações sobre a Higiene Íntima

Poesia primata 

Mulheres que escrevem - Identidade 

3 poemas de Natasha Felix

Poemas de Natasha Felix na revista Germina

Spotify de Natasha Felix

Performance Revide