TRANSESCRITA DAS ESCREVIVÊNCIAS LITERÁRIAS DE CONCEIÇÃO EVARISTO E MIRIAM ALVES
Janaina de Lima Ferreira[1]
Resumo
Esta pesquisa[2] investiga como a literatura negra trabalha a suplantação do trauma escravocrata, a partir das teorias da “Escrevivência” de Conceição Evaristo e da “Transescrita” de Roland Walter, nas obras Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo (2017) e Maréia de Miriam Alves (2019). Portanto, a importância deste artigo encontra-se na interpretação da “transescrita das escrevivências” como concepção teórica que possibilite ao sujeito negro meios para se inscrever no mundo à medida que modifica e transpassa o trauma da escravidão, para a (re)construção de um mundo (futuro) melhor.
Palavras-Chave: Escrevivência, transescrita, diáspora negra, suplantação do trauma.
- Pensando o método: transescrita das escrevivências negras
Durante a escolha do método, pensei em alguns caminhos que me possibilitassem escrever à medida que me inscrevia no texto. Inicialmente, surgiu a “autoetnografia”, uma concepção que consideraria minhas experiências para a construção do pensamento teórico. Também surgiu a “escrita de si”, conceito que permeia as angústias particulares do corpo. Por último, pensei em dois dos conceitos que pesquiso enquanto teorias capazes de investigar a suplantação do trauma escravocrata e de possibilitar diálogos: a “Escrevivência” de Conceição Evaristo e a “Transescrita” de Roland Walter”.
Para Fernanda Felisberto (2020, p. 71.), “a escrevivência se distancia da "escrita de si" ou da autoficção, pois não precisa necessariamente produzir um texto em primeira pessoa, e sim um enunciado que evoca uma coletividade”. Ou seja, é uma escrita marcada por um corpo, uma memória que transpassa o íntimo individual por se tratar de corpos e memórias históricas que estão a movimentar-se dentro e fora das margens culturais. No pensamento foucaultiano: “o ‘eu penso’ não é outra coisa senão a sentença em torno da qual se ergue toda a linguagem reflexiva da ciência; o ‘eu falo’ nos conduz à literatura em sua gestualidade de enlace entre oralidade e escrita...” (Foucault, 2017, p. 139). De acordo com Lilia Schwarcz (2019, p. 138), o conceito “escrita de si” de Michel Foucault não correspondia a “perseguir o indizível ou revelar o que está oculto”. Mas buscava “captar o já dito; reunir aquilo que se pode ouvir e ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si”.
À vista disso, faço uso da “escrevivência” como caminho teórico-metodológico por se tratar de uma concepção marcada pelas performances dos corpos negros diaspóricos. Conceição Evaristo (2009, p. 23) explica que “o sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito, que ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si”. Diante disso, aproximo a “escrevivência” à “transescrita” como ferramenta que traduz as tensões identitárias descritas em variadas categorias ao longo do tempo. Ou seja, [...] “uma escrita que constitui e cria o lar discursivo e epistêmico enquanto geografia simbólica entre lugares e tempos” (Walter, 2009, p. 256). Ainda, para Roland Walter (2008, p. 7) é uma transescrita que “abre a história vivida/imaginada para futuras transformações socioculturais”. Sujeitos em movimento, rotas e retornos.
Sendo assim, literaturas conectadas não apenas pela dor e trauma, mas pelo desejo de reconstruir um mundo melhor para todos. Por isso, faço uso, também, da “transescrita” como caminho teórico-metodológico, porque enxergo nessa concepção meios que possibilitam a reconstrução e esperança para a cura ou pelo menos para a (re)elaboração dessa ferida aberta. Aponto a “transescrita das escrevivências” como uma possibilidade de retorno dentro dessa imensa Diáspora transescrita, onde sujeitos revisitam suas feridas coloniais, suas dores e compartilham as linhas de cura com todos na árdua tarefa da suplantação do trauma escravocrata.
- A transescrita das escrevivências literárias por entre sonho, memória, tempo e espaço
O ‘sonho é a sabedoria da nossa casa’. Cito Ailton Krenak (1992) por sonhar com um mundo melhor. Por viver, abraçar, sentir, ouvir e cantar a terra. Por acreditar que ainda temos tempo para cultivar a memória, o espaço e o tempo como manifestações dos espíritos, os quais vivemos conjuntamente com a Terra-Mãe. Para Assmann (2011, p. 358) essa é a memória que “estabelece um ponto de partida para recordar o passado no presente, para modificar esse corpo e também essa memória, [...] para desacelerar uma dor, inscrever esse trauma na memória coletiva”. Dantes, a “memória [...] se materializa na paisagem memorativa de seus locais de recordação”. Nora (1993, p. 19) vincula a memória às histórias orais e aos testemunhos. O autor pontua que a memória reafirma seu lugar como instrumento impessoal, pois, na sociedade, há a necessidade de compreendê-la historicamente, assim não existe mais um “homem e memória, em si mesmo, mas um lugar de memória” (Nora, 1993, p. 21).
Ao passo que para Ricoeur (2007, p. 130), a memória é uma referência em um plano intermediário, no qual acontecem as relações entre memórias individuais e coletivas. Segundo o autor, lembrar não é reviver, mas reconstruir as imagens e lembranças do passado. É “a partir de uma análise sutil da experiência individual de pertencer a um grupo e na base do ensino recebido dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma” (Ricoeur, 2007, p. 130). Assim, a memória transcende tempos e espaços. O tempo como “local de inscrição de um conhecimento que se grafia no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade, conhecimentos” (Martins, 2022, p. 22).
Ailton Krenak (1992), indígena, escritor e, mais importante, filho da terra, escreve sobre o sonho. Um espaço espiritual alcançado apenas quando vive a natureza. Dessa forma, compreendo o “sonho” de acordo com Ailton Krenak (1992, p. 4), quando ele nos diz que “sonho de verdade é quando você sente, comunica, recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida e o sentido do caminho do homem no mundo é contado pra você. [...] No sonho a gente entra dentro dele, aprende, alimenta o espírito”. O sonho para o autor é a capacidade de conversar com os antepassados de diferentes tempos e espaços, de ser cuidado e protegido por eles.
Diante disso, entendo que o sonho transporta a sabedoria de uma existência para além da qual vivemos, conhecemos e entendemos. Conecta a árvore, o rio, a montanha, o homem, a mulher, a criança e o velho no plano espiritual. Essa sabedoria que alimenta e faz brotar a vida nos entre-lugares da Terra. É nessa perspectiva que analiso as “escrevivências” transescritas das personagens nas obras Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo e Maréia de Miriam Alves. Ponciá “figurava ser a dona dos sonhos, parecia morar em outro lugar. Às vezes, era como se o espírito dela fugisse e ficasse só o corpo” (Evaristo, 2017, p. 56). Maréia “[...] sonhou. [...] caminhando sobre as águas. [...] Pessoas saídas das narrativas dos avós aproximavam-se, uma a uma, segredavam-lhe histórias, compondo as peças que faltavam para montar o grande quebra-cabeça de sua ancestralidade” (Alves, 2019, p. 63).
Nesse ínterim, compreendo a “transescrita” como instrumento teórico que investiga uma escrita literária marcada pela memória do corpo-terra na busca pela cura ou ao menos pela (re)elaboração do trauma escravocrata. Essa transescrita (re)faz seres que ao longo dos séculos foram ressignificados na Diáspora e no próprio continente africano pelas histórias perdidas. Esta literatura negra dos(as) escritores(as) afrodiaspóricos(as), cuja letra navega por oceanos de vozes negras que foram silenciadas, é o que investigo na noção mais íntima do conceito de “transescrita” de Roland Walter.
Por isso, eu aponto que são eles(as), os escritores(as) afrodiaspóricos(as), que no mar da hifenização persistem, até hoje, a pesquisar todas essas vozes aprisionadas. Cuja performance da linguagem é conduzida pelas grandes ondas, por tempestades temerosas. São eles(as) que ousam produzir uma forma escrita de uma dor imensa, uma dor que se instalou em seus espíritos aquebrantados. Dores essas que transformam constantemente em poesia. Ou seja, é essa forma fluída, do ato de mover o outro e o espaço, que a “transescrita” explicita na produção literária negra:
uma escrita que interrompe e (re)une revelando o “trans” que atravessa o “multi” das relações interculturais e que se alimenta de uma mémoire vivante enquanto prática social que sedimenta a história apocalíptica de subjugação e resistência em consciência coletiva (Walter, 2009, p. 256).
Na sua tese, José Silva (2022) analisa o conceito de “transescrita” como uma noção, concepção ou percepção dos estudos afrodiaspóricos e literários. Para ele, Roland Walter, baseado nas ideias de Fernando Ortiz, Ángel Rama e Linda Hutcheon, performativa criticamente a transescrita para (re)criar uma “afrodescendência transculturante”. Isso significa, na sua visão, reconhecer "uma afrodescendência transculturante que se autoafirma para falar sobre si mesma e ocupar espaços de enunciação antes restritos aos discursos que se harmonizavam com as perspectivas sociais hegemônicas” (Silva, 2022, p. 56). Com base no exposto, concordo com José Silva (2022) quando ele destaca que Roland Walter (2009):
dá um passo além dos seus antecessores, no sentido de desenvolver um arcabouço teórico a ser utilizado especificamente em contextos nos quais africanos ou afrodescendentes foram obrigados a assimilar, confrontar, dialogar e até mesmo colaborar com pressupostos culturais de outras comunidades. [...] A transescrita se apresenta, assim, como uma atividade literária que envolve resistência, assimilação e/ou colaboração enquanto táticas para a redefinição da posição sujeito de comunidades historicamente subalternizadas (Silva, 2022, p. 56-57).
A partir disso, contribuo para sua pesquisa sobre a “transescrita”, quando interpreto na sua formação uma percepção mutável e dialética da recriação e transmutação do trauma. Além disso, também compreendo a “transescrita” como um instrumento teórico-metodológico das literaturas negras, capaz de subsidiar pesquisas sobre a transmutação do trauma escravocrata, por intermédio de seus fundamentos rizomáticos. Esses fundamentos me permitem ainda investigar uma forma e um objetivo central dessa produção particular. Por meio da sua natureza mutável, percebo a reelaboração do trauma que está incrustado no ato primário de criar, recriar e transformar letras-memórias de antes e durante, pós e futuras das experiências e vivências negras das Américas em ferramentas de ressignificação do espaço-tempo.
Diante disso, pontuo que Roland Walter (2009) a partir da transescrita, investigou, analisou e encontrou pontos convergentes na escrita de escritores(as) negros(as) das Américas e, com isso, pode-se atestar uma forma para essas produções literárias. Uma forma fluida com objetivos que dialogam mesmo diante das diferenças. Essa forma escrita, narrada, oralizada, transescrita está preocupada em transpor as raízes traumáticas da escravidão que a hegemonia universal insiste em impor ao corpo negro diaspórico como um lembrete do cativeiro.
E é nesse entre-lugar, no entremeio dessas noções, que Roland Walter (2009) transcende os estudos de Fernando Ortiz, Ángel Rama, Linda Hutcheon e dentre outros. Obviamente, sempre se mantendo em diálogo e em uma “poética da relação”, citando uma ideia, a qual compartilho, de Édouard Glissant (2023). Desse modo, pontuo que, por meio da transescrita, podemos (re)ler e (re)ver esse corpo negro. Não só pelas lentes da transculturação das identidades do self, mas por um processo que envolve a Terra. Podemos detalhar esse trauma, que vai além da paisagem, da performance do corpo e se espalha pelo espaço. Como uma marca inapagável da escravidão, a qual devemos colocá-la em relação e, assim, dialogarmos com ela. Em diálogo com seus antecessores, Roland Walter (2009) constrói um molde de reler um corpo paisagem em transmutação com o espaço: esse corpo, ao mudar, altera o espaço. Um voltado para outro, um incidindo o outro nas diversas formas de viver e narrar a Diáspora Negra.
Congênere a isso, conforme Conceição Evaristo (2020, p. 30), a “escrevivência” concretiza-se “[...] como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças”. Ainda, de acordo com a autora, trata-se de uma ideia que surge a partir do jogo de palavras: “escrever, viver, escrever-se vendo e escrever vendo-se” (Evaristo, 2017). Deste modo, interpreto-a como um entrecruzamento ambíguo dentro e por via das tensões identitárias.
Segundo Luana Ferreira, et al (2021, p. 253), Conceição Evaristo “elenca a ‘escrita de si’, a qual traduz no seu projeto estético-político a escrevivência”, que autoras e autores negros “inscrevem-se na escrita por meio da vivência, marcada pela condição e subjetividade do corpo-sujeito negro”. Já Eduardo Duarte (2020, p. 92) entende-a “como diálogo [...] que resgata o passado para pensar o presente. E, dessa forma, preparar os caminhos de uma percepção do negro enquanto diferença cultural a ser respeitada”. Ao passo que Remenche e Sippel (2019, p. 52) pontuam que o “espaço entre o acontecido e o narrado, no qual a poeta cria seus motes, é o espaço de sua escrevivência, isto é, da escrita que se funde à sua vivência e à dos seus”.
Em confluência com essas interpretações, defendo que essa vivência está além da figura dos(as) escritores(as), uma vez que se articula através de um olhar e uma escuta atenta às distintas bagagens da Diáspora negra. Isto significa: — uma escrita imanente preocupada em narrar as formas em que esses corpos reescrevem o mundo à proporção que se inscrevem nele. Ou seja, uma escrita profundamente vinculada às lembranças do coletivo e da Terra. Complemento as demais interpretações acerca da escrevivência por entendê-la enquanto instrumento para a reconstrução e construção do espaço por meio da escrita e inscrita do corpo-terra-memória. E, através dessa perspectiva, aproximo-a à “transescrita” no trabalho da suplantação do trauma escravocrata:
Nossa escrevivência traz a experiência, a vivência de nossa condição de pessoa brasileira de origem africana, uma nacionalidade hifenizada, na qual me coloco e me pronuncio. [...] Creio que é a humanidade das personagens. Construo personagens humanas ali, onde outros discursos literários negam, julgam, culpabilizam ou penalizam. Busco a humanidade do sujeito que pode estar com a arma na mão. São personagens ficcionalizados que se con(fundem) com a vida, essa vida que eu experimento, que nós experimentamos em nosso lugar ou vivendo con(fundido) com outra pessoa ou com o coletivo, originalmente de nossa pertença (Evaristo, 2020, p. 31).
O emprego das palavras con(fundem) e con(fundido) é intrigante. De início, ‘con(fundem)’ remete à ideia de mistura, de confusão ou de união entre duas ou mais memórias, duas ou mais pessoas. As minhas experiências se ‘confundem’ com as do outro. Conceição Evaristo revela ainda outro sentido: o termo ‘fundem’ que nos conduz à possibilidade (ou realidade) de se fundir ao outro, de liquefazer o nosso corpo, a nossa memória com a do outro. Sob essa ótica, a minha memória é a do outro, e a do outro é minha. O meu corpo se entrelaçou ao outro de tal modo que não é possível separar as minhas raízes, os meus gestos, os meus sonhos, as minhas lembranças das dele. Tudo e todos refletidos uns nos outros, refletidos na Terra. Isto é, con(fundidos) nas vozes, nos rostos, nos corpos, nas performances e nas memórias.
Logo, os dois conceitos — transescritas e escrevivências — transparecem os redemoinhos do (re)escrever e escrever, do (re)nomear e nomear, do (re)articular e articular corpo-terra-memória recontados pelo prisma das histórias perdidas, sufocadas nos porões de vidas globalizadas. Neste momento, a pergunta que me atento é: como a literatura negra a partir da “transescrita” e “escrevivência” reescreve o trauma dentro da Diáspora de maneira a reelaborá-lo, para assim, ultrapassá-lo? Segundo Roland Walter (2009, p. 26), essas produções da literatura negra se assentam na “tentativa de trabalhar a perda e a ausência. [...] Uma tentativa de atravessar o trauma. O trauma que precisa ser atravessado/trabalhado para uma (re)construção da episteme cultural”. Para Conceição Evaristo (2007, p. 2006), surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A “escre(vivência) [...] explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição. [...] Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida”.
Entendo que a transescrita e a escrevivência são capazes de construir e analisar uma literatura que reescreve as dores e traumas no passado-presente. Pois, suas teias internas nascem da inter-relação com a natureza. Para isso, assento no pensamento de Ailton Krenak (1992), quando defende que os “povos indígenas vivem a terra”. Pensando os povos negros da Diáspora por meio do pensamento do autor, compreendo a necessidade primária de recuperar esse viver, o qual foi rompido durante séculos de escravização do corpo, da alma e da Terra.
Então, interpreto que a literatura negra-brasileira remodela dolorosas recordações à medida que o sujeito se coloca como plural numa sociedade neocolonialista e universal. É nesse ponto que percebo essa escrita através da transescrita e da escrevivência. As duas concepções propõem a (re)escrita (e a inscrita) desses corpos pela caracterização do existir enquanto ser humano no mundo. Então, quais são as formas que podemos perceber essa inscrição do corpo negro na literatura negra-brasileira por meio da transescrita e escrevivência?
Para isso, Roland Walter (2008, p. 94) entende esse corpo como “mente enraizada na sua terra”. Ao mesmo tempo, Conceição Evaristo (2017, p. 35) examina que a “aprendizagem da escrita está na vida. Pois, foi da e na dinâmica da vida que observei os primeiros traços escritos, a primeira grafia, cuja página foi o chão”. Os dois conceitos implicam no ato de rememorar e/ou consertar um elo rompido com a Terra. Logo, explicitam a importância da memória e do sonho como fontes capazes de transformar, de reescrever as dores de um passado imaginado. Para depois fomentar o sonhar, o escrever um futuro diferente e melhor na Diáspora ou como disse Dionne Brand (248, p. 165.) nesse “portão sem retorno. A porta do não retorno”.
Analogamente, para Conceição Evaristo (2009, p. 19), a escrevivência narra uma memória coletiva nascida das “histórias orais, ditados, provérbios, [...] heranças das várias culturas africanas e podem ser entendidas como ícones de resistência das memórias incorporados à cultura geral brasileira, notadamente a vivida pelo povo”. Para Roland Walter (2008, p. 93), esta “memória viva que condensa diversos lugares, tempos e personagens num megacronotopo contínuo, também recria a relação quebrada entre cultura e natureza”. Porquanto, observo essa recriação mnemônica a partir da transescrita de escritores(as) afrodiaspóricos(as), por se tratar de uma escrita entre e dentro de uma “encruzilhada transcultural”. Uma produção consciente das tensões de relação, dos elementos culturais transculturados e, sobretudo, das culturas e costumes que não são possíveis transculturar, hibridizar. Movem-se na superfície dos relacionamentos tensivos interculturais e influenciados por poderes moderno-coloniais. Por isso, Roland Walter (2008) analisa uma literatura negra caracterizada pela “apropriação, articulação e re-visão":
Este tipo de transescrita, mediante um processo de apropriação epistêmica que reconstrói a identidade cultural, traduz o passado para o presente enquanto agir subalterno que conscientiza os leitores para, nas palavras memoráveis de Conceição Evaristo (2003, p. 130), criar “um outro destino” mediante o sofrimento lembrado; ou seja, este tipo de transescrita abre a história vivida/imaginada para futuras transformações socioculturais (Walter, 2008, p. 110).
Respectivamente, a transescrita e a escrevivência, como uma escrita imanente, investigam e narram tanto os traumas vividos no período escravocrata quanto os traumas neocoloniais, que perseguem gerações inteiras. Na voz poética de Conceição Evaristo (2017, p. 31) “conceber escrita e vivência, escrita e existência, é amalgamar vida e arte.” Em função disso, compreendo a “transescrita das escrevivências” como filosofia enraizada embora desencadeada em trânsito “rizomático[3]”. Da mesma forma que pontuo a escrevivência como meio que possibilita esse corpo negro inscrever-se na Diáspora, entendo que a transescrita permite que esse corpo transescreva-se, ao mesmo tempo que modifica os poderes coloniais e resgata as culturas ancestrais recontadas na memória coletiva e nos sonhos.
- Do rio ao barro, do mar à cidade: Ponciá Vicêncio e Maréia no modelar das escrevivências
Em Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo narra as escrevivências de uma garotinha negra vivendo em condições análogas à escravidão. Pequena, não compreendia a ausência do pai e do irmão que viviam mais tempo na plantação do senhor branco do que em casa. Cresceu em meio ao silêncio imposto pelo trauma e dor e, assim, ouviu poucas histórias de seus avós. No entanto, parecia que essas histórias escondidas e mal contadas ramificavam significações diversas na habilidade harmoniosa com o barro da beira do rio. A Terra reescrevia vozes e memórias nas esculturas, panelas e demais artes de Ponciá Vicêncio e Maria Vicêncio.
É essa herança de uma memória do passado incrustada no corpo negro que analiso na obra. Percebe-se que, em muitas obras dessa produção, a presença do invisível e do passado está sempre à espreita por meio da ligação entre as religiões de matrizes africanas e as memórias que constroem narrativas profundamente marcadas no corpo negro. Em Ponciá Vicêncio, um conjunto de memórias se entrelaçam e se transformam em diferentes lugares. Por exemplo, no início da narrativa, Ponciá Vicêncio é uma cópia dos corpos produzidos pelo espaço já conhecido. Isso está inscrito no próprio nome Vicêncio. Menina negra, ajuda a mãe com os afazeres da casa, com a produção de utensílios e artesanatos para venda. Assiste às chegadas, ocasionalmente, do pai e do irmão com sentimentos ora tristes, ora incompreensíveis. Rompendo com essa narrativa, surge nela um desejo, um sonho e uma esperança. Por isso, ela parte daquele lugar com a vontade incontrolável de viver aqueles sonhos guardados, trancafiados em sua alma.
Ao longo da narrativa, encontramos uma Ponciá infeliz. Entregou-se cada vez mais às memórias vividas na Terra que um dia decidiu abandonar. Com isso, a necessidade de retornar se tornou cada dia mais forte. Leio a família na obra como a metáfora do lar de Toni Morrison (2020), um lugar sendo remodelado para as existências múltiplas. Romper com esse lar, de forma tão vazia e solitária, acabou intensificando o sentimento de culpa, de saudade e de solidão. Heloisa Baldo (2017, p. 98) pontua que a relação entre Ponciá Vicêncio e Vô Vicêncio é “muito profunda e considera que ela tem no mínimo duas faces: uma da loucura e outra da ancestralidade”. No entanto, concordo com Aline Arruda (2007, p. 89) quando ela afirma que a “consciência de Ponciá sobre seu vazio nos confirma a introspecção da personagem e não a loucura, [...] Ela parecia saber que o destino ao lado daquele homem, naquele barraco, que poderia se situar em qualquer favela do Brasil, não era seu destino.”
Dessa forma, destaco que os momentos de afastamento do seu corpo e do tempo presente não se trata de um estado de loucura. Mas sim de uma maneira de retornar para dentro de si numa perspectiva mais aberta e compreensiva. Essa foi a forma pela qual ela espelhou seu eu presente num estado de solidão e vazio em seu antigo eu menina. Foi no rememorar seu eu antigo no ato de ir buscar água do rio, no esperar passar o angorô para então chegar ao rio, no cobrir as intimidades do corpo para selar o pacto de menina-mulher, no modelar e remodelar sua existência do (e no) barro que ela se reconheceu. Ela se reconheceu, modelou e remodelou sua existência no barro e no rio. Ela se colocava entre todas as versões que fora para analisar, investigar, compreender os motivos que a haviam levado a escolher partir para aquele espaço. Nesse transe de memória, nesse árduo retorno, ela refletia no seu eu de agora todas as suas antigas versões e ainda introjetava em seu mais íntimo os eus, performances, dores de todos os negros da Vila Vicêncio. Essa volta, que nas lentes da globalização moderna seria um atraso, para a personagem foi a chave para a libertação tanto do seu “eu” presente quanto do “eu” passado.
Em Maréia, duas famílias, duas histórias interligadas pela escravidão. Histórias ligadas através da crença, da memória, da herança e do tempo-espaço. Maréia, configura-se como uma obra construída na base da religião de matrizes africanas. Duas histórias, uma do colonizador e a outra dos povos colonizados. Destinos que foram interligados pela violência, morte, ódio, ganância e crueldade no descarte dos corpos negros como se fossem só mais uma ferramenta para consolidar o poder do colono. Temos uma personagem em constante deslocamento da cidade grande para a sua pequena casa no interior. Ela encontra e tece rotas possíveis que a possibilitam driblar e refutar as armadilhas neocoloniais, ao mesmo tempo que confronta o sistema hegemônico da universidade e fora dela, no ambiente hostil de trabalho. Sua âncora são as histórias sobre o seu avô que sua avó contava: a herança para a música ou, melhor, o talento ancestral de ouvir os sons da natureza. Fazia de seu instrumento seu corpo e construía, no ritmo das ondas, as encruzilhadas que trariam o que era seu de volta.
Miriam Alves narra por entre tempos e histórias, que foram destruídas por aqueles que tinham o poder de calar, silenciar e assassinar qualquer corpo, forma e existência distinta dos seus modelos colonos e capitalistas. No entremeio de diversas vidas, tempos e espaços, enxergo uma mulher a ser amparada por várias outras mulheres. Elas constroem e reconstroem as artérias culturais passadas, tecem novas linhas para o horizonte futuro, se voltam para um passado que não lhe foi apresentado. Maréia encontra, nas histórias de vó Déia, inspiração para seus trabalhos acadêmicos e para as suas composições. Nas suas músicas, ela (re)compõe as histórias de marinheiro do seu Vô Marcílio e de todas as vozes que lhe habitam.
No regressar ao lar, a casa pequena perto do mar, onde viviam sua mãe e sua avó, Maréia encontra respostas, apoio e recupera as suas forças para o enfrentamento às amarras coloniais que insistem em prendê-la em seus grilhões. Mesmo diante de toda desigualdade, preconceito e racismo, ela continua a adentrar nesses espaços excludentes. Paralelamente a isso, Miriam Alves narra a vida presente e passada dos magnatas Albuquerque, com riquezas acumuladas com o trabalho escravo dos corpos negros. Eles continuam a se moldar nas correntes raciais e escravistas do mundo moderno globalizado. Essa família, mesmo diante da morte, não se amedronta. A cada morte assistida, a ganância por poder e dinheiro aumenta. A necessidade de um herdeiro vivo para manter seu império colono fica cada vez mais forte e prevalece ao longo da obra. O primeiro Albuquerque havia roubado tanto os seus quanto algo valioso dos ancestrais de Maréia no período da escravidão. As mortes que enfrentavam eram um aviso de que eles deveriam devolver aquilo que nunca foi deles, aquilo que eles mataram para roubar e mantinham trancafiado na mansão.
O último ainda vivo, Alfredo Albuquerque foi atormentado a cada morte que assistia. Irmão, irmã, pai, mãe e avô: todos eles encontraram a morte da mesma forma. Angustiado e sozinho, seu único alento era saber que o avô não estaria mais a atormentá-lo. Então, Alfredo enclausurado na sua mansão, passou a nutrir o desejo de se tornar o próximo Albuquerque temido e respeitado, algo que sua doença sempre o impediu. Suava a cada minuto. O desejo de controlar tudo e todos com seu império ressurgiu da chama que estava apagada por muito tempo em seu corpo. Ao revisitar as histórias de sua família, descobriu o passado vergonhoso de seus ancestrais e o medo que sempre o perseguiu despertou bem diante dos seus olhos, aquilo que o unia a Maréia: “nla ooni”. Ele precisava se livrar dessa “maldição” o mais rápido possível, assim continuaria a comandar o império que surgiu ainda no navio que o seu antepassado entrou em direção à América.
Desse modo, Miriam Alves narra a personagem Maréia a partir de sonhos, idas e voltas no tempo-espaço, como possibilidade de reelaborar os traumas, as dores, o passado e construir o futuro, é uma característica da transescrita que trabalho como elemento comum da literatura negra. Maréia é uma daquelas personagens que “interrogando, se interroga. Cobrando, se cobra. Indignada, se indigna. Inscrevendo-se para existir e dar significado à existência e, neste ato, se opõe” (Alves, 2010, p. 185). Uma mulher negra escritora que “escreve, inscreve, re-escreve, enunciando, denunciando e, a partir da palavra, tenta romper, desbloquear, deslocar ou deslocar-se” (Alves, 2011, p. 183).
Ponciá e Maréia encaram o mundo fora de casa de formas bem distintas. Conceição Evaristo narra uma mulher carente de sua família, solitária e que, para se livrar disso, é necessário um retorno às origens. Essa volta não significa retornar para a servidão, mas sim conectar-se novamente com o que é capaz de curá-la. Fazer as pazes com o passado. Compreendo que ali havia uma outra forma de existir, que não era melhor nem pior do que aquela na cidade. No entanto, percebo que, quanto mais o tempo passava, mais a necessidade de estar com a família e de estar em contato com o barro tornava-se maior. É impossível analisar as escrevivências de Ponciá distante da relação entre corpo-natureza, corpo-barro, corpo-terra-memória. Por mais que sejam escrevivências diferentes, modos distintos de viver e perceber o mundo, tanto Ponciá como Maréia possuem a herança ancestral como âncora que as impede de afundarem nesse grande mar de vozes, onde as narrativas dos colonos sempre prevaleceram. Nessas duas histórias, têm-se as vozes múltiplas, vozes pretas (re)costurando e (re)modelando os fios da terra e das águas. Navegando novas rotas do Atlântico Negro.
- De Conceição Evaristo à Miriam Alves: formas distintas de escrevivenciar a Diáspora Negra
O que fazer? O que fazer? Como aliviar o choro de um rebento ainda guardado, mas tão suplicante, que parecia conhecer as dores infindas do mundo? (Evaristo, 2017, p. 108).
Os que participavam da animada reunião, homens, mulheres e crianças, sentiam-se vivificados, com as lembranças guardadas na memória do tempo e no ventre do mar, narradas pelo velho marinheiro, que ostentava um colar de contas azuis para amainar o desejo de voltar para o mar (Alves, 2019, p. 52)
Conceição Evaristo (2017) não apenas faz da literatura negra-brasileira instrumento de denúncia das colonialidades, mas também instrumento de questionamento e mudança acerca da exclusão do sujeito negro diaspórico. É por meio dessa característica de mudança e movimento que aproximo sua escrevivência literária à transescrita, na personagem Ponciá Vicêncio, que um dia, decidida a romper com o ciclo da violência escravocrata a que ela e todos da sua família estavam submetidos, segue em direção ao trem e vai para a cidade tentar realizar os sonhos incrustados no seu corpo-alma.
Em tom melancólico, a personagem descrita em um discurso na terceira pessoa, olha para a cidade e o vazio a inunda por completo. Ao perceber que os santos da igreja eram bem mais limpos e cuidados do que o seu povo, ela sentiu medo e arrependimento por deixar sua terra: “[...] os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida” (Evaristo, 2017, p. 70). Ainda, como se fosse um destino único já traçado antes mesmo de Ponciá nascer, ela, ao falar com uma das senhoras que frequentava diariamente a igreja, consegue um emprego como empregada doméstica na casa de uma prima dessa senhora. Parece que mais uma vez Ponciá se encontrava presa a um tipo de prisão ou destino neocolonial. Tendo os transes de memória como único meio de transcender esse cruel destino, no mundo onírico.
Semelhantemente, Conceição Evaristo e Miriam Alves produzem uma transescrita que problematiza e questiona os poderes das colonialidades, que regem e controlam o sujeito preto na sociedade moderna. Ponto em comum das literaturas negras das Américas. A exemplo, Toni Morrison, em O olho mais azul, narra Pecola Breedlove pelas lentes azuis, símbolo de poder e marca do reconhecimento (universal) de ser humano. Em Voltar para Casa, (re)escreve Frank como a sombra de uma guerra que tenta constantemente ser esquecida e, por isso, a necessidade de descartar, destruir os vestígios de uma memória dolorida e vergonhosa, isto é, livrar-se desse corpo quebrado, fissurado, atormentado. Assim, pontuo que as autoras olham esse corpo e à medida que “escreve-vivência-inscreve”:
[...] era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentimentos de tudo que ficava para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras a marcar havia (Evaristo, 2017, p. 110).
A transescrita das escrevivências é esse trabalho de investigar, inspecionar o não dito para além da história conhecida. Simboliza os atos inconscientes de todo um povo em constante deslocamento. É o ato de trabalhar a partir do nome, mas ir além dele. Perceber a dor e a reelaborar pelas escritas da vida que se confundem no espaço-tempo: “[...] a vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era uma mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (Evaristo, 2017, p. 110). A transescrita das escrevivências é a hifenização da palavra dita-sentida-imaginada-escrita, quer dizer, transescrita. É a hifenização da dor-amor, do retornar e recomeçar:
Maréia expressava o amor, aliviava-se da saudade e do peso da orfandade, o som que produzia harmonizava-se com o marulhar das ondas. Colocou o pequeno barco enfeitado na água, observava as ondulações, o levar mansamente, até ser arrastado por uma correnteza mais forte e afundar, carregando suas mensagens para o fundo. Hipnotizada, olhando o ponto em que ele sumira, murmurou trecho do bilhete que escrevera. “É preciso reaver os nossos pertences, tragados pela ganância alheia. É preciso nos devolver a nós mesmos, como o senhor dizia, vovô. O senhor e o papai não puderam ficar, a senhora das águas os requisitou antes. Mas, como diz vovó, não temos que lamentar” (Alves, 2019, p. 48).
Mirian Alves produz uma transescrita que retorna à terra dos seus antepassados pelas memórias e sonhos. Narra as escrevivências de Maréia e Dorotéia em um tempo espiralar, termo construído por Leda Martins para explorar um passado-presente nas idas e voltas pelas paisagens sonoras e escrita do viver negro. O amor entrelaça gerações passadas por meio da música, antídoto para o mal colonial que os perseguem para além do seu lar, o mar. Carrega-o em seu nome, como lembrete da união passado-presente. Uma (re)existência para além da racionalidade e um espaço para além dos planos visíveis aos olhos nus. Doroteia, avó de Maréia, viaja no “tempo espiralar” e conhece a história silenciada ao longo dos séculos de escravização dos seus iguais. Os “eus, de Déia lhe trouxeram entendimento, dando significado aos fragmentos de memória que possuía, revelando detalhes ocultados da história” (Alves, 2019, p, 97). Uma transescrita que remodela as escrevivências para a reconstrução do passado e construção do futuro. Escrevivências que transcendem a casa racial e descentralizam a narrativa eurocentrada.
Percebo como as memórias e as relações nascem de um diálogo em que costumes, crenças e tradições estão sendo traduzidas em espaço-tempo nos entre-lugares dos sonhos da Diáspora Negra. Ponciá, por causa dos sonhos nunca alcançados, questiona a vida que levava na cidade e a destruição dos espaços e dos corpos negros excluídos à margem. São nesses questionamentos que se inscreve e (re)escreve seu futuro rememorando (sonhando) as vivências, o espaço e a família que deixara na Vila. À medida que recorda um passado não tão distante, narra um viver outro na Diáspora, o qual restabelece o hímen entre corpo-terra-memória rompido desde a invasão e escravização dos povos originários. Ela deposita novas esperanças de escrever e viver novas oportunidades para todos os corpos negros de uma Diáspora transescrita-escrevivente.
Indubitavelmente, traduz a dor em amor, cujas raízes ramificadas na terra e nutridas pela mãe-água ganham performances na modelagem do barro-vida em: “criações feitas, como se as duas quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos, em qualquer lugar. [...] Estava feliz também, porque, na criação da mãe e da irmã, estavam apontados os nomes delas como autoras” (Evaristo, 2017, p. 89-90). Logo, compreendo, por meio da transescrita das escrevivências, que a literatura negra-brasileira (re)escreve-se como solo fértil que eflui constantemente o ato de narrar as dores, de transpassar o trauma que é vivenciado por outras lentes das colonialidades e regidas pela ordem capital.
Em síntese, tanto a literatura de Miriam Alves quanto a de Conceição Evaristo podem ser lidas pela transescrita de Roland Walter, a qual investiga uma escrita como meio de reelaborar o trauma, para então modificá-lo de forma a transpassá-lo para criar um futuro melhor. Nas palavras de Lima Barreto (1995, p. 34): “que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor […] que a refaça e que diga o que não pude nem soube dizer”. Na voz de Conceição Evaristo (2021, p. 30-31), essa tarefa consiste em pensar a escrevivência como uma “condição particularizada que me conduz a uma experiência de nacionalidade diferenciada. Assim como é diferenciada a experiência de ser brasileiro vivida”. Para Miriam Alves (2019, p. 84), nessa escrita, “o propósito de seus desdobramentos era encontrar as verdades que ficaram recônditas, desvendá-las, ir ao fundo da história, trazer as respostas”. Em concordância com Roland Walter (2008, p. 256-258), “a literatura negra das Américas contribui para transformar a nossa concepção dos outros”, sendo assim, “os escritores afrodiaspóricos são mediadores transculturais sobre o hífen entre culturas e epistemes, transcrevendo os laços conflitivos que as mantêm em relação”.
Em outras palavras, pontuo que esses escritores(as) afrodiaspóricos(as) narram-se como sujeitos ativos de sua própria história, isto é, de sua própria transescrita das escrevivências. Ainda, aguçam um outro olhar, um olhar de fora, que vai além do ver. Focado por meio de uma escuta cuidadosa, uma escuta afetiva. Quer dizer, são narrativas que partem de lugares e de experiências comuns, de vozes múltiplas produzindo uma crítica reflexiva sobre a não existência sua e do outro, sobre retornos e não retornos. Narram atos inconscientes que transcendem o véu da raça e se posicionam sobre a casa racial para desvendar as camadas dessa “ausência”, que Dionne Brand (2022) discute como característica do olhar sempre em direção à “Porta do Não Retorno”.
Deste modo, compreendo a literatura de Miriam Alves e de Conceição Evaristo como um “tipo de escrita neste entre-lugar uma transescrita, ou seja, uma maneira de escrever que se move através de um espaço intersticial dentro e entre fronteiras” (Walter, 2008, p. 88). Miriam Alves (2019, p. 97) narra as escrevivências desse espaço intersticial como “fronteiras dos mundos” que se abrem “para além dos limites físicos, um elo distante a unia aos que lhe antecederam, através de elementos intangíveis, soprados pelo vento, cochichando histórias sonorizadas pelas ondas do mar”. Enquanto Conceição Evaristo (2019, p. 17) transcreve o “tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre”.
Assim, suas transescritas são narrativas marcadas pela memória coletiva que se complementam nos entre-lugares interculturais, locais e globais a reelaborar o trauma por meio das escrevivências. Dito isso, enxergo a transescrita e a escrevivência como caminhos teóricos e literários que traduzem de modo a nomear, (re)nomear, dialogar e (re)negociar as tensões, perdas e trocas na tradução das experiências de um ser negro. Recontado pela oralidade, memórias, sonhos (re)vividos da terra/paisagem e das lembranças evocadas pelo próprio self, um self traumático.
Assim, a transescrita das escrevivências interligada à natureza trabalha reconstruindo o hímen rompido corpo-terra-memória nas obras. Uma escrita que reformula as dores e feridas escravocratas invocando os poderes e saberes do mar, das arvores, dos rios e do barro. Saberes revividos como guia nesse deslocar diaspórico. Cria Portas do Não Retorno como maneira de conhecer a si próprio enquanto comunidade. Permite a reconstrução dos destroços dessas portas que se mantêm incrustradas nos nomes, no passado e no sangue negro. Para além disso, possibilita o diálogo entre aquilo que não foi e não pode ser perdido, entre as “vozes que nos habitam” (Alves, 2019, p. 129) e a “herança de uma memória reencontrada pelos seus” (Evaristo, 2017, p. 111).
Destarte, a transescrita das escrevivências traduz muitas diásporas dentro e entre esse transladar-se negro que ligam povos, culturas, línguas, memórias, narrativas, paixões, corpos, amores por intermédio de múltiplas vivências individuais que são partilhadas com toda a comunidade. Construindo elos e tecidos que nascem da relação com o espaço/paisagem e se prontificam como base para a construção e inspiração negra literária.
Reflexões sobre uma pesquisa em movimento
Por meio da transescrita das escrevivências, percebo uma forma mutável, fluida, que trabalha na reelaboração do trauma escravocrata. E, por isso, ao interligar a transescrita, de Roland Walter à escrevivência, de Conceição Evaristo analiso uma “escrita vivente” — uma escrita que permite que esses corpos se inscrevam no processo de (re)escrita e modificação do espaço. Diante disso, compreendo que Conceição Evaristo narra a escrevivência como uma “transescrita” de memórias dos povos pretos em Diáspora. Demonstro como a escrita de Conceição Evaristo e Miriam Alves apresenta traços de uma transescrita literária, que, segundo Roland Walter (2008), trata-se de uma forma de escrever que move, modifica e cura as feridas abertas do trauma.
Tanto na “escrevivência” quanto na “transescrita”, não há a separação entre corpo e espaço: os dois caminham em sintonia no passado ou presente. Recriam suas crenças, culturas e costumes na Terra e com a Terra. Em confluência com Ailton Krenak (1992), o renascimento pelas águas, o culto na encruzilhada, os terreiros, a comunidade solidária, o partilhar dos saberes de cura da natureza marcam o viver diaspórico negro no contínuo consertar do hímen rompido: corpo-terra-memória. A recuperação da memória nasce pelo resgate dos destroços, pela recuperação do que não foi perdido nem transculturado, da mesma forma que pelo que foi transculturado. São esses aspectos e conexões que me fazem perceber o entrelaçamento da “transescrita” e da “escrevivência” para o estudo acerca da forma, produção e objetivos da literatura negra-brasileira.
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TRANSESCRITA DAS LITERARY ESCREVIVÊNCIAS THE CONCEIÇÃO EVARISTO E MIRIAM ALVES
ABSTRACT
This research investigates how black literature works to supplant the trauma of slavery, based on Conceição Evaristo's “Escrevivência” and Roland Walter's “Transescrita”, in the novels Ponciá Vicêncio by Conceição Evaristo (2017) and Maréia by Miriam Alves (2019). Therefore, the importance of this article is in how it interprets the “transescrita of escrevivência” as a theoretical concept for black individuals to inscribe themselves in the world, overcoming the trauma of slavery and working towards a better future.
Keywords: Escrevivência, transescrita, black diáspora, trauma supplantation.
[1] Mestra em Letras, Estudos Literários, pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[2] Este artigo é fruto do segundo capítulo da minha pesquisa de mestrado, que desenvolvi no programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob a orientação do Prof. Dr. Roland Walter. Destaco que Roland Walter, meu professor e orientador, foi uma das bases teóricas que me inspirou a investigar a suplantação do trauma escravocrata ao longo da minha dissertação.
[3] Aponto esse movimentar-se, com base no pensamento de Deleuze e Guattari (1995) sobre as “multiplicidades rizomáticas”.