HERMÓGENES ALMEIDA

LENI NOBRE DE OLIVEIRA*

 

Hermógenes Almeida Silva Filho nasceu na Bahia em 14 de agosto de 1954. Era filho de pai do mesmo nome e de Adalgisa Albino Santos, matriarca conhecida como Dadá. Formou-se em História, tornando-se um pesquisador. Foi poeta, professor de História, assessor político e participante de vários grupos, dentre os quais se destacam grupos musicais e literários pós-tropicalistas, de 1968 a 1974, tais como o Movimento Popular e o Grupo Negrícia. Além disso, participou de várias antologias de poetas negros. Em sua juventude, praticou percussão em clubes de Salvador. Hermógenes morreu em 2005.

Publicou, em 1983, o livro de poemas e manifestos Reggae=Ijêxá; em 1987, lançou Roteiro dos Oríkìs, livro de ensaios e poemas e, em 1988, surge Oríkìs. Todas as suas publicações foram realizadas no Rio de Janeiro, onde passou a residir. É autor do ensaio "Reflexão sobre literatura negra", publicado nos Anais do 1º Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros, pela UNESP, em 1986, e ainda de História da filosofia dos rastafari. Embora saibamos de sua inserção no teatro, não identificamos nenhuma publicação dele.

Dado o caráter desse verbete, nós nos concentraremos em apreciar apenas a produção literária do autor. Abdias Nascimento, no prefácio de Oríkis, o saudou como sendo "um livro que nos remete violentamente à reflexão a respeito das culturas africana e afro-brasileira"1 e denominou Hermógenes de "o nosso akpalô", palavra de origem nagô que significa contador de histórias, aquele que guarda e transmite a memória de seu povo. "Oríkìs" é um termo iorubá que quer dizer canto de louvação. O significado do livro desse poeta se aguça quando destacamos, dessa palavra composta, a parte "ori" - cabeça, no candomblé. Assim, o eu lírico deixa transparecer sua missão de griot, líder/cabeça que canta seu povo, já que seu pensamento, exposto por meio desses cantos de louvação, como afirma Abdias Nascimento, "demonstra extrema lucidez ao colocar, sob a forma de mundancista, a substância cultural que a legitima e a identifica".2

Oríkìs é composto por três conjuntos distintos de poemas, com projetos também distintos. A militância e a denúncia de racismo e de desigualdades estão presentes em "Canções de rebeldia". Em "Poemas da paixão", fica evidente a expressão poética que coloca em pauta a presença do amor e da reflexão sobre o humano, e em "Exercícios de criação" o poeta constrói seu imaginário e o seu fazer poético, o seu Oríkìs. Frieza, lirismo, emoção, denúncia, solidariedade, amor são palavras que bem exprimem a substância da mensagem de Hermógenes.

Ao prefaciar Reggae = Ijêxá, primeiro livro do poeta, Mestre Didi o reconhece como um livro que teria vindo "para ajudar a enriquecer e fortalecer a vida de nosso povo".3 E o define como obra de poemas, canções e anunciações. Ela está dividida em quatro partes: "Poema processo", "Reggae-Ijêxá", "Canções" e "Anunciações".

Em "Poemas processo", o autor se dedica a brincar com as palavras e seus significados, ora de forma engajada, ora poetando simplesmente ao prazer e ao gosto da rítmica e da sonoridade liberadas pela composição dos próprios vocábulos. Ao elaborar seus versos, o poeta reinventa as palavras, perlabora e perverte o significado delas e se insere nas demandas de produção estilística brasileira daquele momento. Composta de 11 poemas, essa é a parte mais amena desse livro, quando levamos em consideração que toda a obra se manifesta como um forte grito que pretende evocar a alma das mulheres e de todos os que se engajaram na luta contra a discriminação racial, e ainda manifestar-se pela democracia e pela paz da humanidade. E, é claro, o eu lírico do poeta, nessa obra, deixa fluir intensamente a expressão lírico-erótica dos amores que a vida permite.

A parte desse livro denominada "Reggae-Ijexá" é formada por cinco poemas que mais parecem letras de música, pela organização, disposição e repetição sistemática dos versos, o que não é de se estranhar, dado que Hermógenes, um ex-percussionista que circulou, na juventude, por vários clubes de Salvador, trazia já em si o preparo necessário para combinar letra e ritmo. Mas não é nessa parte que prenunciamos neste poeta um amante da musicalidade e um dos precursores do rap no Brasil. Em "Canções" (3ª parte) e em "Anunciações" (4ª parte), preferencialmente no "Poemanifesto do movimento negro", referências a ídolos mundiais da causa negra - como Jimmy Cliff e Bob Marley - a importantes representantes da música popular brasileira, dentre os quais João Gilberto, Cartola, Martinho da Vila, Lamartine Babo e Pixinguinha, e ainda, às tradições musicais afro-brasileiras, tudo isso serve como endosso, mais uma vez, de que temos, nessa obra de Hermógenes, as composições de um griot, que, como disse Mestre Didi,4 "vê o poema na respiração, no ar, na pedra, no mar, na solidão, na viagem, na noite, no reluzir das estrelas, na sociedade, na natureza, no mito, na vida e na morte". Trata-se de um afrodescendente cuja poesia é intensa, densa e sóbria, mesmo nos poemas mais longos. Parece que ele tinha muita pressa em dizer a mensagem que deveria fazer dele um ancestral, lembrado e rememorado na tradição dos poetas afro-brasileiros.

Hermógenes merece figurar no panteão daqueles poetas, tais como Adão Ventura, Edimilson Pereira e Oliveira Silveira, os quais reinventaram um passado sagrado africano em sua poética. E desse modo, reinventaram uma herança religiosa africana no Brasil, que nos parece compartilhada nos mais diversos e adversos contextos. Mas poucos estudos foram feitos sobre sua obra. Isso porque, apressado como foi, Hermógenes publicou fora do mercado editorial formal e seus livros desapareceram, não foram reeditados. Ainda assim foi incluído como membro do grupo Negrícia por Luiza Lobo em Crítica sem juízo (2007), como um dos poucos que tinha publicação na década de 1980.

Sua produção se insere no grupo dos escritores da geração de 1970 para cá, considerada contemporânea como querem alguns e, para outros, pós-modernista. Como vários poetas inseridos nesse contexto, Hermógenes apresenta em sua obra as características do poema-processo, da poesia marginal, da poesia-práxis e, com esses arremates, constrói sua denúncia social, discurso panfletário, às vezes, com a força de quem sabe o peso do estigma de ser negro e a necessidade de mudanças na consciência da humanidade. Sua poesia diz na disposição das palavras e dita as rítmicas que lhe dão musicalidade. Hermógenes não é um poeta brasileiro ou afro-brasileiro apenas. Sua obra tem o caráter e a possibilidade de permanência que parecem estar presentes naquelas obras que, divulgadas e devidamente apreciadas, poderiam vir a se tornar clássicos, pois a inserção desse poeta na cultura africana via religiosidade, em situação diaspórica, porque no Brasil, torna-o universal, por causa dessa mesma diáspora. Universal porque ela se relaciona com uma ancestralidade transcendente que cruzou o Atlântico com os negros e suas religiões e se dispersou pelo mundo inteiro. Universal também porque seus poemas foram traduzidos para outros idiomas. "Tornar-se negro" foi traduzido como "Di enia-dudu", por Fernandes Portugal; "Hamba Kahle", para o inglês, por Jennifer D. Blajderg; e "Quem é esta mulher?" mereceu tradução do World Council of Churches.

Além disso, mesmo com a escassa fortuna crítica encontrada em nossa pesquisa, sua produção e a especificidade de sua poética nos conduziram a uma surpresa, dada a riqueza diante da qual nos encontrávamos e de que tínhamos sido e estamos sendo privados. Devido às suas inserções no imaginário mítico e religioso da cultura africana e afro-brasileira, com forte militância política e social, trata-se de uma obra hipertextual, intertextual, inter e transdisciplinar, aparentemente escondida por trás de uma poesia mundancista, como a define Abdias Nascimento.

O poeta tinha pressa e era profícuo porque, conforme expõe Abdias, Hermógenes era desses jovens a quem a história reservou uma tarefa: "a denúncia da injustiça racial e a luta por uma sociedade sem opressores e sem oprimidos, sem exploradores e sem explorados."5 Praticamente publicou, de 1983 a 1988, uma obra, poética ou científica, por ano. Essa pressa jorra em versos que falam de rejeição, de pré-conceitos, de preconceitos, do sofrimento do povo africano e de seus descendentes pelo mundo. Mas também canta a beleza do povo negro, as glórias dos seus heróis, a bravura de seu povo, o engajamento daqueles que se sacrificaram em prol da valorização do negro, da sua cultura e da sua libertação, consagra os mártires da causa contra o racismo e os que lutaram em prol da libertação dos povos negros, aprisionados em correntes diversas. Seus versos fazem a reverência aos antepassados, saúdam seus ancestrais e seus orixás, encharcando a sua poesia em sua identidade afro-brasileira como em seu poema "Identidade": "Quero que você me compreenda/Não sou aquele que você vê/nem aquilo que você pensa/Sou um griot sem legenda." Diante de questionamentos em torno da literatura afro-brasileira podemos dizer, com a poética de Hermógenes, que ele era um griot afro-brasileiro que se manifestava como não teria sido possível se ele não o fosse.

Sim, o poeta tinha pressa, porque sua passagem foi rápida ele como o meteoro, na velocidade com que ele resgata a memória das lutas de seu povo em seu "Poemanifesto do movimento negro", em que, de Luiza Mahin a secretários de Estado negros contemporâneos, os quais recentemente assumiram a luta de libertação, com a presença, no Parlamento, de Abdias Nascimento e Benedita da Silva, Hermógenes resgata os grandes heróis, louva luta e a resistência de seu povo e propõe a harmonia anunciada por Bob Marley, evidentemente presente em vários momentos, principalmente naqueles poemas que se poderiam incluir como épica. Uma épica afrodescendente pode ser observada no já citado o poema, e em outros de seu livro Oríkìs: "Poema mágico", "Tornar-se negro" e "Hamba Kahle".

       Hermógenes Almeida também louva as mulheres pela força em "Mulher negra", "Tributo a Elis", "Quem é esta mulher?"; pela sua graça, beleza e volúpia: em "Sexos opostos contra a parede", "Conheci uma menina", "Do pensamento fálico à revolução da escultura" e "Oh! Musa paulistana"; por sua ampla atuação no seu próprio destino e no da humanidade: "Canção do cometa feminino", "Liberdade de mulher". Ele também tropeçou em amores, na busca da mulher ideal. É o que se pode depreender em alguns poemas de Reggae = Ijêxá e de Oríkìs. Hermógenes pode ser considerado um dos protagonistas, sem o saber, do rap bem brasileiro, com sua épica mundancista, como bem definiu Abdias Nascimento. A disposição dos versos e os seus tamanhos exageradamente desiguais ou dispostos de forma espacial sugerem entrada da voz do poeta em andamentos diferentes da rítmica tradicional, um andamento musical próximo ao fluxo normal da fala cantada. Era realmente um griot contemporâneo que, por ter embarcado nos ritmos da percussão, deixou-a impressa na forma de organizar sua poesia. Ele morreu aos 51 anos de idade e sua obra está por ser estudada com a devida atenção que merece esse akpalô. "Seja o que os Orixás desejarem. Axé!".

 *Professora do CEFET-Araxá, Doutora em Literatura Comparada pela UFMG.

Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica/ Eduardo de Assis Duarte, organizador – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 4 v. - (Humanitas).