Identidade, Representação e Resistência:
a poética do estranhamento na poesia de Oswaldo de Camargo

 

Raimundo Silvino do Carmo Filho¹

Élio Ferreira de Souza²

 

Atitude

Eu tenho a alma e o peito descobertos
à sorte de ser homem, homem negro,
primeiro imitador da noite e seus mistérios.

Triste entre os mais tristes, útil
como um animal de rosto manso.
Muita agonia boia nos meus olhos,
inspiro poesia ao vate branco:
“...Stamos em pleno mar...”
Estamos em plena
angústia!
[...]

Estamos com a cara preta
rasgando a treva e a paisagem
minada de precipícios

velhos, jamais arredados!
[...]

Negro, ó negro, pedaço de noite, pe-
daço de mundo, ergue-te!

Deixa essa mansidão nos olhos,

tua delicadeza
e o fácil riso jovial.

duro, ó negro, duro,
como o poste em que mil vezes te
chicotearam.

Sê negro, negro, negro,
maravilhosamente negro!

Oswaldo de Camargo
1978

 

O presente artigo resulta de um projeto de pesquisa em âmbito de mestrado desenvolvido por mim e pelo professor Elio Ferreira de Souza na Universidade Estadual do Piauí – UESPI nos anos de 2014-2016. Dessa forma, examinamos alguns poemas de Oswaldo de Camargo com o intuito de verificar como sua poesia traduz relações entre as formas de construção da identidade, a resistência e suas representações no livro O Estranho de 1984. Assim, consideramos essa relação; identidade, representação e resistência como parte de um legado africano para a literatura brasileira a partir da literatura afro-brasileira.

A poética camarguiana se situa dentro de um ambienta literário comprometido com as causas étnico-raciais do povo negro e, em particular, com suas formas de vivências no contexto da atualidade. Oswaldo de Camargo não só tematiza o universo humano e cultural do negro, mas também se inclui dentro de uma vertente das letras brasileiras, mesmo perpassando outros lugares, outros espaços e formas. O negro, na escrita poética de Oswaldo de Camargo, expressa uma consciência aguda das consequências geradas pelos choques sofridos nos encontros das culturas negra e branca. Nesse universo de relações conflituosas, o negro se torna o “estranho” aos olhos do branco. E, assim, o branco, também, se torna um ser incômodo aos olhos do negro e do próprio branco, na medida em que inexistem quaisquer possibilidades de diálogos interculturais ou entre culturas diversas e diferentes nesses relações.

Para solucionar as desigualdades geradas por esses choques culturais entre esses dois mundos, Édouard Glissant sugere o (re)estabelecimento do equilíbrio, através da crioulização, visto que esses elementos foram colocados em presença um do outro sem a devida valorização, ou seja, houve a priorização do elemento branco em detrimento do negro. Só através da “crioulização” (2013), de novos encontros, só que agora com os elementos em posição de igualdade de valorização, se pode (re)estabelecer o equilíbrio entre esses sujeitos marcados pela diferença de valores culturais e étnicos raciais. O poema intitulado “O estranho”, que dá nome ao livro de 1984, aponta os traumas fomentados pela hegemonia da cultura do colonizador branco, que tentou depreciar e desqualificar a cultura do negro colonizado. Leiamos alguns versos do poema.

O estranho

Se o escuro me revelais
à baça pele que ofusca
vossa estimada clareza,

também vos deixo por nada
o enxurro de tantos medos
nas vossas mentes liriais.

Os vossos doces punhais
aceito-os com meu disfarce e
atrás do muro de um riso

escondo o meu pensamento...
(CAMARGO, 1984, P.19)

Homi K. Bhabha afirma que, “Embora o estranho seja uma posição colonial e pós- colonial paradigmática, tem uma ressonância que pode ser ouvida distintamente [...] em ficções que negociam os poderes da diferença cultural” (2014, p. 32). Nesse sentido, a ressonância se revela nos embates travados pelo encontro desses dois universos “raciais”, além de apontar também as distâncias que os separam na constituição de uma relação cultural que respeite as diferenças e os valores do outro. A metáfora do escuro revela o negro e a estimada clareza do branco. No entanto, os dois sofrem do mesmo complexo, não conhecem um ao outro. Isso os impede de gerarem conhecimentos reais e verdadeiros acerca dos seus universos humano e cultural, restando-lhes o aprisionamento, o cárcere em suas masmorras. O negro na sua negrura e o branco na sua brancura. Frantz Fanon (1925-1961) já afirmava em Pele negra, máscaras brancas (2008) que os dois, o negro e o branco, sofrem um complexo psicológico.

Nos versos do poema, podemos ver uma lírica que tece uma tristeza profunda, eivada de um sentimento de quase desespero. Revive a memória dolorida dos lamentos dos antepassados escravizados no “eito”, no trabalho forçado, marcado pelo peso das correntes da escravização, ainda doloridos pela ignorância apregoada nos dias de hoje, que faz com que o negro permaneça invisível na sua condição de homem e mulher, que vive num mundo regido pela indiferença e preconceito.

Olhai! A noite que chega,
borrando o vão da janela
é bem conhecida minha...
Eu a carrego em baús
vazios de vossa herança,
e eu a livro, por vezes,
berrando de desespero,

e a minha mensagem viaja
no dorso do uivo do vento.
E vós dizeis, repousados,
se, a medo, vossas faianças
velais, arcados de tédio:

São lamentos, só lamentos,
aprendizado do eito...”
Senhores, vós não sabeis
quem sou,

ah, não sabeis quem eu sou!
[...]
(Ibid., p. 19)

É como se o poeta dissesse, quero ser reconhecido pelo outro, o branco, na minha diferença, na minha história, como homem visível. A ausência de conhecimento verdadeiro acerca da identidade de cada um revela como se torna difícil a compreensão do universo humano e cultural tanto do negro quanto do branco. No entanto, algo nos chama a atenção, o fato de o negro ter a ação de gerar a busca do conhecer, o querer conhecer a si mesmo e ao outro. Essa atitude do eu lírico desmascara o lugar de onde sai o discurso, de quem provoca a mudança de relações, assim como aponta ao não conformismo do negro em permanecer no estado de estranhamento em que se encontra diante do branco. Nesse sentido, o negro exige o direito de se relacionar a partir do seu lugar étnico-social, bem como fazer dos seus lugares de vivência uma releitura de sua condição étnico-social. Homi K. Bhabha, em O Local da cultura, relendo Franzt Fanon, argumenta que:

No momento em que desejo, estou pedindo para ser levado em consideração. Não estou meramente aqui-e-agora, selado na coisitude. Sou a favor de outro lugar e de outra coisa. Exijo que se leve em conta minha atividade negadora na medida em que persigo algo mais do que a vida, na medida em que de fato batalho pela criação de um mundo humano que é um mundo de reconhecimentos recíprocos (BHABHA, 2014, p. 30).

O encontro entre esses dois mundos expõe o lugar do negro e o do branco. O espaço de contato entre esses dois universos se constitui na fronteira, no entre-lugar da negociação cultural. A fronteira que os separa termina por expor, por desvelar, também, o lugar a partir do qual algo começa a se revelar. Segundo Bhabha (2014, p. 25), “[...] a fronteira não é o ponto onde algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”. Esse algo é a questão da agência cultural, ou seja, nessa fronteira surge a possibilidade de construção das identidades negras. O eu lírico exige novas formas de situações culturais que expressam aberturas, espécie de fluidez.

A representação do negro, a partir do próprio negro, revela a busca pela representação da diferença, pela encenação do mundo do outro. Os versos do poema de Oswaldo de Camargo expressam não só o desejo de reescrever suas histórias, mas sobretudo de reencenar o passado e reintroduzi-lo dentro de outras temporalidades, dentro do universo da cultura negra. A poética camarguiana exige a articulação e a negociação. Bhabha ressalta que: “A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica” (2014, p. 21). Essa negociação se revela nos versos abaixo.

[...]
Mirai-me o rosto de cobre

combusto de sóis e ardumes,
notai-me o passo, eis que aturo
a estreiteza da senda

que vosso mundo traçou.
Vinde, provai do meu pão!
Abancai-vos a esta mesa,
se conheceis quem sou!

Assentai-vos, meus senhores,
provai do meu pão de fel,
repasto useiro em família...
[...]
(Ibid., p.20)

Nesse sentido, os embates de fronteiras acerca da diferença ocorridos entre o negro e o branco, como pode ser observado nos versos do poema, expõem os conflitos culturais (BHABHA, 2014). O homem negro procura realinhar as fronteiras criadas pelos embates das identidades branca e negra. Uma das estratégias para o realinhamento cultural é o reconhecimento da diferença cultural como elemento de representação não do estranho, mas do diferente, do outro e de suas singularidades. A mesa, nos versos do poema, representa o espaço de encontro, mas também de embate e negociação, e, ao mesmo tempo, evidencia a separação das duas identidades culturais, ou seja, entre o negro e o branco.

É nesse instante que surge a possibilidade de representação da diferença e, nesse sentido, da negociação das representações culturais. Todavia, o que se observa é que, no momento dos encontros entre as identidades negra e branca, encenada na metáfora da mesa como espaço de reunião, o branco expressa uma crise de identidade, sobretudo por não conhecer o negro e, por conseguinte, a si mesmo. A crise de identidade pode ser observada pelo desespero revelado no rosto do branco, assim como pela representação das identidades do negro como expressão da diferença. O negro reivindica o reconhecimento das diferenças culturais e sociais, além de denunciar o reducionismo e a estreiteza do branco em não reconhecer o negro como universo cultural plural. Os versos citados abaixo, instigam-nos a nos reconhecer como negro nesse universo de relações conflitantes, afirmando o nosso pertencimento, enquanto negro, visível, desejante e presente em espaços territorializados culturalmente e pela história do negro.

No vosso rosto percebo
enojo ao que vos oferto...
Mas o que é meu tributo
à vossa força e firmeza:

sal e fel e ausência bíblica
de uma “escada de Jacó”!
Senhores, vós não sabeis
quem sou

não, não sabeis quem eu sou!
Mirai-me a face de cobre,
lavrada de sóis e ardumes,
olhai-me o rastro, eis que meço
a estreiteza da senda

que vosso mundo traçou.
Vinde, provai do meu pão!
[...]
(ibid., p. 20)

Segundo Stuart Hall “A identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (2011, p. 9). E ressalta dizendo que, “A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo” (2013, p. 96). E afirma que, “A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada” (2013, p. 96). O crítico vai ainda mais longe chamando a atenção para o fato de que, esta crise de identidade não pode ser vista como expressão de algo singular, mas fazendo parte de um processo mais amplo de mudanças que chega a interferir nas estruturas que ancoravam a identidade do branco, desarticulando todo um sistema de referência. A partir disso, a identidade se torna uma questão, visto que o branco, ao ser solicitado a negociar a identidade como representação da diferença, recusa a identidade negra e expressa aversão e indiferença, ao mesmo tempo, revela o desconhecimento do outro como representação cultural.

Stuart Hall não deixa de ressaltar que “O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade” (2013, p. 97). É com esses recursos que o poema de Oswaldo de Camargo reintroduz o passado no presente, apresentando os embates das relações colonizador e colonizado, assim como, “[...] as dificuldades de resolver os problemas causados pelo colonialismo” (CÉSAIRE, 2010). Camargo reinventa, esses conflitos de fronteiras e desmascara as consequências desses contatos não para o negro, mas também para o branco. que esses embates, na ordem como ocorreram, desfiguraram e ainda persistem em pôr o negro à margem, culminando com a recusa do branco em não reconhecer os valores da cultura do negro. O poema anuncia a noite, sua amiga, que parece representar a angústia do poeta que deseja ser ouvido, reconhecido na sua diferença como negro.

A noite sentada à mesa
é
bem conhecida minha...
A angústia, serve de ancila...

Eu vos convidei, senhores!
Provai, provai do meu pão!
(Ibid. p. 20)

A ambivalência expressada pelos dois universos humano e cultural de negros e brancos não pode ser vista como parte, unicamente, de embates que refletem ressonâncias, mas que institui uma materialização que se revela nos desejos de construção de identidades não contrárias, mas híbridas e complementares. Essa negociação precisa ser vista como parte de um processo mais amplo de mudanças de uma sociedade que demanda o reconhecimento de singularidades culturais fortalecidas pelos encontros e contatos sofridos por esses dois universos chamados de branco e negro.

No poema “Maio”, Oswaldo de Camargo traz à superfície de sua poesia as inquietações sociais que afligem o negro no contexto da sociedade atual, como forma de recomposição dos traços, dos caminhos que formam a história dos negros no Brasil. A história do negro vem à lume como resultado de uma comunidade profundamente alheia aos seus dramas e desesperos. Nesse sentido, Oswaldo de Camargo apresenta uma proposta temática que valoriza o negro, forjando uma memória histórica do povo brasileiro, em particular, a memória da escravização. O poeta, no título, evoca metaforicamente o 13 de maio de 1888, data emblemática para a população negra brasileira. Segundo a História Oficial, esse foi justamente o momento áureo das ações e dos movimentos pró-abolição durante o regime escravista, que gerou, a partir da assinatura da Lei Áurea, a libertação de milhares de homens e mulheres negros. Oswaldo de Camargo não só denuncia a falsa liberdade recebida pelos negros pós-abolição, como também se recusa a continuar aplaudindo essa liberdade que vai à praça fazer festa.

Em maio

Já não há mais razão para chamar as lembranças
e
mostrá-las ao povo
em
maio.
Em maio sopram ventos desatados
por mãos
de mando, turvam o sentido
do que
sonhamos.
Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça,
e
desce às praças das bocas entreabertas
e
começa:
Outrora, nas senzalas, os senhores...”
Mas a
Liberdade que desce à praça
nos meados de
maio,
pedindo
rumores,
é uma senhora esquálida, seca, desvalida
e nada
sabe de nossa vida.
A Liberdade que sei é uma menina sem jeito,
vem
montada no ombro dos moleques
e
se esconde
no peito, em fogo, dos que jamais irão
à
praça.
Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes
e seu
grito: “Ó bendita Liberdade!”
E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do
muito que tem feito!
(CAMARGO, 1984,
p. 51)

As 15 horas do dia 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel sancionou a Lei de Nº 3353, que vem a abolir a escravização em todo o território nacional. A partir disso, essa data passou para a História brasileira como uma conquista segunda a qual se deveria comemorar publicamente a libertação dos negros do julgo da escravização. Festas eram realizadas celebrando a ação não dos negros e suas lutas pela libertação, mas a benevolência da princesa Isabel, a “Redentora”, cuja nobreza de sua piedade pegou da caneta e libertou os milhares de negros do cativeiro. Segundo Moema Parente Augel,

El 13 de mayo de 1888 se abolia formalmente la esclavitud em el Brasil, pero la ley no creaba ningún tipo de condición cultural, social o económica para libertar realmente a la poblacíon negra y mulata de su esclavización (2010, p. 174, 175).

O negro brasileiro, com a sanção dessa Lei, passou a carregar nos ombros uma liberdade aparente, cujas consequências podem ser vistas na falta de políticas públicas de inclusão social, educação, direito à moradia, dentre outros. Antonio Rizério chama a atenção para o fato de que “[...] se a questão central, do século XVI ao XIX, era livrar-se da condição escrava, passou esta questão a ser, do século XX ao XXI, livrar-se da linha de pobreza e da condição proletária” (2007, p. 326). Florentina da Silva Souza ressalta que,

[...] os movimentos negros no Brasil têm-se mobilizado para a realização de rituais de afirmação como celebração de datas, resgate de acontecimentos históricos, releitura e organização de arquivos que contestam a pretendida homogeneidade das histórias registradas e resgatadas pela memória cultural instituída, a promoção de atos públicos de protesto e de denúncia com vistas a interferir na base de construção da memória, na disposição de forças políticas da sociedade e a intervir no desenho da autoimagem do afro-brasileiro (2006, p. 14).

O tom invocativo dos versos do poema expressa a consciência do narrador em problematizar e contestar essa falsa liberdade apregoada pela sociedade brasileira. O protesto vem alimentado pela necessidade de intervir nas bases de sustentação formadas pela hipocrisia, pela mentira defendidas pelas autoridades brasileiras. “Já não há mais razão para chamar as lembranças / e mostrá-las ao povo / em maio. Em maio sopram ventos desatados / por mãos de mando / turvam o sentido / do que sonhamos”. A memória histórica é evocada como proposta de reelaboração das formas de atuação dos negros na luta por suas reconquistas sociais e culturais.

No poema “Maio”, Oswaldo de Camargo não se ausenta de abordar as questões históricas e sociais que afligem o negro, assim como de manter viva a chama das lutas negras. Jacques Le Goff, ao falar sobre a importância do estudo da memória para refletir sobre problemas humanos, afirma que “O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (1996, p. 426). Esse comportamento se evidencia no poema na medida em que o poeta assume a tarefa de rememorar a memória da escravização, a partir de uma perspectiva crítica e reveladora das exigências da sociedade negra brasileira no contexto do século XX e início do XXI.

Os versos do poema de Oswaldo de Camargo exprimem e problematizam as situações não do corpo físico, nos remetendo aos séculos de escravização, mas também nos apresentam os anseios da população negra no contexto das demandas atuais. Os negros se organizam para exigir seus direitos ao emprego, à habitação, ao estudo, à saúde, à igualdade de acesso aos bens produzidos pelo país. Antonio Rizério afirma que uma das múltiplas faces do Movimento Negro Contemporâneo é o desejo pelo fim das discriminações, à redução dos desequilíbrios sociais, à conquista inteira da cidadania. À nossa realização como nação (2007). A luta continua em outra esfera, a da denúncia do racismo, da discriminação e da diminuição do abismo que separa negros e brancos no Brasil.

Os negros, com a libertação, foram jogados à rua. Saíram com a liberdade nas mãos, rumo a vala do desespero. Oswaldo de Camargo denuncia essa falsa liberdade, apontando o descontentamento da população negra pela falta de políticas públicas que possam verdadeiramente incluí-los dentro do que sonharam. “Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando / turvam o sentido do que sonhamos”. Além disso, o poeta recusa as comemorações oficiais realizadas no 13 de maio como data festiva. Segundo os versos do poema, a data não é de comemoração, mas de revelação das condições sociais precárias enfrentadas pela sociedade negra.

Dulce Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares, afirma que uma das propostas da fundação é “a revisão da História oficial do país e a inclusão de personalidades negras que contribuíram de forma incisiva para a formação de nossa sociedade” (THOTH, 1997, p. 278). Nesse sentido, o 13 de maio deve ser, na ótica do narrador quilombola, um momento de luta por direitos civis dos negros e não de comemoração. Para tanto, lança uma sátira contundente à História oficial. Ao se lançar contrário à História brasileira canonizada, o poeta narrador institui um discurso social e político revelador das necessidades e carências da comunidade negra. Esse comportamento termina por expressar um sentimento de solidariedade para com seus irmãos negros. Dessa forma, o escritor se inclui dentro do universo da realidade negra, como porta-voz dos seus irmãos de cor. “Mas a Liberdade que desce à praça / nos meados de maio / pedindo rumores / é uma senhora esquálida, seca, desvalida / e nada sabe de nossa vida”. Conceição Evaristo afirma que a literatura negra vem revertendo as imagens, os papéis e as participações do negro no Brasil.

Reverter os valores, introduzir personagens na história, dar-lhes um espaço/tempo e uma outra movimentação a partir de uma ótica e de uma criação próprias, encontrar seus heróis e construir uma épica negra é uma das constantes que pode ser observada na literatura negra (EVARISTO, 2010, p. 138).

O comportamento da voz quilombola no poema revela uma ligação espiritual e solidária com a condição de apagamento e esquecimento sofridos pelo negro. Nesse sentido, a liberdade exigida pela voz quilombola é uma jovem, que sabe da verdadeira necessidade do negro, porque nascida de dentro da realidade e da experiência negra. “A Liberdade que sei é uma menina sem jeito / vem montada no ombro dos moleques / e se esconde / no peito, em fogo, dos que jamais irão / à praça /. Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes / e seu grito: / “Ó bendita Liberdade!” / E ela sorri e se orgulha, de verdade / do muito que tem feito!”

Em outro poema, intitulado “Que farás?”, Oswaldo de Camargo problematiza o desespero do negro que se encontra cercado, ilhado dentro de uma cidade metaforizada. O narrador se apresenta em primeira pessoa e passa a interrogar o negro, seu irmão e interlocutor, na intenção de revelar para ele o beco sem saída, o cárcere no qual eles foram jogados. O desespero aflige o narrador que tem consciência da ineficácia das atitudes e ações de seu irmão negro. O pessimismo se evidencia através do adjetivo “inútil”, que se repete, expressando a inutilidade, a falta de serventia das ações e estratégias desenvolvidas pelo negro. A metáfora do ilhamento se explicita na cidade, que o cerca a partir dos olhares. O negro emparedado pelo universo cultural que não o representa, assim como pela marca da pele que não o deixa passar despercebido na cidade.

É nesse sentido que a identidade se revela como elemento de resistência a partir de uma representação poética. O livro o Estranho indica muitas posibilidades de leitura, no entanto, todas as pesrpectivas adotadas devem seguir o entendimento de que o negro é o centro do universo identitário, cultural, histórico, artístico e antropológico. Isso se revela como indicador de uma inversão nas formas de represtação dos sujeitos culturais na história brasileira.

Referências

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.

BOSI, Alfredo, O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

BASTIDE, Roger. A poesia afro-brasileira. São Paulo: Martins, 1943.

BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

CAMARGO, Oswaldo de. O Carro do Êxito. São Paulo: Martins, 1972.

CAMARGO, Oswaldo de. A Razão da chama. Antologia de poetas negros brasileiros. São Paulo: GRD, 1986.

CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito: Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira. São Paulo: 1987.

CAMARGO, Oswaldo de. O Estranho. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1984.

CAMARGO, Oswaldo de. A Descoberta do Frio. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013.

CAMARGO, Oswaldo de. OBOÉ. São Paulo: COM-ARTE, 2014.

CAMARGO, Oswaldo de. Raiz de um Negro Brasileiro – Esboço de Autobiográfico. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2015.

CAMARGO, Oswaldo de. Título de Cidadão Paulista – Antologia. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2015.

CUTI, Luís Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo negro, 2010.

Cadernos Negros. Três Décadas, ensaios, poemas, contos. Org. Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2008.

DUARTE, Eduardo de Assis, FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura e Afrodescendência no Brasil; Antologia crítica. Volume 4, História, Teoria, Polêmica; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.

DUARTE, Eduardo de Assis. Oswaldo de Camargo: poesia, ficção, autoficção. In: MACHADO, Rodrigo V. (Org.). Panorama da literatura negra Ibero-Americana. Curitiba: Imprensa UFPR, 2015.

DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Tradução, introdução e notas de Heloisa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005.

DALCASTAGNÈ, Regina. A Personagem Negra na Literatura Brasileira Contemporânea. In: DUARTE, E. A., FONSECA, M. N. S. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia crítica. Organizado por Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, vol. 4, História, Teoria, Polêmica.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado/PUC, 1996.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Maria Adriana da Silva Caldas. Salvador: Fator, 2008.

FERREIRA, Elio de Souza. Poesia negra das Américas: Solano Trindade e Langston Hughes. Recife: Programa de Pós-Graduação da UFPE, 2006.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.

GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes – UCAM, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

IANNI, Octávio. Literatura e Consciência. In: DUARTE, E. A., FONSECA M. N. S. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia crítica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, vol. 4, História, Teoria, Polêmica.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 2. ed. – São Paulo: Ática, 2014.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

_______________________________________

¹ Raimundo Silvino do Carmo Filho é Professor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão –IEMA. Mestre em literatura, memória e cultura.

² Élio Ferreira de Souza é Professor titular do Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. É autor, entre outros, de O contra-lei & outros poemas (1997), América Negra & outros poemas afro-brasileiros (2014) e Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes (2017).

 

Texto para download