A literatura infantil e a representatividade feminina negra

 

Cristiane Veloso de Araújo Pestana*

Karla Cristina Eiterer Rocha**

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar narrativas infantis que levem as crianças a grandes descobertas. As escolhas das obras se deram por ensinarem valores e terem como objetivo apresentar às crianças leituras que irão trabalhar conceitos relativos à autoestima e representação. O livro Luana: as sementes de Zumbi, dos autores Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino, traz uma menina como uma heroína negra.  E o livro Os tesouros de Monifa, da autora Sonia Rosa, narra a história de uma menina fascinada com as histórias e ensinamentos de sua tataravó africana.

Palavras-chave: Literatura infantil. Representação. Resgate histórico. Identidade.

Abstract: This paper aims to present children's narratives that lead children to great discoveries. The choices of the works were given by teaching values and aiming to present to children, readings that will work concepts related to self-esteem and representation.The book Luana: the seeds of Zumbi of the authors Aroldo Macedo and Oswaldo Faustino bring a girl like a black heroine. And the book The Treasures of Monifa by author Sonia Rosa tells the story of a girl fascinated with the stories and teachings of her African great-great-grandfather.

Keywords: Children's literature. Representation. Historical rescue. Identity.

Introdução

O nosso trabalho objetiva apresentar duas narrativas infantis que, segundo nossas pesquisas, levam as crianças a grandes descobertas. Escolhemos essas obras por ensinarem valores, apresentar culturas e terem como objetivo apresentar às crianças leituras que irão fomentar autoestima e representação. O livro Luana: as sementes de Zumbi, dos autores Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino, traz uma menina como heroína negra.  E o livro Os tesouros de Monifa, da autora Sonia Rosa, narra a história de uma menina fascinada com a vida e ensinamentos de sua tataravó africana. Essas narrativas visam à revisão dos papéis desempenhados pelos afrodescendentes de acordo com o discurso hegemônico e retratam as questões de identidade e gênero. Os autores em suas produções deixam claro um engajamento, na perspectiva de um resgate histórico, a fim de que possam ser apresentadas novas possibilidades de leitura e interpretação da História e da cultura deste povo.

Notamos que é de grande relevância trazer para os ambientes acadêmicos textos que produzam reflexões como essa entre a História e a Literatura, pois como nos alerta Bernd (1988), cumpre reivindicar o espaço ainda não conquistado na sociedade para autores que estão à margem. Ao nos debruçarmos sobre o tema, notamos que é importante conscientizar, mostrar a necessidade de tornar audíveis tais vozes silenciadas por tanto tempo e de fortalecer o discurso que reafirma a importância do negro para a formação histórica do nosso país.

Diante do esquecimento do passado histórico, dessa experiência traumática para as vítimas do colonialismo, desse fato violento que foi a escravidão, nasceu um espírito de resistência que luta contra o apagamento das memórias e das subjetividades de pessoas que foram escravizadas. É através do resgate da memória, da busca dos ancestrais, da importância que se dá a identidade que o povo afrodescendente pode apresentar a importância e as belezas que perpassam a sua cultura.

Por isso, tais escolhas literárias se fizeram urgentes, pois irão demostrar que existem literaturas infantis que trabalham com temas que refletem sobre a condição de invisibilidade do afrodescendente e apontam para uma visibilidade necessária, nas quais crianças percebam-se representadas e, para além disso, honradas de pertencerem a uma cultura tão extraordinária.

A literatura infantil no combate ao racismo

A população brasileira descende de vários povos e culturas, porém, sua maior herança inegavelmente é aquela referente ao povo africano escravizado. Primeiramente por ter sido essa população a de maior concentração de pessoas na história da fundação do Brasil e, também, por ser a África o berço de todas as civilizações. No entanto, o processo de colonização colocou este povo em situação degradante e coibiu, de todas as formas, quaisquer tipos de manifestações culturais. O povo negro é fruto de um processo diaspórico violento e desumano, sendo, na maioria das vezes, tratados de forma desrespeitosa e preconceituosa até os dias de hoje.

Para tentar amenizar os processos de exclusão e invisibilidade da população negra, foi criada a Lei 10.639/03, a qual promoveu alterações significativas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), no sentido de ampliar o aprendizado de História e Cultura Afro-Brasileira. Desta forma, os currículos das escolas foram reformulados, as editoras tiveram de fazer adaptações e revisões em seus materiais didáticos, cursos de formação foram oferecidos e, assim, as editoras de livros paradidáticos também tiveram de se adequar às necessidades do mercado.

Nesta perspectiva, vários autores viram a importância de se inserir neste novo ramo da literatura, a literatura com temas afrodescendentes. Alguns por imposição de suas editoras, outros visando a um mercado novo e com possibilidades. Porém, o que se viu foi uma enxurrada de livros com temática negra, voltados para o público infantil, sem nenhum critério ou preocupação com a edição, sobretudo a partir das ilustrações.

O racismo impera na sociedade brasileira de forma latente e insistente, antes velado e, atualmente, revelado sem nenhum pudor por muitos indivíduos. As marcas desta sociedade racista e preconceituosa podem ser observadas de várias formas na Literatura, inclusive na Literatura Infantil. São traços estereotipados que vão desde o texto literário até as ilustrações das histórias.

Acreditamos que os livros nesta linha temática devam ser criteriosamente pensados, produzidos e selecionados. De acordo com os estudos de Ruth Barreiros, “Formar leitores por meio dessa modalidade de arte, cuja temática está voltada para afro-brasilidade, pode propiciar uma renovação de valores no que se refere ao respeito à diversidade em uma sociedade pluriétnica” (BARREIROS, 2011, p. 334).

As histórias aqui abordadas estão na contramão destas práticas racistas, ressaltam a beleza da cultura africana, reforçam a importância da ancestralidade para a população negra brasileira e auxiliam na construção identitária de crianças negras, fazendo com que elas se tornem sujeitos capazes de conseguir driblar toda uma história de injustiça e discriminação.

Dentro do contexto literário brasileiro, a população negra era narrada sob o olhar do outro, um olhar muitas vezes deturpado e agressivo. Os personagens eram meramente ilustrativos e objetos de exotização e sexualidade exacerbada. Na proposta da Literatura afro-brasileira, os personagens se tornam protagonistas, assumem a fala sobre si mesmos e retratam sua cultura com mais propriedade e dignidade.

A ausência do protagonismo negro na Literatura é fruto de inúmeras pesquisas, dentre elas destacamos os apontamentos do ensaísta Cuti (2010) que corroboram com a justificativa da existência de uma vertente negra da Literatura brasileira. Segundo o autor, quando as questões sobre a presença do negro são observadas na literatura, encontramos, em sua maioria, textos escritos por pessoas brancas, as quais descrevem as negras de forma caricaturadas. As descrições perpassam por aproximação com objetos e animais. A maioria das personagens são apresentadas como aquelas que não têm histórias, não têm família e não há uma explicação a respeito das suas origens. São textos que agridem a humanidade do negro e essa agressão se sustenta a partir de falácias advindas do racismo.

O protagonismo e a representação positiva de personagens negras, sobretudo para as crianças negras, é de total relevância, tendo em vista que o período da infância é cunhado de descobertas e significações que serão a base para a constituição destas enquanto indivíduos. A criança é plenamente capaz de promover identificação com histórias e personagens e fazer inferências que serão essenciais na construção de sua identidade negro-brasileira. Para a educadora e pesquisadora Eliane Cavalleiro “compreende-se que o reconhecimento positivo das diferenças étnicas deve ser proporcionado desde os primeiros anos de vida” (2006, p.26).

De acordo com a doutora em educação Eliane Debus, a literatura pode contribuir para reflexões que rompam com a visão construída através da desigualdade étnica, repensando a respeito de uma visão que contemple a valorização da diversidade. Assim, podemos observar que quando as crianças negras leem narrativas que são mais próximas da sua realidade, logo se identificam com as personagens, pois vivem as mesmas problemáticas e isso traz reflexões para elas, mesmo ainda crianças são capazes de pensar sobre o seu lugar social e fortalecer a sua identidade étnica.

Temos buscado, atualmente, inserir nas várias áreas da educação o trabalho com a identidade positiva das crianças negras, com a intenção de mudar esse cenário que sempre foi aliado à escravidão, à discriminação e à pobreza. Precisamos construir um cidadão que tenha consciência da sua identidade, da sua história, da sua ancestralidade, para que, com isso, a sua autoestima seja desenvolvida e no futuro essas crianças busquem seus lugares dentro da sociedade, ressignifiquem os valores que foram atribuídos a eles, sejam agentes dessa mudança mostrando a todos que o que importa são os múltiplos saberes e que não devemos preterir, excluir ou diminuir qualquer tipo de cultura.

A literatura infantil que retrata temáticas africanas preocupa-se com o resgate do passado para transformar o futuro e mantém um diálogo constante com a crítica que busca novas formar de ver e de ler, atentando-se sempre para a desconstrução de estereótipos, o combate ao racismo e para a destruição dos muros que foram construídos entre as culturas e a humanidade.

A identidade, a cultura e a ancestralidade na literatura infantil

Dentro da Literatura Negra infantil encontramos narrativas que trazem negros e negras em contexto diaspórico, ou seja, ambientada em um território que foi colonizado, onde vivem descendentes de africanos que foram arrancados brutalmente de sua Terra e feitos escravos em um lugar completamente desconhecido. Outras narrativas, numa perspectiva de se fazer conhecer esse continente-mãe de todas as nações, apresentam personagens negros em solo africano. São muitas as histórias infantis situadas na África, a maioria delas escritas por autores franceses, africanos e americanos e traduzidas para o português. Algumas são transcrições de contos da oralidade, outras trazem ensinamentos típicos da tradição africana.

Retomar a África como pano de fundo das histórias infantis promove o desvelar de uma cultura ancestral que foi uma das fundadoras da cultura brasileira. É importante resgatar as raízes da população negra, pois é através dela que esta população promove as ligações necessárias para o autoconhecimento e para a autoestima.

Porém, é necessário que essa memória ancestral seja ressignificada no tempo e no espaço, pois vivemos uma contemporaneidade permeada de diversas outras culturas. Somos entrelaçados de várias identidades possíveis e, portanto, a reivindicação de uma identidade única não se sustenta mais. Trazendo para o contexto brasileiro, podemos nos recorrer às ideias de Stuart Hall, que afirma não existir uma única identidade, mas sim várias, que se confundem e se complementam, e, o mais importante, que estão sempre em movimento de transformação, “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2004, p.45).

Paul Gilroy, em seu livro O Atlântico Negro, alerta para o engodo de um particularismo étnico, sem com isso negar a importância do reconhecimento da raça na construção social e cultural e na luta por igualdade. Ele afirma que o absolutismo étnico traz “perigos adicionais porque desconsidera o desenvolvimento e a mudança das ideologias políticas negras e ignora as qualidades inquietas e recombinantes das culturas políticas afirmativas do Atlântico Negro” (GILROY, 2012 p.85). Isto caracteriza ser impossível a relação com apenas um suporte identitário, no caso a África. As relações identitárias são ressignificadas no contato com novas culturas.

O conceito de espaço é em si mesmo transformado quando ele é encarado em termos de um circuito comunicativo que capacitou as populações dispersas a conversar, interagir e mais recentemente até a sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais. (GILROY, 2012, p.20 e 21)

Para Hall (2003, p.36), “a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compreensões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o “lugar”. Segundo o teórico, as culturas possuem sim um local, porém já não é possível mais dizer onde elas se originaram. Tal afirmação endossa a tese que Eduardo Assis Duarte chama de “hibridismo cultural”. Para Duarte, essa ideia rompe com as bases do “nacionalismo” e seus derivados, mesmo sendo esta uma ideia utópica, não deixa de ter um caráter político. Segundo Duarte, estamos “num mundo em que tudo se mistura e se reprocessa” (2005, p.101).

Dentre as narrativas literárias infantis da contemporaneidade que abordam o tema, optamos por apresentar dois textos que foram muito bem construídos, pensando no resgate da cultura africana, na História, na identidade e nas questões de gênero: o livro Os tesouros de Monifa, da autora Sonia Rosa, e o livro Luana: as sementes de Zumbi, dos autores Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino. Foi partindo do viés do entrelaçamento ou do hibridismo cultural que selecionamos o livro Os tesouros de Monifa. O referido livro aborda a herança africana e as tradições mantidas pelos negros da diáspora em território brasileiro, sob o respaldo de uma cultura já em relação com outras (levando em consideração aqui o conceito de identidade relação de Édouard Glissant).

Quando o passado se torna seu presente: uma análise de Os tesouros de Monifa

A escritora Sonia Rosa nos brinda com mais uma preciosidade do mundo literário infantil. Os tesouros de Monifa conta a história de uma menina negra descendente de africanos. Sua tataravó, Monifa, veio da África num navio negreiro e perdeu todos os seus parentes e amigos durante a travessia do Atlântico. No Brasil, Monifa foi feita escrava e sofreu muito com a solidão e as crueldades de sua condição. O local exato de origem de Monifa não é contato no texto, apenas é revelado que, em sua Terra, seu nome significa "eu tenho sorte”. A menina, personagem principal e narradora da história, não possui um nome, mas isso não minimiza sua relevância na narrativa.

A menina segue contando a história de sua ancestral, dizendo que ela acumulou durante toda sua vida um tesouro muito especial que foi sendo passado de geração em geração, e que este tesouro agora estava guardado em sua casa dentro de uma caixa. O tesouro eram os diários escritos com muito esforço por sua tataravó africana. Nas palavras da narradora, Monifa foi esperta, pois “soube juntar e recolher pedaços de seu tempo para que a gente de hoje pudesse espiar um pouquinho do ontem... O encontro do passado com o presente tem embalado esse tesouro valioso da minha família.” (ROSA, 2009, p.10)

A neta de Monifa já conhecia muitas das histórias contatas através de sua mãe e de sua avó e afirma que, através delas, consegue se transportar para o além-mar e o além-tempo. Como era aniversário da menina, de acordo com a tradição familiar ela receberia de presente a caixa contendo os diários de sua tataravó, segundo ela a melhor notícia que recebera em sua vida. O texto não precisa a idade da personagem, mas subentende-se que ela estaria entrando na adolescência.  Ao receber a caixa, a emoção toma conta da menina, de sua mãe e sua avó. A narração é muito detalhista e cuidadosa para descrever este momento tão importante que é o ápice da história.

Quando vi a enorme caixa na cama de minha mãe, fiquei impressionada! Nunca tinha visto uma coisa assim tão antiga. Com cuidado, toquei na caixa e comecei a fazer carinho nela... Ao mesmo tempo, comecei a pensar que, há muito, muito tempo, as mãos da minha tataravó africana pegaram naquela caixa, e os seus dedos, cansados de trabalhar em hora, escreveram aqueles tesouros... (ROSA, 2009, p.14)

De repente foi me dando um aperto no coração... Joguei os braços por cima da caixa e a enlacei como num abraço. Era como se naquele momento eu abraçasse a minha tataravozinha e toda a sua gente... (ROSA, 2009, p.17)

Antes de abrir a caixa, a mãe lhe entregou uma carta. Era uma carta escrita por Monifa, destinada a seus filhos e filhos de seus filhos. Na carta, a ancestral africana conta que foi difícil a vida num lugar estranho, com uma língua estranha e como seu povo sofreu com o processo da escravidão. Ela pede que seus descendentes nunca se esqueçam da luta do seu povo de origem, que valorizem suas raízes e que eles nunca percam seus sonhos e a esperança de um mundo melhor para todos, independentemente de cor ou raça. Monifa deixa uma mensagem que nos remete ao conceito de identidades relacionais e que vislumbra todas as pessoas vivendo em harmonia.

Entre os trechos mais marcantes da carta, destacamos o seguinte: “Estar em contato com minhas raízes me fortalece e é também uma maneira de não me perder da minha história, isto é, não me perder de mim mesma”. Aqui podemos observar claramente a necessidade do povo negro, sobretudo dos africanos escravizados, de se manterem próximos de suas raízes como uma forma de não perder a identidade, de consolar as dores e de manter viva uma outra vida que morreu dentro dos porões dos navios negreiros.

Outro trecho bem significativo é o que fala da importância de se alfabetizar, de aprender a escrever e colocar no papel todo o sentimento aprisionado em suas almas. Na carta, Monifa fala como e onde aprendeu a escrever e diz que espera que seus descendentes também aprendam a ler e escrever. Para ela, a escrita é algo que cura, que salva da loucura e que deixa sementes para o futuro. “Escrever é uma maneira de se anunciar ao mundo e de se sentir mais gente. É também uma forma de não enlouquecer, de suportar... Por isso, esses escritos para mim valem mais do que ouro. Eles valem toda uma vida. Valem a minha vida!”. É impossível não nos recordamos de Carolina Maria de Jesus e seus diários. Carolina também queria usar sua escrita para se anunciar ao mundo, mas, sobretudo, escrever era uma forma de desabafo, de se manter viva e lúcida ante os desafios da vida.

Ao final da carta, Monifa se despede e deixa uma mensagem de esperança e amor não só a seus familiares, mas também para todo o mundo.

Desejo que as minhas esperanças renovem as de vocês e que os meus sonhos se multipliquem junto aos seus... Desejo também que o amanhecer de cada dia seja uma possibilidade de um dia melhor para todas as pessoas que vivem neste mundo! Torço pela Paz e pelo Respeito entre os homens de todas as cores. Que os deuses os abençoem sempre!!! Monifa. (ROSA, 2009, p.20-21)

Após ler a carta, a menina abriu a caixa e foi se deliciando com tudo o que havia nela. Tinham muitos versinhos anotados e ela chegou à conclusão que sua tataravó era uma poetisa, e lamenta não a ter conhecido. Ela diz que se pudesse, gostaria de enchê-la de beijos e se aninhar em colo.

De repente chegam sua mãe e sua avó, Abgail (só a avó e a tataravó são nomeadas na história), para prepararem o cabelo da menina para o aniversário. Elas iriam fazer tranças e enfeitar com elásticos coloridos (em As tranças, de Bintou, entendemos melhor os significados das tranças para as meninas negras). Enquanto tinha o seu cabelo cuidadosamente arrumado, a menina pensava na honra que era ser a guardiã daquele tesouro e afirma ter feito uma descoberta: “Descobri que aquele tesouro não era só da minha família, era de todo o nosso povo, porque minha tataravó africana é um pouquinho avó de todos os brasileiros” (ROSA, 2009, p.29). Aqui, claramente, o texto faz uma referência da África como origem do povo brasileiro. A avó da menina é uma simbologia das heranças de matriz africana que geraram e conduziram a cultura brasileira até os dias de hoje.

A heroína do Quilombo: uma leitura de Luana: as sementes de Zumbi

Para dialogar com Os tesouros de Monifa, escolhemos Luana: as sementes de Zumbi, livro escrito por Aroldo Macedo e com ilustrações de Oswaldo Faustino. Ambos os textos trabalham com o tema da representatividade negra e trazem meninas negras como protagonistas das narrativas, além do resgate histórico e novas interpretações sobre o referido tema. O livro Luana: as sementes de Zumbi faz parte de um projeto que é uma referência no ensino e difusão da cultura negra para crianças, pois os autores acreditam no processo de construção da personalidade humana através das referências positivas. A menina Luana pode viajar no tempo, pois possuí um berimbau encantado que pode levá-la onde desejar ir. E numa das suas viagens, ela vai ao Quilombo dos Palmares. Lá, conhece um pouco da história e da vida cotidiana do Quilombo: uma história de luta e resistência de todos os seus irmãos. Passa a conhecer também um pouco sobre o herói e líder Zumbi, seus ascendentes e descendentes.

A narrativa tem início quando Luana acorda com o som dos tambores que dizem: vem, Luana, esperança de Palmares! Esperança das sementes de Zumbi! Ela sente medo, mas lembra-se de que o medo só vai servir para alimentar medos maiores, e isso não poderia atrapalhar a missão que tinha de cumprir. “De repente, reacende a coragem de Luana, menina-malungo... Ela solta da cama, ela faz uma estrela e a sola de seu pezinho bate na parede, bem na principal cabeça do pavoroso fantasma” (FAUSTINO, 2007, p.8).

Ela precisava ir... ao tocar o seu berimbau mágico, o som toma conta de tudo. Ela fecha os olhos e, quando os abre novamente, já está avistando a serra da Barriga. Seu berimbau encantado levou-a ao Quilombo dos Palmares. Lá, conhece um pouco da história e da vida cotidiana do Quilombo: uma história de luta e resistência. Passa a conhecer, também, um pouco sobre o herói e líder Zumbi, seus ascendentes e descendentes.

Zumbi já esperava por ela. Luana o avista no topo do morro, em frente ao maior mocambo: forte e imponente. Ele se aproxima dela e a entrega um saquinho cheio de sementes. Então Luana ouve atenta e encantada a história sobre Zumbi e seus companheiros. O rei explica o porquê dela ter sido chamada ali e a razão de ter lhe entregado o saquinho de couro.

Sorrindo, Zumbi se aproxima dela e lhe estende um saquinho de couro, bem molinho. Luana o chacoalha e percebe que lá dentro tem um monte de grãozinhos. Abre, olha e percebe que são sementes, centenas, milhares de sementes. (FAUSTINO, 2007, p.26).

A menina Luana conhece a esposa de Zumbi: Dandara e seus filhos. Ouve muitas histórias em torno de uma fogueira à noite. Contavam sobre a grandeza de Palmares e as batalhas que foram vencidas por conta da união entre o exército palmarino. Zumbi dizia que o que era deles não poderia ser tirado e que eram donos de sua liberdade e lutariam por ela, pois enquanto houvesse um único escravo, haveria luta, pois só assim se sentiriam verdadeiramente livres.

Zumbi mostra a Luana uma gruta e diz que lá está o verdadeiro tesouro de Palmares e que ela era sua esperança. O rei dá um beijinho em seu rosto, a coloca num túnel que segue para essa gruta, certo de que ela cuidará do tesouro. Uma gritaria danada vinha daquele lugar e Zumbi disse a Luana: “(...) sua missão, esperança de Palmares, é fazer com que esse tesouro jamais se perca... (...)” (FAUSTINO, 2007, p.53).

Luana não entendia muito o que significava tudo aquilo. O clima era de festa! Zumbi lutava bravamente com seus guerreiros, mas, na gruta, tudo que se ouvia era o som dos tambores e o berimbau de Luana. Um zunido tomava conta de tudo.

(...) tumdundum bac tundum... Derendém...derendém...derendém, derendém...derendém.. Os sons se misturam e quase ninguém percebe quando, em meio ao derendém...derendém, ouve-se TOIMMMMM!...Um zunido toma conta de tudo e todos começam a girar enlouquecidamente (...). (FAUSTINO, 2007, p.38)

Desta vez, em um giro muito longo, ela abre o saquinho de sementes que está amarrado em sua cintura.  As sementes começam a se espalhar e, assim, as crianças são jogadas ao longe, todas sorrindo e dando adeus. Muito depois, uma a uma vai reaparecendo num ponto desse nosso Brasil. Luana acorda em seu quarto, atordoada, após o longo giro. Foram muitas emoções nessa viagem. Olha para o boneco que está em sua cama e se lembra de alguém que conhecera lá na sua aventura. É um boneco da capoeira, presente dado pela avó e que se parecia com o amigo Bedengui, que conheceu no quilombo. “Luana dorme feliz, abraçadinha com Bendengui. E, mesmo dormindo, sorri, pois tem a certeza de que o seu berimbau mágico ainda vai levá-la a muitas outras viagens pela história de seu povo” (FAUSTINO, 2007, p.43).

Com isso, concluímos que as "sementes" deixadas por Zumbi e outros guerreiros são tesouros que fortalecem as lutas pelos direitos da população negra e pela liberdade de fato. E que Luana foi responsável por essa missão super importante, tornando-se, em cada episódio, uma menina mais corajosa e sábia. Ela é um ótimo modelo de representação para outras meninas negras, pois, sem ela, as sementes de Zumbi não teriam sido deixadas em nossa terra.

Considerações finais

Em ambos os textos, observamos a força e a importância feminina, seja na cultura africana ou na afro-brasileira. As mulheres exercem uma função de fio condutor de toda a sabedoria e são detentoras de um poder transformador, incomum. As personagens aqui apresentadas, mesmo que ainda muito jovens, têm consciência do mundo em que vivem, de sua importância na vida e aprendem a trilhar seus caminhos com coragem e sabedoria. No livro O tesouro de Monifa, a escrita deixada pela tataravó são as sementes que poderiam ser plantadas em cada um que as lesse: seus filhos e netos, a fim de fortalecê-los em suas lutas e encaminhá-los até que alcancem os seus sonhos. Já no livro Luana: as sementes de Zumbi, a protagonista Luana é a responsável por garantir que as sementes de Zumbi se espalhem por cada cantinho do Brasil.

Percebemos, com a nossa pesquisa, o quanto é importante o processo de constituição do ser como indivíduo crítico, pois as primeiras noções de identidade e o aspecto da afetividade são desenvolvidos, primordialmente pelas matriarcas. Na tradição africana, principalmente, a mulher é fonte de toda a vida.

No Brasil de hoje, observamos cada vez mais as mulheres sendo chefes de família e criando seus filhos sozinhas. Muitas avós assumindo o papel das mães e encaminhando seus netos da melhor forma que podem. A lição que fica, ao final das leituras, é que, independentemente do caminho percorrido, ao final o que se busca é a felicidade e o contentamento consigo mesma, ser quem você precisa ser. 

Que todos nós saibamos encontrar os tesouros escondidos pelas caixas da nossa história e, a partir daí, possamos deixar muitas sementes boas, espalhá-las por todo lugar e exibir com orgulho a nossa cultura, a nossa ancestralidade e a nossa identidade.

Referências

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* Cristiane Veloso de Araujo Pestana é Professora da rede pública de ensino de Juiz de Fora-MG, Especialista em Literatura e Cultura Afro-brasileira, Mestra e Doutoranda em Letras, Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu projeto de Doutorado, pesquisa a representação das personagens negras na Literatura Infantil brasileira. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

** Karla Cristina Eiterer Rocha é Professora da Rede Municipal de Ensino de Juiz de Fora-MG, Mestra em Letras e Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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