Não existe lápis cor de pele! 

A construção da identidade negra na literatura infantil

 

Cristiane Veloso de Araujo Pestana*

Resumo: O referente artigo discute a construção identitária de crianças negras com o recurso da literatura infantil. Para este fim foram selecionados dois livros que apresentam personagens negras em situações de confronto étnico e identitário a partir da cor da pele. Através de tais narrativas os pequenos leitores são levados a refletir sobre suas próprias identidades e a desenvolver estratégias de enfrentamento ao racismo.

Palavras-chave: Literatura infantil. Identidade. Racismo. Personagens negras.

Abstract: This article discusses the identity construction of black children using children´s literature. Therefore two books were selected that feature black characters in situations of ethnic and identity confrontation based on their skin color. Through such narratives, small readers are led to reflect on their own identities and to develop strategies to fight racism.

Keywords: Children´s literature. Identity. Racism. Black characters.

Introdução

Um dos maiores desafios da contemporaneidade é despertar nas crianças negras uma identidade racial positiva, sobretudo numa sociedade onde o racismo estrutural permeia os comportamentos, os discursos e o imaginário da população. Felizmente, nos últimos anos temos acompanhado um movimento forte e contínuo de promoção dessa representatividade, seja através de mais espaços na mídia, mais visibilidade nos mercados da beleza, de uma politização das famílias mas, sobretudo, através da variedade de livros de literatura infantil com temática étnico racial.

Acreditamos que uma identidade racial positiva é construída a partir do conhecimento de sua história e sua ancestralidade, e também, a partir do momento em que as crianças adquirem condições para enfrentar o preconceito por meio da aceitação e do empoderamento. E a literatura tem se mostrado um meio favorável para contemplar essa demanda, pois através da sua ludicidade e a possibilidade de interação com as representações, as crianças leitoras ampliam sua capacidade de entendimento e construção do mundo.

Porém, mais do que fornecer suporte ao público que sofre o racismo, ou seja, as crianças negras, é essencial trabalhar tais questões com a população que, em tese, comete o racismo, as crianças não negras. Como defendido por autoras como Nilma Lino Gomes, Eliane Debus, entre outras, a literatura pode ser uma forte aliada nesta batalha que visa promover identidade e respeito entre nossas crianças.

Nesta perspectiva, este estudo analisa as obras Cor de Pele de Elisabete da Cruz e Lápis cor de pele de Sueli Ferreira, cujas temáticas centrais são a reflexão racial e identitária das crianças negras, a promoção da autoestima e a valorização da diferença. 

Levando em consideração nossas experiências em sala de aula, podemos perceber os impactos do “branqueamento” em nossa sociedade, em que o negro se torna invisibilizado e/ou estigmatizado, inclusive nos livros de literatura infantil.  Esta questão do lápis cor de pele, que na verdade é um lápis rosa claro, permeia várias salas de aula em todo o país. O uso do lápis rosa como sendo o mais indicado para colorir a pele das pessoas está no imaginário coletivo adulto e acaba influenciando o imaginário infantil também, pois nenhuma criança inventou isso, com certeza é algo que lhes foi ensinado por um adulto. 

Além de ser um tema relevante e urgente, a promoção da identidade e o combate ao racismo é dever de todo educador, que pode utilizar o poder lúdico e transformador da Literatura Infantil como aliado nesta tarefa.

Pensando o racismo

O racismo até bem pouco tempo era um tabu, algo que ninguém queria discutir, ou melhor, algo que muitos acreditavam não existir na sociedade brasileira. De um certo modo ainda percebemos numa boa parcela da população uma resistência e reconhecer seus privilégios e aceitar que o racismo está impregnado em nossa construção humana, talvez movidos por uma onda de “orgulho nacional” que fornece aos brasileiros um status de povo civilizado, assim como afirma o pesquisador Antônio Sérgio Guimarães (2009). De fato, o Brasil sempre defendeu o Mito da democracia racial como realidade fundadora e mantenedora de nossa população, porém o que se viu ao longo dos anos, e ainda hoje pode ser facilmente detectado é o oposto disso, uma sociedade que pratica o racismo de forma tão natural que não o percebe, ao mesmo tempo que, tomados por um sentimento de poder e superioridade têm total consciência de suas atitudes.

Para Silvio Almeida, a democracia racial é uma ideologia que se instalou de forma profunda no imaginário social brasileiro de tal modo que se tornou um elemento central da identidade brasileira, no entanto o autor alerta para o fato de que “trata-se de um esquema muito mais complexo, que envolve a reorganização de estratégias de dominação política, econômica e racial adaptadas a circunstâncias históricas específicas.” (ALMEIDA, 2019, p.110)

De acordo com Guimarães (2009) a nação brasileira foi formada por um entrelaçamento étnico e racial cuja origem foi esquecida, para o autor, “a nação permitiu que uma penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis” (2009, p.48), fazendo com que a “cor” passasse a ser uma marca dessa origem. Em outras palavras, o indivíduo negro é a prova do que se tenta esconder. Portanto, é a partir de condutas que visam esconder ou apagar as referências culturais e físicas da população negra, que surge uma espécie de exaltação à mestiçagem. O sujeito de pele mais clara e traços menos negroides é mais aceito na sociedade e, por muitas vezes considerados mais belos, sobretudo nas representações imagéticas da literatura.

O indivíduo “crioulo” ou “mulato”, o que conhecemos comumente por “moreno” ou “pardo” é uma forma de atenuante do processo colonizador, pois carrega em sua biologia uma parte genética branca, ou seja, este indivíduo é, em parte, branco. Se levarmos em conta o processo de branqueamento da população negra, o moreno é considerado cada vez mais próximo da branquitude do que da negritude, porém isso revela um ponto de vista politicamente bem definido de apagamento da cultura negra, fato que se observa, inegavelmente, como uma prática racista. Atualmente enfrentamos em nossa sociedade um processo similar chamado de colorismo, em que os negros retintos, ou seja, os de pele mais escura, sofrem o racismo de forma mais enfática que os negros de pele mais clara.

Tal fato nos remete a uma outra corrente teórica, se é que podemos chama-la assim, que é a Passabilidade. De acordo com os defensores desta ideia, os negros de pele mais clara passam mais despercebidos na sociedade do que os negros de pele escura. Em certo ponto, podemos dizer que, podem até se passar por brancos dependendo de como manipulam aspectos físicos como cabelo e nariz. Hoje é possível mudar a aparência física com recursos pouco invasivos como alisamento capilar e maquiagem para afinar lábios e nariz.

Para entendermos melhor o racismo e como ele se apresenta na sociedade, trouxemos uma explicação bem didática e sintética advinda do pensamento da educadora e pesquisadora Nilma Lino Gomes:

O racismo constitui-se um sistema de dominação e opressão estrutural pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos, baseada na crença da superioridade e inferioridade racial. No Brasil ele opera com a ideologia de raça biológica, travestida no mito da democracia racial [...] A ideologia da raça biológica encontra nos sinais diacríticos “cor da pele”, “tipos de cabelo”, “formato do nariz”, “formato do corpo” o seu argumento central para inferiorizar os negros, transformando-os (sobretudo a cor da pele) nos principais ícones classificatórios dos negros e brancos no Brasil. (GOMES, 2017, p.98)

Partindo da ideia de que o racismo está indiscutivelmente ligado a aspectos fenotípicos como tipo de cabelo e cor da pele, podemos concluir que a tentativa de mascarar, esconder ou embranquecer qualquer sinal de pertença da negritude é sim uma prática racista. Prática esta encontrada de forma sutil em várias condutas e discursos escolares, uma delas é recorrência em determinar que a cor ideal para colorir as figuras humanas, ou melhor, o lápis mais adequado é um lápis rosa claro, comumente chamado por todos no espaço escolar de lápis cor de pele. Não é possível demarcar o momento exato ou a razão que levou o senso comum a denominar o lápis rosa claro como lápis cor de pele, o fato é que agora não podemos continuar naturalizando um costume que, de forma alguma, é natural.

As cores do lápis cor de pele

Quando iniciamos nossa prática docente, por volta do ano de 2003, ainda era possível verificar a existência do lápis bege, como sendo o mais utilizado para colorir as figuras humanas, mesmo já havendo nas caixas o lápis rosa claro (fig.1). Como só havia esta opção de cor de rosa nas caixinhas, geralmente eles eram utilizados pelas crianças somente para colorir objetos que fossem da cor rosa, ficando para as peles o uso mais comum do lápis bege, aquele da história Flicts.

No entanto, nos últimos anos o tal lápis bege vem sumindo das caixas de lápis de cor. Hoje é raro encontrar um caixinha com esta opção. Enquanto isso, o lápis rosa se multiplicou, agora existem duas tonalidades de rosa nas caixas (fig.2), o rosa claro (chamado de cor de pele) e um rosa mais escuro (rosa pink). Outros materiais trazem a cor roxa como segunda opção ao rosa escuro (fig.3). Algumas outras marcas mais conhecidas no mercado, substituíram o lápis bege pelo branco ou pelo cinza.

E a gente se pergunta: como isso aconteceu sem que nos déssemos conta? E mais ainda, porque o lápis rosa claro se tornou o protagonista na hora de colorir a pele humana? Uma resposta possível seria o reflexo do racismo. Esse racismo estrutural que teima em segregar e excluir as pessoas negras da sociedade, que não enxerga a beleza da ancestralidade africana e que teima em seguir um padrão eurocêntrico de beleza que considera apenas o colonizador.

Figura 1:

Caixa de lápis de cor com o bege

            

Figura 2: Caixa de lápis de cor sem o bege

Fonte: Imagens do Google

Figura 3: Caixa de lápis de cor sem bege e com roxo

Fonte: Imagem do Google

Uniafro (Programa de Ações Afirmativas para a População Negra) em parceria com uma marca brasileira de produtos de arte, desenvolveu uma caixa de giz de cera com 12 cores da pele (fig.4), com isso a paleta se ampliou ficando mais próxima da realidade brasileira. No rastro desta iniciativa outras marcas começaram a inserir novas opções de lápis de cor que fogem do rosa, geralmente com tons de marrom (fig.5). Inclusive criaram uma caixa de cores específicas para os variados tons de pele brasileira (fig.6).

 

Figura 4: giz de cera do Uniafro

         

Figura 5: Caixas especiais com cores extras

Fonte: Arquivo pessoal e Imagem do Google                                 

                                                

Fonte: Imagem do Google

Figura 6: caixa exclusiva para tons de pele

Fonte: Arquivo pessoal           

O racismo pode ser tão dissimulado e ao mesmo tempo tão cruel. Imaginemos o que esse “simples” detalhe pode acarretar na construção identitária de uma criança. O que um lápis de colorir pode provocar de bom ou ruim na forma como uma criança se vê e é vista por seus colegas? Podemos ter alguma ideia ao recorrermos às narrativas infantis que envolvem este fato.

Lápis cor de pele – uma história de Sueli Ferreira

O livro Lápis cor de pele produzido por Sueli Ferreira de Oliveira se enquadra na categoria de livro ilustrado, o que também se poderia chamar de livro de imagens. Em suas vinte e quatro páginas, somente quatro delas possuem diálogos entre os personagens, sem contar a última que traz uma atividade a ser realizada pela criança dona do livro.

O livro ilustrado, segundo a crítica francesa Sophie Van der Linden (2018), difere do livro com ilustração uma vez que, no primeiro tipo, as imagens são responsáveis por contar a história junto com o texto verbal ou até sem ele. Já o livro com ilustração é aquele em que as imagens não interferem diretamente na compreensão narrativa do texto verbal, sendo este último autônomo. Neste ponto, gostaríamos de trazer uma reflexão sobre a criança que ainda não está alfabetizada, fato que ainda é muito recorrente em nosso país, sobretudo nas localidades mais pobres e carentes. A criança que ainda não desenvolveu plenamente a habilidade de ler o texto verbal não terá condições de fazer uma distinção ou relacionar palavras e imagens, neste caso, para ela as imagens estarão em primeiro plano sempre, mesmo que em certo ponto não corresponda diretamente ao que foi descrito no texto verbal. E será a partir destas imagens que a história tomará forma e fará sentido em sua mente.

Independentemente de uma obra literária infantil ser considerada um livro ilustrado ou um livro com ilustrações, é importante salientar que toda compreensão da narrativa será atravessada pelas experiências do leitor. De acordo com as professoras e pesquisadoras Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011), num estudo feito sobre a relação palavras e imagens, tanto o texto verbal quanto o texto visual possuem lacunas que são preenchidas entre si, mas sobretudo, podem ser preenchidas pelo leitor/espectador através de seus conhecimentos prévios, expectativas e experiências anteriores. E é justamente essa relação que cria infinitas possibilidades de interpretação como veremos na história de Sueli Ferreira.

O enredo da narrativa se passa no contexto de uma sala de aula onde todas as crianças são brancas, exceto uma, a personagem central da história, não nomeada pela autora. A professora também branca, solicita aos alunos que façam um desenho. Neste ponto acontece o primeiro dos únicos dois diálogos no texto verbal, dois alunos comentam entre si que gostam muito de desenhar. A partir das ilustrações percebemos que a professora percorre as mesinhas da sala a fim de orientar melhor a proposta e sanar possíveis dúvidas dos alunos.

O que nos chamou a atenção logo de início foi a imagem da menina negra em primeiro plano, aparentemente isolada dos demais colegas, sabe-se que a segregação e o isolamento de crianças negras nos espaços escolares é algo mais comum do que se imagina. Porém, tal crença mais a frente não se confirma, pois a menina já aparece junto com outros dois colegas. Outro ponto que nos tocou foi a expressão da menina enquanto aguardava as orientações da professora, era uma expressão de tensão, talvez desconforto, enquanto a expressão das demais crianças era de alegria e contentamento (fig.7).

Figura 7: a menina aguarda instruções da professora

Fonte: Oliveira, 2017

Uma outra imagem que selecionamos está acompanhada do segundo diálogo, que se dá entre a menina negra e a professora. A menina pergunta que cor deve usar em determinada parte do desenho e a professora responde: “- Você pode pintar o rosto com o lápis cor de PELE”. Observamos que a palavra pele vem em caixa alta e em negrito. E de imediato vemos um lápis cor de rosa na mão da menina. Devido ao diálogo e as instruções da professora, nos colocamos a imaginar se a criança pegou aquele lápis sozinha ou o mesmo lhe fora indicado pela professora. (fig.8). A palavra pele em destaque confronta a cor do lápis e a cor da menina.

Figura 8: a professora fala para a menina usar o lápis cor de PELE

Fonte: Oliveira, 2017

Na página seguinte teremos a menina com olhar de espanto para quatro lápis de tonalidades diferentes em sua mão, o que nos leva a crer que ela está confusa quanto ao tal lápis cor de pele mencionado pela professora. Por se tratar de um livro predominante imagético, a construção narrativa se desenvolve a partir das inferências do leitor (fig.9).

Figura 9: a menina escolhendo que cor vai usar

Fonte: Oliveira, 2017

O livro não traz a imagem da menina desenhando, a próxima página já nos mostra as crianças entregando seus desenhos para a professora. O que nos chama atenção aqui são as ilustrações discrepantes entre uma menina branca entregando seu desenho com um ar de satisfação (uma menina loirinha como ela, com o rosto pintado de rosa e um sol) e a menina negra que, na página seguinte, entrega à professora uma página em branco (fig.10). Entendemos esta ilustração como a mais sugestiva de interpretações possíveis: Será que a menina não desenhou nada e entregou a folha em branco mesmo? O mistério é revelado nas páginas seguintes. Primeiramente a professora fixando a folha com um olhar de alegria e por último a imagem de um desenho (deduzimos que seja o desenho da menina negra). Neste desenho aparece também um sol e uma menina feliz com flores e borboletas pintada com a cor marrom (fig.11).

Figura 10: a menina entrega a folha                

Fonte: Oliveira, 2017

Figura 11: a professora vê o desenho da menina

                                             

Fonte: Oliveira, 2017

O que podemos concluir a partir desta história é que o meio escolar estimula a utilização do lápis rosa como sendo o lápis cor de pele, sem fazer nenhuma questão de quebrar este imaginário. A própria menina parece deduzir que algo está errado e entra em conflito ao se deparar com outras possibilidades. A atitude da menina em escolher o lápis marrom para pintar o rosto no desenho mostra nitidamente que ela possui, ou está construindo, uma noção própria de identidade. A menina se desenha como ela se vê e se percebe no mundo, ou seja, como uma menina negra. Parece algo lógico para quem não pesquisa as relações raciais na infância, porém o conflito identitário e a necessidade de se enquadrar num grupo socialmente diferente do seu é uma realidade cruel de muitas de nossas crianças negras, o que nos leva a questionar se o fato da menina ter entregue seu desenho de cabeça para baixo, sem exibi-lo com orgulho como fez a menina branca, estaria ligado a um sentimento de vergonha de ser negra, ou se trata apenas de uma escolha da autora para criar um momento de clímax na narrativa.

De acordo com Nilma Lino Gomes (2017), o processo de construção da identidade se dá de forma coletiva por mais que se anuncie como individual. É a partir do olhar do outro sobre o corpo negro, que este corpo vai se perceber, se colocar, desenvolver uma aceitação ou uma autorrejeição. Trazendo as argumentações teóricas para a análise literária da obra Lápis cor de pele é possível levantar a hipótese de que a personagem central da história, ou seja, a menina negra, possui um grau satisfatório de aceitação ao se pintar de marrom e não de rosa claro, mas também, nos traz uma reflexão sobre essa aceitação estar ou não bem solidificada levando em consideração todo o enredo narrativo.

Enfim, considerando a relação entre palavras e imagens e o desfecho da história, o que queremos deixar como uma possível leitura analítica da obra é que se trata de uma excelente oportunidade de discutir a temática com as crianças, propor ações que as levem a compreender como elas se percebem no mundo, como enxergam os outros e, buscar entender como vem sendo construída as identidades de nossas crianças negras.

Cor de pele – a história de Elisabete da Cruz

Tendo em vista o objetivo de entender como se dá a construção da identidade de crianças negras a partir da literatura infantil, selecionamos a obra escrita por Elisabete da Cruz e ilustrada por Rafael Duque. Ao contrário do primeiro livro em que a narrativa se dá, predominantemente, a partir das imagens, o livro Cor de pele traz um amplo texto verbal e um texto visual muito elogiado por adultos e crianças devido à sua qualidade estética.

A história começa com a protagonista se apresentando e falando da relação especial que tem com seus amigos. Zaila, como é chamada, está muito feliz pois na escola irão trabalhar com o tema da identidade. E ela explica que não se trata do documento mas que identidade é de quem somos e de onde viemos. As ilustrações mostram um quarto muito bem arrumado, material escolar e tênis que nos remetem à ideia de que não se trata de uma menina pobre (fig.12). Zaíla está muito bem vestida, usa brincos e uma espécie de turbante como adorno em seu cabelo (fig.13).

Figura 12: Zaila em seu quarto

     

Fonte: Cruz, 2018                         

Figura 13: Zaila indo para a escola

                

Fonte: Cruz, 2018

Logo na primeira representação da menina, temos uma ideia bem definida que Zaila tem uma identidade bem construída, pois usa seu cabelo crespo de forma livre e parece feliz com ele. Recorrendo novamente às pesquisas de Nilma Lino Gomes, podemos compreender que o cabelo é um elemento identitário muito forte, um marcador étnico, principalmente para as mulheres negras. Usar o cabelo natural pressupõe uma aceitação da sua negritude e da sua herança ancestral africana, o que, politicamente, também é uma forma de contrariar toda tentativa de embranquecimento proposta a todo tempo pela sociedade.

No entanto, ao longo da narrativa, é nítido que texto e imagem não dialogam entre si. Enquanto as ilustrações trazem a representação de uma menina negra feliz com sua identidade negra, o texto escrito conta a história de uma menina que se desenha e se colore com o lápis rosa claro, uma cor utilizada para pintar pessoas brancas. Zaila não parece ter dúvidas quanto ao modo de se auto representar, observemos no trecho: “- Empresta para mim o cor de pele? – pedi em voz alta. Stefany me entregou um lápis de cor rosada, bem clarinha. Adorei! E empolgada continuei a colorir meu desenho.” (CRUZ, 2018, p.12). Esta passagem nos faz refletir e questionar como uma menina negra, aparentemente consciente de sua identidade, se vê e se desenha de forma embranquecida, utilizando um lápis de cor rosa “bem clarinha” como ela mesma faz questão de afirmar. Não faz sentido. (fig.14)

Figura 14: Zaila pede o lápis cor de pele a Stefany

Fonte: Cruz, 2018

 

Tal fato é tão desconexo que os próprios colegas de Zaila riram do seu desenho e lhes disseram que aquele lápis não era de sua cor. Neste momento a menina se entristece (fig.15). Os colegas então começam a lhe apresentar novas possibilidades a partir dos lápis de cor preto, marrom e cor de mel, porém a menina afirma que também não é daquelas cores. (fig.16)

Figura 15:

Zaila fica triste com os risos dos colegas  

Fonte: Cruz, 2018                     

Figura 16:

Zaila não se identifica com as outras cores

Fonte: Cruz, 2018

Foi a partir da interferência da professora, que lhe oferece um espelho e lhe faz refletir sobre sua aparência, que a personagem chega a uma conclusão: “Nenhum lápis da caixinha tinha a cor de alguém, era apenas uma forma de representar as misturas de cores de que fazemos parte” (CRUZ, 2018, p.19).

A partir daí a menina faz vários testes com cores e misturas diferentes para tentar descobrir qual é o seu tom exato de cor de pele, mas não o encontra. Neste momento a personagem faz uma observação, plenamente possível e justiçável entre as crianças negras que é o sentimento de não pertencimento e a negação de sua cor, principalmente quando ela percebe que sua cor não é igual à cor de sua família. “Minha cor era diferente da dos meus pais. E nenhuma mistura se aproximava à da minha pele. _ Acho que não tenho família, porque ninguém é da minha cor. Posso trocar? Não quero mais ter esta cor então!” (CRUZ, 2018, p.22).

No entanto, mesmo sabendo que muitas crianças negras passam por este tipo de sofrimento e não reconhecimento, voltamos a questionar a ilustração, que traz a imagem de uma menina que não parece ter este tipo de conflito étnico e identitário. O texto visual parece contar uma história diferente do texto verbal.

Novamente é a professora que precisa mediar os conflitos de Zaila. Junto com toda a classe a professora explica que o que nos torna parte de uma família são os laços afetivos e o amor que os une e que isso não tem cor. Também explica que não são as cores que mostram nossa identidade elas apenas colorem o mundo e o fazem ficar mais alegre. (fig.17)

 

Figura 17: a professora conversa com Zaila e os colegas

Fonte: Cruz, 2018

A história termina com as crianças apresentando o desenho que fizeram de si junto de suas famílias, e então entendemos, a partir das ilustrações que Zaila é uma menina negra que fora adotada por uma família branca, o que poderia explicar seu conflito na forma de ser perceber e se retratar. Ao final do texto ela está sorrindo e feliz em perceber como o mundo e as pessoas são mais belos por serem coloridos e que, ela não possui uma cor definida na caixinha de lápis para colorir, ela possui uma mistura que é só dela. (fig.18)

Figura 18: Zaila apresenta seu desenho para a classe

Fonte: Cruz, 2018

Este livro não é um livro de fácil circulação nas escolas, é um livro bem confeccionado e com valor pouco acessível. As crianças que tiveram contato com ele, por nosso intermédio, apenas se fixaram nas imagens e não tiveram interesse em ler o texto o verbal. A reação foi de entusiasmo com as ilustrações, todos sem exceção, acharam Zaila muito linda. Desta forma, deixamos que o contato inicial com a obra findasse por aí, não quisemos quebrar a magia do deslumbramento imagético com debates e questionamentos identitários naquele momento. Porém, julgamos necessário refletir teoricamente sobre estes aspectos que foram observados.

Considerações finais

O racismo estrutural é um problema muito grave que precisa ser combatido todos os dias, em cada episódio de conflito, em cada negacionismo étnico e processos de exclusão. O racismo estrutural interfere na forma como as pessoas se enxergam, se definem e se classificam, mas também, como o indivíduo negro é percebido pelo outro. É uma questão tão enraizada na nossa formação enquanto sociedade que até mesmo as pessoas negras não estão isentas desse confronto identitário, como foi o caso da personagem Zaila.

Este tipo de racismo permeia nossas relações, nossas condutas e decisões, coloca a população negra em posições desfavorecidas e desprivilegiadas, lhes roubando a dignidade, o direito à vida e à liberdade, ou seja lhes negando uma identidade. Portanto, é necessário que essa discussão seja feita nas escolas e nos lares em geral, para que as crianças possam crescer com condições de enfrentar os desafios que o racismo nos impõe e, talvez, no futuro sejam capazes de construir uma nova sociedade mais justa e igualitária.

A literatura infantil pode e deve ser utilizada como recurso para nortear as discussões, mas também para construir associações positivas nas crianças negras. Através do seu caráter lúdico e de seus elementos simbólicos, a literatura pode despertar sonhos, deslumbramento, coragem e empoderamento. No entanto, a mediação é parte essencial neste processo. Nem sempre a criança vai conseguir descobrir tudo o que precisa sozinha, é necessário que pais e professores, munidos de conhecimento sobre o tema, possam fazer as inferências e as ponderações necessárias para que as crianças, em especial as de pele negra, possam construir uma identidade racial positiva.

Referências

CRUZ, Elisabete. Cor de pele. Ilustrado por Rafael Duque. São Paulo: Suinara, 2018.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas po emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: SESI-SP, 2018.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro Ilustrado: palavras e imagens. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Sueli Ferreira. Lápis cor de pele. Ilustrado Gilmar e Fernandes. São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2017.

____________________________________

* Cristiane Veloso de Araujo Pestana é Professora da rede pública de ensino de Juiz de Fora- MG, Especialista em Literatura e Cultura Afro-brasileira, Mestra e Doutoranda em Letras, Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu projeto de Doutorado, pesquisa a representação das personagens negras na Literatura Infantil brasileira. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Texto para download