Joel Rufino e o protagonista invisível
Heloisa Pires Lima *
Sempre me impressionou a posição de Joel Rufino na cena literária nacional. Sobretudo, aquela que busca a criança e o adolescente. A biobliografia que ele construiu instiga por expor a exceção num país onde a cor do sujeito vincula tantos impedimentos. O acesso à expressão literária é um deles. Basta revirar a memória para apanhar as, eventuais, autorias negras lidas no decorrer da vida. Certamente poucas se a medida comparativa relacionar grupos populacionais e os livros por eles assinados. Em 2005, a curadoria da exposição A presença negra circuito editorial brasileiro, que realizei na Câmara dos Deputados, em Brasília, se aliava às ações que buscam sensibilizar para esse particular histórico. Montada num dos halls, destacava as obras de escritore(a)s, ilustradore(a)s, tradutore(a)s, editore(a)s, enfim, um pouco da engrenagem da empreitada recolhida pelo século XX. Todos, no entanto, levavam a expressão “edições do autor”. Este ângulo destacava, ao mesmo tempo, o desejo de publicar e a não aceitação das editoras para realizá-lo. Também obtinha um quantitativo, embora parcial, mas significativo das insistências desse particular segmento populacional.
A dimensão histórica sempre auxilia perceber o conhecido problema do acesso restrito. Mas há outros como o das historiografias que invisibilizaram ou desqualificaram as iniciativas negras. Ou casos de sucesso de vendas como o de Carolina Maria de Jesus cujo valor literário a mantém apartada como espaço exótico. Joel Rufino dimensiona elementos ímpares para pensar o cenário.
Revisitando o percurso infantojuvenil por ele traçado, eu já o encontro, em destaque, na Coleção Recreio, nos idos dos anos 1970. O periódico em sua grande escala inovava como revista brinquedo com foco na hora do intervalo escolar. A proposta pedagógica interativa tinha a coordenação de Sônia Robatto, que o convidou.
Ele também participou da célebre e muito bem avaliada coleção Taba, publicada a partir de 1982 pela mesma editora, a Abril Cultural. Os fascículos reuniam um disco e um livro ilustrado e perfilado em repertórios brasileiríssimos. A direção musical do projeto era de Tom Zé e a congregação de autores abarcava, entre outros, nomes como o de Sylvia Orthof, Maria Clara Machado, Ilo Krugli, Ana Maria Machado, Myrna Pinsky. O volume de lançamento é assinado por Joel Rufino tendo por parceiro musical, Gilberto Gil a que se seguiram, Caetano Veloso, Secos e Molhados, Nara Leão, Chico Buarque, João Gilberto. Enfim, uma geração poderosa.
No entanto, ao acompanhar mais de perto a carreira do escritor, não há como negligenciar o mau tempo que o perseguiu e o encarcerou. Historiador por formação, o intelectual foi um dos autores da Coleção História Nova (...) publicada pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1964. O projeto foi o ponto alto de um circuito que intentava revolucionar o ensino de História recontando acontecimentos com lentes de esquerda marxista.
Escrita em conjunto por Joel Rufino dos Santos, Mauricio Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso Uchoa Cavalcanti Neto, Rubem César Fernandes e Nelson Werneck Sodré, todos vinculados ao Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) - do qual Sodré era o diretor —, a coleção previa dez títulos, dos quais foram publicados cinco até 1964, quando a edição foi suspensa pela ditadura militar recém-instaurada. (LOURENÇO, E, 2008).
Obra apreendida, acusado de subversivo, parte para o Chile no próprio 31 de março de 1964. No detalhe, com o afastamento ele perde o nascimento do filho Nelson. Embora volte (1965), a perseguição acelera a mudança para São Paulo, onde cairá preso (1972-1974). Nesse período, o empenho do pai Joel em explicar ao filho de oito anos que está preso sem ser bandido deixou um material com valor literário. As cartas, bem mais tarde reunidas em Quando voltei tive uma surpresa “[...] era uma maneira do pai aliviar o sofrimento do menino. As histórias desviavam a imaginação do garoto da dura realidade dos porões da ditadura militar. Eram coloridas e cheias de desenhos. Em uma delas, Rufino agradecia pelas canetas hidrocores que ganhara do filho no último encontro entre os dois. E ainda destacava que era o único preso da cadeia a contar com tamanho privilégio”. (Cohen, V.). A obra recebeu o Selo Altamente recomendável, FNLIJ, e o Prêmio Orígenes Lessa – O melhor para jovem, ambos no ano 2000.
Dando um salto para os bons tempos, ou seja, quando o proscrito torna-se lícito, a Anistia (1979) traz a reintegração ao Ministério da Educação com direito à comenda da Ordem do Rio Branco, por seu trabalho pela cultura brasileira. Também retorna o professor universitário de Literatura na Faculdade de Comunicação, então na UFRJ que lhe outorgou os títulos de “Notório Saber e Alta Qualificação em História” e “Doutor em Comunicação e Cultura”. Portanto, o prestígio do ativista foi um grande articulador para as produções editoriais que incluíam o jovem leitor em seus alvos.
Com Uma estranha aventura em Talalai (Pioneira, 1979) ele ganhará o primeiro Jabuti, na categoria Melhor Livro para Jovens. O título entrou na Lista de Honra do IBBY, foi selecionado para a Feira de Bolonha além do Selo Altamente Recomendável, FNLIJ (1980). Portanto, Joel Rufino foi alcançando reconhecimento pela critica literária no gênero. O escritor negro foi capaz de façanhas como a de ser premiado com o Jabuti, mais uma vez, em 2008, quando arrebatou o primeiro lugar na categoria Juvenil com a obra O Barbeiro e o judeu da prestação contra o Sargento da Motocicleta.
Ainda nessa seara de premiações hegemônicas, nada é comparável ao fato de, por três vezes, ele ser a indicação brasileira para o troféu Hans Christian Andersen – o mais importante prêmio internacional de literatura infantojuvenil, o que se deu em 2002, sendo também um dos quatro finalistas em 2004 e na recente premiação de 2014. Por si só, imaginar a concorrência entre os publicados para chegar a apenas um nome já indica o tamanho da travessia. E não apenas local, pois o alcance é internacional. O pomposo anúncio acontece durante a Feira de livros infantis em Bolonha, a maior no gênero. Concedido bianualmente pela International Board on Books for Young People, o contemplado recebe uma medalha de ouro das mãos da rainha da Dinamarca, patrona do prêmio. Sem dúvida, todos os ingredientes de um belo conto de fadas. Desta vez, o protagonista é negro.
A cor da autoria
O espaço das letras nunca esteve imune à crueldade que impacta a vida afrodescendente, a maioria no país e a minoria nas prateleiras. A lucidez de Joel Rufino acerca de um aspecto da problemática ficou registrada no prefácio da obra A mão afro-brasileira. O compêndio foi um dos polos de comemoração pelos cem anos da abolição no Brasil e compõe a impactante exposição, de mesmo nome, organizada por Emanoel Araújo. O texto discorre acerca do pacto estabelecido na sociedade verde-amarela de negar a face negra, uma espécie de recalcamento que distorce o protagonismo dessa presença. Na argumentação, a invisibilidade configura “um pacto que não deve ser quebrado sob pena de sermos obrigados a redefinir o Brasil”. Destaca assim, a lógica do país ser percebido como essencialmente branco. Nessa perspectiva ele busca o episódio oitocentista dos protestos de Nabuco por chamarem Machado de Assis de mulato genial.
Desdobrando acerca do evento, ele inicia com o artigo de José Veríssimo no Jornal do Comércio em homenagem ao literato, recém-falecido, quando ocorre a menção a sua mulatice. Em resposta, o famoso abolicionista Joaquim Nabuco se indigna com a classificação. Joel Rufino chama a atenção para o branqueamento de Machado de Assis contemplar a formidável compulsão de tapar o sol com a peneira.
Ou, o mesmo que dizer: se o maior escritor da língua é um negro, não há literatura.
O aspecto apontado por Joel Rufino é vital, pois esta razão do passado compõe as camadas culturais assentadas no imaginário ainda no presente. A existência de uma mulatocracia como história do país ainda é um problema para muitas correntes de pensamento. Quem não observa o esforço de certos circuitos editoriais para retirar de Machado de Assis o título maior dentre os escritores brasileiros? Transferindo para os infantojuvenis, quantas vezes já escutei ser a expressão negra apenas um sustento ao politicamente correto, aludindo à pobreza que encerra para leituras literárias, enfim, seria qualquer coisa menos literatura.
Facilitaria o apartheid e a censura, para certos círculos de leitores, o ponto de vista a ser conhecido e reconhecido.
Joel Rufino, ao contrário, se tornou o autor negro que alcançou os mais altos escalões de reconhecimento. Fez, assim, a diferença como espelho para as gerações que entraram em contato com os livros dele. Primeiramente, porque muitos dos títulos de sua autoria ofertam o modelo de humanidade negra para o leitor em formação. Principalmente se observarmos o aspecto quantitativo do contexto do século XX. Basta comparar os personagens associados à procedência branca- europeia com a negro-africana no exercício de considerar as origens continentais presentes nas bibliotecas. A sensibilidade para repertórios negro-indígena- sertanejos ele atribui à memória da avó pernambucana, que o introduziu no universo da oralidade. Basta revisitar o conjunto da obra para notar o entrelaçamento.
Essa garantia do ponto de vista na abordagem dos temas foi, tantas vezes, ponte para conversas com crianças ao meu redor, de filho a alunos de sala de aula.
O escritor tornou a biblioteca mais democrática e mostrou o ângulo de uma existência negra como espelho de identidades sociais dentro e de fora das páginas.
Por isso, é possível afirmar que a propriedade literária no setor editorial ressoa um protagonismo de primeira ordem. Mas falta ainda, uma última atenção. A narrativa desenvolvida por sua negritude é também um binóculo para fazer notar as tentativas de ultrapassar temáticas tão somente vinculadas à identidade negra. Sem perder de vista a complexidade humana como presente da vida, o autor recupera a procedência negro-africana como uma presença particular. Ele traz à tona, mas jamais a restringe como assunto. Com uma sabedoria rufinante soube escapar das armadilhas e das expectativas limitantes impostas à criatividade negra.
É a impressão que ele deixa num mundo onde lidou com a própria história sendo um contador de histórias. Às vezes, o personagem comunista que cria brinquedos para as criancinhas. Outras, a estrela única que atrai estrelas ou o professor charmoso que tira de letra a academia ou o agente de poder que sucumbiu ao poder. Também, o amigo de meu irmão na casa de quem ele pousava e o primo da cunhada que dividiu com ele aulas em cursinho. Joel é uma referência para mim a qual segue articulada a boas histórias, aquelas cheias de contradições, densas em alguns momentos, pueris em outros tantos. Especialmente pela jornada literária protagonizada por uma face negra.
A poranduba, agora, é posicioná-la num memorial. Meu primeiro gesto é o da gratidão pelo campo fertilizado de onde, também, colho alimento. Para a sociedade brasileira com o alcance externo, há para análises ilimitadas as narrativas por ele arquitetadas, a demanda para produzir reedições, explorar o acervo existente ou ainda por nascer, a pesquisa dos contextos com os quais ele dialogou, as respostas que deu aos dilemas de sua geração, as coerências e incoerências, os repertórios que enfrentou, a visualidade dos projetos e inovações embutidas numa produtividade tão singular. E certo é que há um fio invisível alinhando isto tudo.
Referências
COHEN, Vivianne. Memórias do cárcere. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoegente/46/reportagem/rep_joel_rufino.htm> Acesso em out. 2015.
LOURENÇO, E. História Nova do Brasil: revisitando uma obra polêmica. Revista Brasileira de História vol. 28, no 56. São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 01882008000200006>. Acesso em: out. 2015.
PEREIRA, Amauri M.; PEREIRA, Amilcar A.; ALBERTI, Verena. Entrevista com Joel Rufino dos Santos concedida em 11 de julho de 2013. Scielo Estud. hist. (Rio J.) v.26, n. 52. Rio de Janeiro, jul./dez. 2013. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-21862013000200012>. Acesso em: out. 2015.
SANTOS, Joel Rufino. Prefácio. In: ARAUJO, Emanoel. A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.
SANTOS, Joel Rufino dos. “Não tenho medo do racismo”. Entrevista concedida. In: ANDRADE, Rosa Maria T. (Org.). Aprovados: cursinho pré-vestibular e população negra. São Paulo: Selo Negro Edições, 2002.
* Heloisa Pires Lima é antropóloga e autora de obras infantojuvenis, entre outras, Histórias da Preta (Prêmio José Cabassa e Adolfo Aizen, da União Brasileira dos Escritores, 1999), e O marimbondo do quilombo, indicado ao Prêmio Jabuti 2011, categoria ilustração. Criou e foi editora da Selo Negro Edições.