Personalidades Negras: o escritor Lima Barreto

Florentina Souza*

Em 13 de maio de 1881 1 nascia Lima Barreto, uma das personalidades negras do Brasil que no século XIX e XX deixaram seus nomes inscritos na história intelectual brasileira. O escritor viveu e produziu seus textos em um período de intensa agitação na vida literária e política. A lei que abolia a escravatura e a proclamação da república estão entre os principais acontecimentos que alteraram aspectos significativos do cenário histórico e cultural brasileiro. No campo das letras, aquele foi o período de fundação da Academia Brasileira de Letras e da hegemonia de uma literatura intensamente preocupada com a gramática da norma culta e com a forma; tempo em que os cafés elegantes eram o ponto de encontro dos jornalistas, escritores e críticos; tempo em que a vida cultural brasileira era descrita como belle époque, embora os ecos do longo período de escravização no Brasil ainda estivessem bastante audíveis. É nesse contexto que o mulato, suburbano, pobre vai tentar se inserir como escritor e intelectual nas rodas literárias brasileiras.

Não foram fáceis as suas lutas, nem de outros, para inserir-se como escritor e intelectual naquela sociedade. No entanto, o reconhecimento dos seus trabalhos somente chegou, de fato, após a sua morte. O livro A vida de Lima Barreto, publicado na década de 50, por Francisco Assis Barbosa, que narra aspectos da vida do escritor e tece alguns comentários críticos sobre sua obra, constitui um dos marcos de “redescobrimento” de Lima Barreto pela crítica literária no Brasil.

Lima Barreto foi um autor pouco lido e muito criticado à sua época. Criticado pelo tom de seus textos, pelo seu perfil de mulato, suburbano e deselegante e criticado pelo “desleixo” para com a linguagem da norma culta. Mas de fato ele não foi ignorado pela crítica que, em alguns momentos foi intensamente cruel com o escritor e com sua obra. José Veríssimo, João Ribeiro, Medeiros de Albuquerque, Monteiro Lobato, Manuel Oliveira Lima, Nestor Victor estão entre os críticos de renome que dedicaram algumas páginas ao escritor quando este ainda vivia, após a morte, outros tantos leram e avaliaram a obra do autor. Ironicamente, a Academia Brasileira de Letras (que não o aceitou como membro, embora tivesse premiado com menção honrosa, seu livro, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, em 1919) realizou, em 1981, uma sessão solene para comemorar o centenário de seu nascimento. Francisco de Assis Barbosa, seu biógrafo, em texto para a citada sessão, destaca uma faceta interessante de Lima Barreto – o seu compromisso com as questões de seu tempo e principalmente sua atenção crítica ao que acontecia à sua volta, sem temor de assumir posições que não eram as da maioria. Assim se refere o estudioso:

Lima Barreto está sempre em descompasso com os escritores de seu tempo. E inicia por isto mesmo com a sua literatura militante a ruptura contra a atitude contemplativa de intelectuais sem compromisso que se diziam desinteressados da política. [...] Insurgia-se ao mesmo tempo contra o convencionalismo e todas as formas de hipocrisia, ostensivas ou disfarçada. (In: Prosa seleta, p. 85).

Deste modo, pode-se perceber que Lima Barreto antecipa a compreensão do trabalho intelectual e do trabalho científico como atividades de intervenção política e cultural, tal qual o entendem escritores contemporâneos como Edward Said, Cornel West e Stuart Hall, para citar alguns. Vanguardista, ele explicita em todos os seus textos o seu lugar de enunciação – lugar de sujeito ativo, envolvido, em uma série de identidades que são acionadas de acordo com a situação vivenciada ou representada.

Afonso Henriques de Lima Barreto, cronista, jornalista, escritor morre no dia 1 de novembro de 1922. Como já o referi, é mais lido e estudado depois da década de 50 do século vinte, mas precisamente 1956, 34 anos após a sua morte, quando a editora Brasiliense publica suas obras completas. Inicia-se então o seu processo de inserção no cânone literário brasileiro – vez que a publicação em grande casa editorial e a produção de estudos críticos, dissertações e teses sobre um autor constituem-se instâncias de legitimação e consagração canônicas. Pois é, “o mulato livre e pobre” , como ele se autodefine, não teve seus livros considerados pela crítica de sua época, não ingressou na Academia de Letras, mas termina, no século XXI, tendo seus textos relidos e republicados, sendo canonizado pela academia, ou melhor, por setores dos estudos literários nas universidades. O portal da Capes apresenta mais de cem teses e ou dissertações, de várias áreas, que abordam direta ou indiretamente sua obra e aproximadamente 50 que se dedicam exclusivamente a ela, discutindo temas como loucura, angústia, negro no seu universo literário, relações entre vida e obra, loucura e racismo, identidade étnica, pensamento político, a cidade do Rio De Janeiro, pressupostos filosóficos entre outros.

Assim, outros olhares contemporâneos acompanham a trajetória do cronista e romancista que via na literatura a necessidade de interessar-se pelos desprestigiados e excluídos do estado de bem-estar – se assim podemos considerar a vida do Brasil no início da República.

Lima Barreto, nascido de pais livres, tipógrafo e funcionário da Imprensa Nacional e mãe professora pública, compõe um restrito grupo de afrodescendentes, pequenos funcionários públicos que, teoricamente teriam “vencido na vida” ou logrado ascensão social, caso as relações sociopolíticas, culturais no Brasil não fossem tão intrincadamente hierarquizadas em termos de raça/etnia e classe. A biografia de Lima e de membros de sua família atestam este fato.

O primeiro livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909, é recebido com certa indiferença por uns e com indignação por outros; no seu Diário do Hospício, assim o autor descreve sua reação diante do fato:

O aparecimento do meu primeiro livro não me deu grande satisfação. Esperava que o atacassem, que me descompusessem e eu, por isso, tendo o dever de revidar, cobraria novas forças; mas tal não se deu; calaram-se uns e os que dele trataram o elogiaram. É inútil dizer que nada pedi (BARRETO, 1993, p.162).

Desde a revista Floreal 2 , Lima vinha acumulando inimigos entre os jornalistas e escritores da belle epoque, reativamente resistentes a qualquer tipo de crítica. O livro Recordações do escrivão Isaías Caminha acentua essa má vontade, ao fazer uma crítica mordaz à tradição jornalística e à organização dos círculos e amizades interessadas na imprensa carioca do início do século XX. Para ele, a importância da literatura deveria residir “na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do infinito e do Mistério que nos cerca e aluda às questões de nossa conduta” (BARRETO, p. 388).

Por outro lado, percebe-se a grande perspicácia do autor na representação dos indivíduos que circulavam nas feiras, nos trens do subúrbio, nas ruas simples do Rio de Janeiro, e mais, na representação das tensões, conflitos, preconceitos, alegrias e sonhos vivenciados por indivíduos e personagens que circulam na sua obra. Os personagens, na sua maioria, não possuem equivalentes na produção literária de outros escritores da época. Os pequenos funcionários, os suburbanos, a gente comum que não frequenta salões nem cafés. Vale ressaltar ainda a crítica ácida que faz aos costumes, à vida política e social de um Brasil iniciante no regime republicano, mantendo, no entanto, os vícios dos apadrinhamentos e preconceitos de toda a ordem. Seus textos constituem um documento literário que registra os modos como são engendrados os rituais de consagração para constituir-se o cânone literário.

Nascido no dia em que seria assinada a Lei Áurea, Lima, embora 7 anos antes, escreve bela crônica intitulada "Maio", na qual registra a sua memória das comemorações de 1888, que assistiu com seu pai, aos 7 anos de idade e já órfão de mãe. Aos 30, já conhecendo não só o horror e a injustiça da discriminação racial, que afirma, ignorava aos 7, Lima preenche os espaços deixados pela distancia de 23 anos, para compor um texto que recupera o seu lugar de espectador: em criança, ele era o espectador dos discursos proferidos por outros; agora, participante ativo, ele analisa na crônica a leitura da criança de 7 anos e a leitura do homem de 30 anos vividos e que entende melhor e sem expectativas, os modos através dos quais se configuram as relações raciais no seu país. Na bela crônica rememora o acontecimento da infância e conclui:

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados… (Idem, p. 315).

O tom de angústia e desencanto reaparece em outro trecho do Diário Íntimo, quando rememora ainda os seus 7 anos:

Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte da minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar.

Foi desde essa época que eu senti a injustiça da vida, a dor que ele envolve, a incompreensão da minha delicadeza, do meu natural doce e terno; e daí também comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade, de modo que as mínimas cousas me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante (Idem, p. 135).

Tendo vivido logo depois da Abolição, os vários estudiosos apontam Barreto como obrigado a enfrentar na pele as contradições de uma liberdade teórica e constrangida que produz as angústias descritas pelo adulto Lima Barreto, pelo personagem Isaías Caminha, e que se reconfiguram em vários contextos antigos e contemporâneos de exclusão. Aliás, as vivências de discriminação não foram exclusivas do cotidiano de Lima Barreto, mas aparecem anotadas em textos de Luiz Gama, Cruz e Sousa, Rebouças e Patrocínio, juntamente com milhares de outros homens e mulheres que viveram o século XIX no Brasil e foram vítimas das facetas sempre reconfiguradas do processo de exclusão de base étnico-racial.

Entretanto, o grande sonho de Lima Barreto era tornar-se um reconhecido escritor literário, a isto dedicou grande parte de sua vida, escrevendo compulsivamente crônicas, diários, contos e romances. Chegando mesmo a afirmar: “Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras” (Idem, p.357).

E desabafa em outro texto: “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela” (Idem, p.154).

Nos livros dedicados à historiografia literária brasileira do início do século XX, ele aparece pouco, na de Nelson Werneck Sodré é repetida a crítica feita pelos jornais de época que insistiam no caráter panfletário, linguisticamente fraco e na sátira ressentida como pontos a serem destacados nas obra do autor. Comentários reiterados até por seu biógrafo Francisco Assis Barbosa e ainda por Antonio Candido e Aderaldo Castelo, Otto Maria Carpeaux e Celso Luft. Mesmo Lúcia Miguel, que lhe dedica longo estudo na sua Prosa de ficção, fala do descuido do autor para com a linguagem de seus textos. Tal perspectiva apresenta mudanças nos inícios dos anos 70, com destaque para a publicação da História concisa da literatura brasileira, de Bosi, que traz Lima Barreto juntamente com Euclides e Graça Aranha como constituintes do Pré-Modernismo e o que até então era considerado descuido formal, passa ser visto como antecipador da liberdade de expressão tão valorizada pelos modernistas. Ou seja, todo o combate de Lima Barreto ao formalismo e academicismo da literatura dos anos iniciais do século XX, que é, naquela época, reduzido a um desleixo, ganha nos meados do século XX caráter de precursor do movimento estético literário considerado revolucionário pela historiografia brasileira justamente por seus expoentes ansiarem pela libertação de regras e normas.

Os diários de Lima Barreto, Diário íntimo e Diário do hospício, aparecem como textos importantes para leituras cruzadas com sua obra. Neles, memória, lembrança e história de vida entrelaçam-se e são atualizadas para compor uma escrita testemunhal que irá ter reflexos e/ou influência na obra ficcional. Muitos dos fatos narrados nos diários aparecem reelaborados nas crônicas e em trechos dos romances. No diário, a memória e a imaginação se unem para recompor, muitas vezes, com efeito catártico, o que fora recentemente vivido, já que a distância entre o que foi vivenciado e o registro desta vivência pela escrita, em geral, é muito pequena. Entendidos como registros de histórias pessoais e íntimas que em momentos de dor, desespero e/ou solidão se expandem para além do contexto pessoal e individual, os diários, desde sua gênese preveem a possibilidade de leitura de outrem. Assim, os textos dos dois diários de Lima podem ser lidos como tentativas de explicar fatos marcantes da sua vida e da sua obra – afirmação que se sustenta no registro que ele próprio faz no dia 3 de janeiro de 1905, no seu Diário íntimo:

Se estas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que tenho em minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançosa a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei.

[...] Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha (BARRETO, p. 44).

A preocupação com a história de vida, com o ato de recontar ou reordenar os fatos ou seus vestígios para melhor entendê-los, é marcante na obra do escritor e extrapola os limites dos diários. Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, Recordações do escrivão Isaías Caminha, Clara dos Anjos, de algum modo podem ser lidos a partir da enfática preocupação com biografias e/ou memórias. São histórias e personagens marcadas por acontecimentos e emoções fortes que merecem análise e são selecionadas pelo narrador como exemplares.

Não são as memórias mais agradáveis, as que ele seleciona para compor seus romances, mas são aquelas capazes de dar conta das facetas crucias da vida social brasileira e do seu desejo de dela participar como sujeito crítico das bases discriminatórias, hipócritas, superficiais, incongruentes, preconceituosas que estruturam a sociedade em geral e a sociedade brasileira em particular.

Lendo, porém, textos dos diários e crônicas que são organizados pela editora Graphia, encontramos, sob o título de Confissões dispersas um texto que pode ser, talvez, entendido com uma resposta de Lima à crítica. Intitulado “Essa minha letra” escrito em 1911, publicado na Gazeta da Tarde, aponta a caligrafia como um “obstáculo” à concretização do desejo de se escritor e ilustra sua dificuldade em lidar com gráficas e impressões:

O mais interessante é que a minha letra, além de me ter emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. [...] Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro... [...] De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja coisas minhas, eu me encho de medo e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno (p. 357).

Em vários textos, Lima Barreto diz-se desejoso de se ver reconhecido como escritor. Comparava seus textos com os de outros escritores bem vistos pela crítica literária. Em especial aqueles que se dedicavam à perfeição da linguagem e à obediência ás normas gramaticais. Sua crítica atinge desde Coelho Neto e Afrânio Peixoto, representantes mais citados da literatura “sorriso da sociedade” até o cronista, de sua idade, considerado o primeiro escrito afrodescendente e homossexual a ser reconhecido no restrito e preconceituoso mundo literário do início do século XX, João do Rio ou Paulo Barreto.

A compreensão de literatura e da arte que adotava baseava-se em pensadores canônicos europeus que lia intensamente; vivia a contradição dos intelectuais brasileiros de sua época que estudavam e aplicavam à realidade brasileira teorias e ideias de autores, cujas obras depreciavam o seu trabalho e o trabalho dos brasileiros, os quais, nas teses deterministas estavam alocados nos patamares mais baixos da intelectualidade.

Seja no Diário, seja nos artigos ele procurava definir e entender a literatura e seu papel na vida nacional e na sua vida pessoal de tal maneira que, vida pessoal, textualidade e contexto histórico-cultural misturam-se produzindo uma obra de forte cunho memorialístico e autobiográfico e com não menos força de realidade. E no antológico texto “O destino da literatura” afirma:

Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida (BARRETO, p.388).

Atento às transformações trazidas pela modernidade/modernização do país, Lima Barreto não hesitou em criticar os movimentos sociais e as “novidades com as quais não concordava. São sempre citados a sua impaciência com o football que ele considerava o “primado da ignorância e da imbecilidade” e com o feminismo – tema ao qual dedicou uma série de artigos e crônicas; considerava ambos uma transplantação para o Brasil de modismos estrangeiros que em nada contribuiriam para a vida cultural do País.

Ironizava o feminismo principalmente através de críticas às feministas D. Deolinda Daltro e Berta Lutz. Não aceitava o fato de as mulheres obterem cargos em repartições públicas, cobrando o aspecto “legal” da decisão. Segundo ele, a mulher sempre teve o direito de trabalhar não necessitando, portanto, nem do feminismo nem de ser funcionária pública. Usa o argumento também para criticar o empreguismo já existente que naquele momento seria estendido ao universo feminino. Tal atitude se encontra também presente no texto literário, vejamos o Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, em diálogo entre Augusto Machado e Gonzaga de Sá:

G- Cada vez mais interessantes os subúrbios. Sobremodos namoradores e feministas…

AM- Feministas?

G- Feministas! Como não? A atividade intelectual daquela parte da cidade, ao se entrar no trem, parece estar entregue às moças... Tal é o número das que trazem livros, violinos, rolo de musica que a gente se põe a pensar: estamos no reino da Grã Duquesa?

E continua o Gonzaga, reclamando a presença da mulher em casa enquanto o Augusto Machado conclui “Não há perigo algum quando vier o casamento, fecham as gramáticas, queimam as músicas e começarão a repetir a história igual e enfadonha de todos os casamentos burgueses ou não” (BARRETO, p. 49).

Entretanto, vale ressaltar que, embora contrário ao feminismo, ele também era contrário a uma série de crimes praticados por maridos que eram ou se sentiam traídos pelas esposas ou companheiras. Contrário ao feminismo, poderíamos arriscar que ele não era contrário às mulheres, pois, desde 1915, escreve uma série de artigos condenando o ato, tais como Não as matem, ou Lavar a honra matando? Ou ainda uxoricidas e a sociedade brasileira. E nos seus romances podemos observar sua crítica aos modos como são criadas as meninas e moças na sociedade carioca. Clara do Anjos, Olga, a irmã de Policarpo, Ismênia ilustram a visão que tem da diferença de oportunidades dadas a mulheres e homens. Nos quatro romances mais famosos, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida e morte de M.J.Gonzga de Sá, Clara dos Anjos, nos inúmeros artigos e crônicas, nos diários delineia-se um intelectual marcado pelas dificuldades da vida, pela ação dos preconceitos de base racial e social, ávido leitor, lutando heroicamente pela sobrevivência, circulando entre a cidade e o subúrbio, sentindo- se estranho nos dois espaços. Vivendo, a seu modo, a dupla consciência de que falou Du Bois3, ele tinha as habilidades para ser reconhecido como intelectual respeitável, para ingressar na Academia, para ser escritor canônico, para obter um emprego que lhe garantisse a sobrevivência, para ser engenheiro, porém o mau jogo da sociedade em que vivia não lhe permitiram realizar o gol.

Lima Barreto foi intelectual ativo participou de várias polêmicas, fosse criticando o futebol, o feminismo, o racismo, o telefone, a reforma modernizadora de Pereira Passos, o bonde, a política ou politicagem da república, a linguagem literária rebuscada e oca, o descaso da literatura para com as questões relativas às pessoas pobres. Critica a tradição bacharelesca do Brasil e vê a educação como o caminho para combater as desigualdades:

É preciso que os pobres façam-se doutores para contrabalançar a influência nefasta dos burgueses felizes e precocemente guindados a alturas em que se não dispensa a idade, mesmo quando se trata de gênios; mas que eles conseguem com disfarces, pelotices e mais habilidades de feira (BARRETO, 1993, p. 335).

Polêmico, discutiu sobre as relações entre literatura e política, apontado o caráter social do texto literário para rebater as críticas da época à sua produção: A começar por Anatole France, a grande literatura tem sido militante.

Não sei como o Senhor Malheiro Dias poderá classificar a Ilha dos pinguins, os Bergerets, e mais alguns livros do grande mestre francês, senão dessa maneira.

Eles nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ou quase todas as suas obras, se não visam a propaganda de um credo social, têm por mira um escopo sociológico. Militam (Apud AIEX, 1990, p. 88).

Em outro texto publicado em 1918, no periódico A Lanterna, escreve: "em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e sociais a literatura do Senhor Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro."

Indo para a Câmara, onde não podia ser poético ao jeito do senhor Fausto Ferra, porque o Senhor Neto tem senso comum; onde também não podia ser político à guisa do Senhor Urbano Santos, porque o Senhor Neto tem talento, vergonha e orgulho de si mesmo, do seu honesto trabalho e da grandeza de sua glória; indo para a Câmara, dizia, o grande romancista sem estar saturado dos ideais da época, não pôde ser o que um literato deve ser quando logra pisar em tais lugares: um semeador de ideias, um batedor do futuro (Apud AIEX, 1990, p. 90-91).

Lima Barreto, por conseguinte, viveu interessado em debater os modelos de produção literária de seu tempo e propor alternativas, como escritor e crítico literário desejou interferir nos rumos da literatura brasileira. Reconhece-se intelectual e almeja cumprir os seus papeis, não obstante a indiferença ou crítica cruel de seus pares. Vivencia as contradições e ambivalências que caracterizam a personalidade humana, que atingem os indivíduos afrodescendentes que, interpelados cotidianamente ao exercício da dupla consciência, exprimem suas angústias, tensões e sensibilidade através da sensibilidade artística.

Notas

1 No mesmo ano em que nasce João do Rio, outro escritor mulato que tendo mais sorte, ingressa na Academia tornando-se o primeiro escritor mulato homossexual a ter prestigio e que, por sinal, morre um ano antes de Lima Barreto. João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto foi ainda um cronista da cidade do Rio de Janeiro como Lima Barreto. Segundo estudiosos, teria interesse em seguir a carreira diplomática, mas foi desaconselhado por Rio Branco, por ser mulato. Outros intelectuais negros atuaram no cenário político-cultural brasileiro do final do século XIX ao início do XX. Entre eles, alguns que foram apreciados neste seminário e mais outros como Cruz e Sousa, Teodoro Sampaio e André Rebouças.

2 Revista Floreal foi fundada por Lima Barreto juntamente com outros escritores, em 1907, teve apenas 4 números publicados.

3 O intelectual negro estadunidense, ativista do Pan Africanismo no início do século XX, afirma que o negro convive com uma situação de “dupla consciência” em “um mundo que não lhe concede uma verdadeira consciência de si, mas que apenas lhe permite ver-se por meio da revelação do outro mundo. É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir sua duplicidade – americanos, e Negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce” (DU BOIS, 1999, p. 54).

Referências

AIEX, Anoar. As idéias socioliterárias de Lima Barreto. São Paulo: Vértice, 1990.

BARRETO, Lima. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

BARRETO, Lima. Lima Barreto: um longo sonho do futuro. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.

DU BOIS, W.E.B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. Trad. Heloísa Toller Gomes.

LE GOFF, Jacques História e memória. Campinas: Unicamp, 1994.

 

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* Florentina da Silva Souza é doutora em Letras, Estudos Literários pela UFMG, professora de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFBA, pesquisadora do CNPq e do CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais, da UFBA, do qual foi também vice coordenadora. Autora, entre outros, de Afrodescendências em Cadernos Negros e Jornal do MNU (2005) e coautora, entre outros, do volume Literatura afro-brasileira (2006).

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