Literatura e sabedoria ancestral na obra de Mãe Beata de Yemonjá


Felipe Fanuel Xavier Rodrigues *
UERJ/FAPERJ

“Como afrografias, nos voltejos vocais, nas gargantas das pautas ou nas espirais do corpo, essa literatura traduz-se em lumes e saberes.
Fina lâmina da palavra ou delicado gesto é palavra possante, inventariante, livre. Litera e litura. Gravuras da letra e da voz”.
Leda Martins

O presente artigo se propõe a formular uma introdução concisa à vida e obra da escritora brasileira Mãe Beata de Yemonjá, pseudônimo de Beatriz Moreira Costa. Nascida em 20 de janeiro de 1931 em um lugarejo denominado Cupaoba, sito nos arredores da pequena Santiago do Iguape, no Recôncavo Baiano, Mãe Beata faleceu em 27 de maio de 2017 em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde fundou o terreiro de candomblé Ilê Omi Oju Aro, reconhecido como Patrimônio Cultural pela preservação da cultura africana.

Seu legado literário se destaca pela escrita performativa de textos derivados da tradição oral que descendentes de africanos escravizados solidificaram por meio de histórias que entrelaçam experiências pessoais com vivências coletivas bem como releituras criativas da herança africana no Brasil. Após o lançamento das coletâneas de contos Caroço de dendê (2008 [1996]) e Histórias que a minha avó contava (2004), Mãe Beata atraiu o interesse de estudiosos da literatura assinada por afrodescendentes, (SILVA, 2010; EVARISTO, 2011; FREITAS, 2014; RODRIGUES, 2016a) tendo sido comparada ao prolífico contista Mestre Didi (DUARTE, 2014, p. 30).

Além dos contos, a autora também produziu poemas e ensaios, a maior parte dos quais proveniente de sua fala e publicada em forma escrita na obra de Haroldo Costa (2010), Mãe Beata de Yemonjá: guia, cidadã, guerreira. Embora a pouca publicação de seus outros escritos justifique as lacunas críticas acerca desses textos, pelo menos um trabalho recente se atentou para alguns aspectos da sua obra ensaística, ressaltando uma prosa livre através da qual a autora reflete sobre temas como ancestralidade, candomblé, herança cultural, política e racismo. (RODRIGUES, 2016b)

O nome de Mãe Beata de Yemonjá consta em estudos antológicos da literatura afro-brasileira que a reconhecem como parte do grupo de autores que consolidaram o gênero (DUARTE, 2011, 2014). Nessas antologias críticas, a escrita de Mãe Beata é aclamada por “inaugura[r] assim uma autoria de mulher nos textos de tradição oral dos terreiros”, (EVARISTO, 2011, p. 32) bem como por ser “mantenedora da tradição das contadoras africanas que, na sociedade colonial, andavam pelas casas-grandes e senzalas narrando suas histórias” (PINHEIRO, 2014, p. 108). Por certo, em textos que traduzem a linguagem falada, a autora exprime uma sabedoria ancestral de origem africana, apreendida no decorrer de sua vivência como mulher negra e sacerdotisa do candomblé. Dessa religião afrodiaspórica, ela herda uma parte significativa de sua formação cultural. Do uso de termos da língua iorubá à representação literária de divindades, símbolos e tradições, a autora evoca a força artística dos iorubás fundamentada em crença na ascendência divina.

Em sua principal produção literária, a coletânea de contos intitulada Caroço de dendê, a autora tematiza sua própria formação cultural, o que se nota no subtítulo: “a sabedoria dos terreiros: como ialorixá passam conhecimento a seus filhos”. Sendo alguém que “fala e escreve como participante de seu contexto, reverberando saberes ancestrais herdados,” (RODRIGUES, 2016b, p. 321) Mãe Beata documenta narrativas orais colhidas ao longo de sua história de vida, cujos anos iniciais transcorreram ao pé de sua bisavó de origem nigeriana, em um engenho do Recôncavo Baiano. As histórias também materializam parte do patrimônio africano de sua família, “muito ligada aos preceitos do candomblé”, (apud COSTA, 2010, p. 49) bem como manifestam o vigor de sua experiência como filha e mãe de santo em terreiros de candomblé da tradição nagô ou iorubá na Bahia e no Rio de Janeiro.

1. O terreiro e seus termos

Segundo a antropóloga Juana Elbein dos Santos (2016), o terreiro abarca tanto o espaço urbano, com suas construções para uso público e privado, como o espaço virgem das árvores e fonte, conhecido como “mato”, equivalente à floresta africana. No terreiro, o espaço sob o controle humano convive junto com o espaço selvagem dos espíritos e orixás. A relação entre o urbano e o mato ocorre através de um mecanismo de intercâmbio entre divindades e humanos caracterizado pela realização de oferendas. Ao conter todos os elementos deste mundo, isto é, o àiyé, e também os altares para invocação das forças divinas que dominam a natureza e os espíritos ancestrais, ambos seres do òrun – ou o além-mundo –, o terreiro, com seus assentos e cultos, estabelece “a relação harmoniosa àiyé-òrun.” (SANTOS, 2016, p. 35) O que possibilita essa relação entre as formas de vida deste mundo e os habitantes do outro mundo é a energia vital denominada àse. Para Santos, àse equivale à “força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir”, sem a qual “a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade de realização”. (SANTOS, 2016, p. 40) Na tradição iorubá, àse corresponde a “um comando espiritual, o poder-de-fazer-coisas-acontecerem, a luz capacitadora do próprio Deus tornada acessível a homens e mulheres.” (THOMPSON, 1984, p. 5) Quem propulsiona o àse é o guardião do terreiro chamado Exu, ser divino a quem foi entregue o poder supremo “de conceder uma vontade, um desejo, uma oração, destino e fé.” (FALOLA, 2013, p. 6) Portanto, aquele que é mensageiro dos deuses e senhor das encruzilhadas entre os mundos divinos e humanos possui um poder transformativo sem igual, representado na cabaça dentro da qual ele guarda o àse.

Filha de Exu e também de Yemanjá, Mãe Beata ocupou a posição de sacerdotisa do terreiro, ou ìyálôrisà, que significa literalmente “mãe que tem conhecimento de orixá”. (BENISTE, 2011, p. 413) Ilê Omi Oju Aro (A Casa da Água dos Olhos de Oxóssi), nome de sua casa de candomblé, faz referência à cidade de Arô, por onde Oxóssi andou e de onde provém a família de Mãe Olga do Alaketo (Oyá Fumy), descendente da realeza Ketu e dos fundadores de um dos primeiros templos do candomblé na Bahia. Mãe Olga foi uma grande amiga e mentora de Mãe Beata, que se referia à detentora da dignidade real iorubá simplesmente como “Minha Mãe Olga”. Responsável por encorajar a dedicação de Mãe Beata ao candomblé, Mãe Olga representa uma presença ancestral constante no terreiro: “O retrato de Mãe Olga está na parede do meu terreiro, em lugar de destaque, como tinha de ser. Quando eu bato os atabaques, sei que ela está aqui comigo.” (apud COSTA, 2010, p. 93) Após a construção do Ilê em 1985, consagrada por Mãe Olga, Beatriz Moreira Costa tornou-se Mãe Beata, iniciando um “novo capítulo” em sua vida, o que incluía “observância do ritual e acolhimento de vários filhos e filhas de santo”, além de “trabalho comunitário” e envolvimento em “questões pertinentes à cultura popular na qual o negro está inserido.” (apud COSTA, 2010, p. 104) Como autoridade suprema do terreiro, a ialorixá guardou um legado de tradições apreendidas ao longo de sua vivência, o qual manifesta a continuidade de uma sabedoria ancestral de origem africana preservada por meio de conhecimentos e experiências relativos às práticas religiosas que são transmitidas aos iniciados.

Assim, a ìyálôrisà se faz ìyálàse, isto é, “‘mãe’ do àse do ‘terreiro’”, recebendo, herdando e irradiando “toda a força material e espiritual que possui o ‘terreiro’ desde a sua fundação”. (SANTOS, 2016, p. 44-45) Seu zelo pelo sagrado inclui a administração de todos os elementos ritualísticos e cerimoniais bem como a preservação do àse, que constitui a energia que vitaliza o terreiro.

Em sua obra seminal acerca de uma tradição negra de uso da linguagem e interpretação, The Signifying Monkey, o crítico estadunidense Henry Louis Gates, Jr. diferencia àse de uma palavra comum: “Àse é [um termo] mais sério, assertivo e repleto de ação em comparação com a palavra comum. É a palavra com irrevogabilidade, reforçada com dupla asserção e autenticidade intrépida” (GATES, 1989, p. 7). Encontra-se aqui um tropo retórico negro cuja principal referência enunciativa é Exu, o qual, como afirma Gates, “é a figura iorubá do metanível de uso da linguagem formal, do status ontológico e epistemológico da linguagem figurativa e sua interpretação” (GATES, 1989, p. 6). Ao comparar Exu com o mensageiro e intérprete das divindades gregas Hermes, de cujo epíteto deriva a palavra “hermenêutica”, Gates propõe a associação do nome do orixá aos “princípios metodológicos da interpretação de textos negros”, fazendo referência a uma expressão iorubá de autoria do escritor nigeriano Wole Soyinka para descrever os prolegômenos de uma teoria literária afrodescendente: “Esu-’tufunaalo, literalmente ‘aquele que desvenda os nós de Exu’” (GATES, 1989, p. 9). A figura de Exu, a metáfora afrodiaspórica da crítica literária, tradução e interpretação, aponta a encruzilhada como princípio hermenêutico a partir do qual as literaturas de afrodescendentes podem ser lidas em toda a sua complexidade cultural.

2. Encruzilhadas enunciativas

A literatura de contos de Mãe Beata provém de uma linguagem oral e contada que, em determinado momento, foi traduzida para a linguagem escrita com a publicação de Caroço de dendê (2008 [1996]) e Histórias que a minha avó contava (2004). Como já notou Conceição Evaristo, essa “‘tradução’ de uma linguagem falada” na obra de Mãe Beata “implica a modificação do próprio ato de ‘contar’”, pois altera a narração e remove a narrativa de seu contexto religioso e ritual (EVARISTO, 2011, p. 32). Portanto, nas pesquisas acerca de sua obra, a crítica deve se situar na encruzilhada entre a fala e a escrita, desatando os possíveis nós interpretativos decorrentes da transposição de um texto performático, grafado na memória e no corpo de uma ialorixá, para um texto escrito, dedicado a registrar os ensinamentos da cultura afro-brasileira para a posteridade.

Quando entrevistei Mãe Beata, em 25 de setembro de 2015, ela autografou o meu exemplar de Caroço de dendê, com o desenho de um peixe nas águas feito com traços que se cruzam, desejando-me axé, carinho e bênção. Durante a entrevista, uma pessoa da região precisou se dirigir a ela e a tratou como “Dona Beatriz”, diferentemente de mim que utilizei o pseudônimo “Mãe Beata” em toda a conversa, sem deixar de notar um leve grau de estranheza em minha interlocutora.

Em sua dedicatória, ela assinou de modo duplo: “Beatriz Moreira Costa”/ “Mãe Beata de Yemonjá”. Além disso, ela abriu o livro no conto “O caroço de dendê” e escreveu as seguintes palavras: “Mãe Beatriz tudo diz/ porém Deus é quem sabe/ Seja feliz...” Nessa singela fala, confluem a voz de Mãe Beata, que “tudo diz”, e o saber da divindade suprema, ou Olorum, que tudo “sabe”.

Essa experiência revela a importância da duplicidade discursiva na leitura dos textos de Mãe Beata, ressoando uma tradição negra que Gates identificou como “duplamente expressa” (double-voiced) (GATES, 1989, p. xxv). A partir da fala da autora, infere-se que o dizer humano e o saber divino estão entrecruzados em histórias que manifestam o princípio estético do “meio”, onde se localiza a beleza na tradição iorubá. “A beleza”, como afirma um historiador de arte africana, “é vista no meio (iwontúnwonsi) – em algo nem tão alto ou baixo, nem tão bonito [...] ou feio” (THOMPSON, 1984, p. 5).

Apreciadores do frescor e da improvisação, os iorubás, considerados uma das mais urbanas civilizações africanas tradicionais, geraram “uma força artística” que floresceria entre os séculos X e XII, produzindo arte que provocaria o espanto dos ocidentais (THOMPSON, 1984, p. 3-5). Esse urbanismo artístico legaria uma sólida visão de mundo estética aos seus descendentes, muitos dos quais, embora submetidos à condição de escravos no Novo Mundo durante o colonialismo europeu, jamais abandonariam a crença em sua ascendência divina e em seu lugar de origem sagrado, a cidade de Ilé Ifè. Ao sacralizarem aquilo que podiam em situações adversas como pessoas escravizadas, esses filhos de deuses e deusas traduziriam sua africanidade em várias formas, fundindo, de modo criativo, suas tradições com novos elementos.

3. Sabedoria ancestral: notas do caroço de dendê

A sabedoria dos terreiros de candomblé, evocada por Mãe Beata, constitui uma das mais expressivas correntes filosóficas desse mundo afrodiaspórico. Ao articular uma linguagem própria, que consubstancia oralidade, palavras e conceitos africanos (iorubás, mas também bantos) bem como língua portuguesa em sua versão (afro-)brasileira, Mãe Beata produz contos carregados de uma episteme que diz respeito à vivência cultural de sujeitos ligados à religião dos orixás. Entretanto, a moral da história, quando vocalizada, oferece reflexões para além dos limites religiosos, universalizando seus ensinamentos.

Divinos, humanos, animais, vegetais, vivos ou mortos, os personagens das narrativas são localizados em seus próprios mundos, cumprindo ou descumprindo suas obrigações; falando o que não deveriam; sentindo-se tristes, assustados, desconfiados, envergonhados, ou felizes; duvidando e acreditando; respeitando e faltando com respeito; enganando, traindo, teimando. Desse modo, universos são criados e transformados por meio das ações de deuses e deusas; ancestres; homens e mulheres; bichos; vegetais; sementes – todos incorporando a força vital (àse), que equivale ao “poder de dar e tirar, matar e dar vida, conforme o propósito e a natureza de seu portador” (THOMPSON, 1984, p. 5-6). Essa espécie de lei da vida empodera verdadeiros artistas de seus mundos, cuja performance irrompe em meio à platitude de comportamentos divino-humanos. Quer boa, quer má, sua conduta desencadeia a instauração de cenários que explicam, interpretam e atribuem sentido à realidade.

Os 43 contos reunidos em Caroço de dendê abrangem uma temática que vai da relação dialética da humanidade com as divindades africanas, os ancestrais, os sacerdotes, a natureza, os elementos sagrados e consigo mesma à maneira como os seres do panteão iorubá interferem na dinâmica de mundos, pessoas, animais e vegetais, mantendo-os no mesmo plano metafísico.

No prefácio a Caroço de dendê, Zeca Ligiéro avisa que a divisão analítica dos contos de Mãe Beata não “é suficientemente abrangente para organizá-los adequadamente” (LIGIÉRO, 2008, p. 20), ventilando a insuficiência do agrupamento das histórias por assunto ou da separação delas em categorias, porquanto “[o]s contos de Mãe Beata são como formas aparentes ou visíveis de um todo quase indivisível”.

Ainda assim, no que tange ao gênero dos protagonistas das narrativas, um dado importante a se destacar é que a maioria deles é composta por mulheres. Elas são representadas como dionisíaca (“O samba na casa de Exu”), prenhe de um orixá (“O menino do caroço”), ancestral (“O cachimbo da Tia Cilu”), vítima de um homem (“O balaio de água”), devota (“A saia de taco”), mãe (“Iyá Mi, a mãe ancestral”), embelecida (“A pena do ekodidé”), orgulhosa (“A rainha mãe e o príncipe lagarto”), pretensiosa (“A mulher que sabia demais”), megera (“A filha que ficou muda porque fez a mãe passar vergonha”), justificada (“Tomazia”), burlada (“O mealheiro”), atraente (“Ayná”), acusadora (“Oyá Seju”), faladora (“Iyá Inâ”), ex-estéril (“Oxé, o ajudante das mulheres que queriam parir”) e grávida da própria autora (“Conto dedicado à minha mãe, do Carmo”). O equilíbrio entre as características positivas e negativas das protagonistas transparece na dialética moral em que Mãe Beata embasa seus escritos, a saber: “em tudo existe o mal e o bem. Um tem cumplicidade com o outro e, às vezes, o bem vence o mal” (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 41).

Observa-se a aplicação do mesmo princípio quando se atenta para os homens que protagonizam seus contos nesse volume. Eles são retratados como cruel (“As patacas malditas”), devoto (“O homem que se casou e queria ter filhos”), incrédulo (“O menino que tinha muito saber”), enganador (“O homem que queria enganar a morte”), desrespeitoso (“O colhedor de folhas”), teimoso (“O pescador teimoso”), humilde (“A fortuna que veio do mar”), e assassino (“O bem-te-vi falador”).

No entanto, por causa das consequências de suas ações, alguns deles se redimem ao final: o cruel termina a história generoso, o desrespeitoso se torna reverente e o teimoso passa a ser obediente.

Entre as divindades africanas, o nome que mais aparece é Exu. É a esse orixá que a obra abre pedindo licença, por assim dizer. Em “O samba na casa de Exu”, quem diz “Agô? Licença?” é a mulher que gosta de sambar, não cuida da família e bebe cachaça. Após ter a licença concedida para entrar na casa, ela desafia o “rapazola de chapéu panamá, roupa de linho bem engomada, que a espiava muito”, convidando-o para sambar. Na roda desse samba, no entanto, estava para entrar um dos mais poderosos orixás do panteão iorubá. Ao afirmar que a casa não era do misterioso observador, a mulher faz uma intimidação que não ficaria sem resposta. Além disso, ela está tão disposta a sambar que sai de casa dizendo que sambaria até com Exu. Dele, porém, ouviu o seguinte: – E quem lhe disse que a casa não é minha? Você não disse que hoje você sambava nem que fosse com Exu? (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 27) A dança dessa divindade evoca seu próprio poder divino, que pode se revelar perigoso, como se lê nas últimas palavras do conto:

Ele começou a sambar e deu um estouro bem no meio do samba e sumiu. A mulher caiu ali mesmo, desmaiada. De manhã o marido não achou a mulher na cama e saiu à sua procura. Ele achou a mulher caída numa encruzilhada, falando bobagens. Ela nunca ficou perfeita nem pôde mais sambar. (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 28)

Assim, o conto descreve Exu como um jovem bem vestido e espiador de quem nada escapa. Com seu chapéu panamá e roupa de linho bem engomada, o personagem se aproxima visualmente da figura de Zé Pelintra, alcunha através da qual uma variante da imagem afro-ameríndia de Exu ganhou reputação no Brasil associada à malandragem. (LIGIÉRO, 2011, p. 321-338) Como mestre da comunicação, o orixá reage à sua interlocutora com perguntas cortantes, reveladoras de quem ele próprio é. Se no jogo da dança há o risco de se ganhar ou perder, essa figura divina não busca nada menos do que sua vitória quando alguém a desafia. Apesar de sambar, sua dança é seguida de um estouro, signo de sua condição divina, provocando mudanças na mulher, que cai desmaiada e vai parar na encruzilhada, incapaz de se comunicar ou de sambar, dado que se colidiu com o mais temível dos deuses. Afinal, como já indagou um historiador nigeriano, “[s]e as divindades têm medo de Èsù, o que os humanos podem fazer?” (FALOLA, 2013, p.

5).

A cena de uma mulher invocando e provocando Exu também consta em “O menino do caroço”, protagonizado por uma gestante que não desejava dar à luz, chegando a ponto de bater na barriga e praguejar diariamente. Sua resposta à pergunta sobre o pai da criança é inusitada: – É Exu. (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 30) Embora repreendida pelas pessoas que veem o perigo de tal afirmação, a mulher sustenta que a paternidade de seu filho é de Exu, o orixá cuja iniciação nos terreiros é evitada por se tratar de uma “força incomensurável” que não seria assentada na cabeça de alguém sem lhe causar danos (SILVA, 2015, p. 36). Ao nascer, a “criança muito bonita” é dotada de um caroço no meio de sua cabeça, que pode se referir à característica cabeça pontuda da divindade (em forma de faca) que a impede de carregar qualquer fardo ou obrigação. Destaca-se a predileção do menino por azeite de dendê (epo) e cachaça (otí), dois dos principais elementos do padê (de ìpàdé: reunião, encontro) a Exu, rito por meio do qual se roga a essa divindade “que reúna ou propicie o encontro das partes que se acham separadas ou distantes: o leste do oeste, o norte do sul, a terra visível (aiê) da invisível (orum), os homens dos orixás, os vivos dos mortos” (SILVA, 2015, p. 136). O desrespeito do garoto pela mãe, a quem não atende, e pelos outros, nos quais atira pedra, corresponde com a personalidade controversa de Exu, o qual, a contrapelo das boas maneiras, tende a quebrar quaisquer convenções divinas ou humanas. Quando fica doente, sua mãe é aconselhada a fazer uma oferenda (ebó) em seu auxílio, pois seu comportamento seria “arte de Exu”. Enquanto prepara o trabalho, ela é surpreendida pelo filho, que ao chutar e comer aquilo que seria oferecido ao orixá, revela-se como a própria divindade, razão pela qual jamais havia reconhecido a mulher como mãe.

Susto, grito e loucura se sucedem. Por último, o desaparecimento do menino, deixando “um cheiro de pólvora no ar”, é um estouro que indica a gravidade da aparição e incorporação de Exu. Mais uma vez, entre o sagrado e o profano, irrompe a encruzilhada.

De acordo com o historiador das religiões Mircea Eliade, o que define o sagrado é a sua oposição ao profano, pois o ser humano “toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano” (ELIADE, 1992, p. 13). Para descrever a manifestação do sagrado, Eliade propõe o termo “hierofania”, significando que “algo de sagrado se nos revela” ou “manifestações das realidades sagradas”. Onde quer que se identifique a hierofania, isto é, onde quer que o sagrado se manifeste, a hierofania é sempre definida como aquilo “que expressa de certo modo alguma modalidade do sagrado e algum momento na sua história” (apud CAPPS, 1995, p. 143). Assim, a hierofania pode revelar algo sobre o sagrado e também servir como forma da atitude religiosa humana, pois se trata da “manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’” (ELIADE, 1992, p. 13). Por isso, um objeto sagrado, por exemplo, uma pedra sagrada, não é venerada como pedra, mas, sim, porque é hierofania, ou seja, revela algo que não é pedra, mas o sagrado, o totalmente outro.

No conto “A pena do ekodidé”, Mãe Beata revela que a hierofania, ou manifestação de um orixá nem sempre resulta em tragédia. A autora conta a história de “uma mocinha” descrita como “muito pobre e feia” (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 43). A protagonista vive em uma aldeia na qual há uma sociedade só de mulheres virgens, que eram compradas por homens de posse para se casarem com reis e príncipes. Sua formação se dá através dos ensinamentos das anciãs. A sorte da menina há de ser mudada, apesar de seu pai ser pessimista quanto ao seu futuro.

A mocinha, “muito triste” em razão de sua aparência, habita um mundo em que a beleza define o fado das mulheres, mas sua sina é transformada por uma mulher “muito bonita”, que lhe auxilia no momento de tristeza por sua condição. Em sono, a moça vê a mulher com uma cuia descrever um cenário futuro com um príncipe, do qual a mocinha fará parte ao seguir o ritual que receberia. A ela, são entregues o pó vermelho (ossum), o anil (waji), os quais deveriam ser passados no corpo; bem como a noz de cola (obi), para ser comida; e a pena do ekodidé, que serviria de adorno a ser utilizado na testa. Ao seguir todas as orientações, a moça provoca encanto no príncipe, que lhe escolhe como noiva. Sua resplandecente beleza desperta a admiração em todos. Após o casamento, sonha novamente com a mulher que lhe acudiu, que se revela como a divindade Oxum, fazendo jus à sua reputação de “deusa do amor” (THOMPSON, 1984, p. 80). No conto, quem define os preceitos relativos ao seu culto é o próprio orixá. A deidade conhecida por sua elegância e graciosidade prescreve os passos a serem seguidos e os segredos que devem ser guardados. Ao final, Oxum não revela apenas a sua identidade divina, mas também a da moça, que se descobre filha da divindade que contém o poder de gerar vida, pois “controla a fecundidade” (VERGER, 2002, p. 174). No desfecho, a mocinha “tornou-se uma princesa” por ser casada com um príncipe, mas, especialmente, por ser filha da “Rainha das Águas Doces” (LIGIÉRO, 2006, p. 93), título deífico daquela que no conto se manifesta como uma bela mulher.

A hierofânica pena do ekodidé, que dá título ao conto, não apenas faz referência a uma ave africana de penas vermelhas (ìkóóde ou odíde), mas também possui forte relação com Exu. Em uma narrativa iorubá, conta-se que todas as divindades foram ao céu com a intenção de descobrirem quem seria mais importante, cada uma com uma rica oferenda na cabeça, exceto Exu. Antes, sabiamente, o orixá havia consultado o deus da adivinhação, de quem ouvira que ele deveria levar uma única pena do ekodidé, a ser posta na sua testa, para, dessa forma, afirmar que ele não carregava fardos na cabeça. O orixá assim o fez. Em resposta ao poderoso sinal na fronte da divindade, o Ser Supremo, então, outorgou a Exu a força de fazer todas as coisas acontecerem e se multiplicarem (àse). Após receber esse poder, Exu ofereceu um banquete para celebrar seu mais novo prestígio, agradecer pela dádiva recebida e ameaçar quem não reconhecesse sua nova posição (THOMPSON, 1984, p. 18). O vermelho da pena que faz de Exu o decano dos orixás simboliza o próprio àse, isto é, o sangue vital que circula e gera vida. No texto fundador dessa narrativa iorubá, observa-se que a pena do ekodidé passa a emblemar o àse entre os outros orixás, manifestando o poder criativo e mimético representado na figura de Exu: “Por essa razão, todos os Òrìsà/ começaram a imitar seu costume/ colocando a pena ekódide/ como emblema de àse durante seus ritos de celebração anual/ ou como emblema de sacrifício propiciatório cada vez que eram realizados” (SANTOS, 2016, p. 203-204).

Na testa da personagem do conto de Mãe Beata, a pena do ekodidé é “enfeite”, ou seja, motif que desencadeia a ação criadora, o poder de fazer algo novo acontecer: “Atou a pena na testa com uma iko, uma palha-da-costa. Neste momento, vinha passando uma caravana com o príncipe. Ele olhou para a janela e, vendo a mocinha, ficou encantado” (BEATA DE YEMONJÁ, 2008, p. 43). Assim, em meio ao infortúnio da jovem, a diegese permite a eclosão da força criativa que mimetiza o gesto divino de se negar a carregar fardos, de maneira que haja sempre a possibilidade de reencanto da vida em todas as suas formas de beleza renovada.

Conclusão

Em suma, na obra de Mãe Beata, estão entrecruzados elementos de uma rica tradição narrativa africana oralizada, através da qual ocorreu a manutenção de referências simbólicas que contribuem para o contínuo processo de formação identitária negra no Brasil. Nos fragmentos ou ruínas de tradições que se recriaram na Diáspora Africana, com especial destaque para o Recôncavo Baiano, território que abriga a maior metrópole da “nação transatlântica” negra (MATORY, 2005, p. 40), sujeitos afrodescendentes como Mãe Beata revelam a vitalidade da produção cultural afro-brasileira e a traduzibilidade criativa de heranças africanas na contemporaneidade.

Com filiação a Exu, o “deus sem fronteiras” (FALOLA, 2013), e a Yemanjá, a “mãe de todos os seres vivos” (OTERO & FALOLA, 2013, p. xix), a autora assina textos que se caracterizam por sua fluidez de comunicação, muito próxima à figura dos “narradores natos” descritos por Walter Benjamin (2011, p. 200), o qual preconizou a extinção da arte de narrar com base na percepção da ausência de sabedoria em seu tempo. Por certo, a obra de Mãe Beata não apenas atesta que a narrativa não foi extinta em todos os espaços da contemporaneidade, mas também revela a resiliência política e a negociação de identidade de um sujeito cultural que desafia a persistência da ontologia social do colonialismo que, à força de um racismo bem estruturado, relega as mulheres negras às posições mais inferiores na sociedade brasileira, comprovando, portanto, os graves limites das democracias nos dias atuais.

Sendo fruto da memória e voz de uma mulher negra, a obra de Mãe Beata resgata aquilo que Gates (1989, p. 7), à procura de uma tradução para o termo àse, chamou de “palavra como som”, ou “palavra audível”. Na encruzilhada entre a fala que se faz escrita, Mãe Beata sonoriza um poder a que os sujeitos negros sempre recorreram em seu árduo processo de sobrevivência: o àse, que “desencadeia ação, influencia a realidade, invoca tanto quanto provoca, [e] faz coisas acontecerem” (AFOLABI, 2005, p. 108). Com esse poder de aprovação e autoridade, ela passa seus ensinamentos e sabedoria dos terreiros em forma de narrativas que para muitos ainda são inauditas.

Assumindo o “poder de narrar” (SAID, 2011), a escritora e ialorixá encontrou na sabedoria ancestral de origem iorubá do candomblé o arquivo cultural e vital para a produção de seus ensaios, poemas e especialmente contos. Quem ainda não leu “Caroço de Dendê” em algum momento terá a chance de se deliciar com histórias feitas de palavras que dançam da boca da narradora à audição leitora. Pela abundância de benignidade, engajamento e senso estético presentes nessa literatura corp-oral-escrita, a escritora merece ser reconhecida. Na fluidez dessa narrativa performática, está registrada a possibilidade da chegada da morte, renovação da vida e permanência da literatura: “Quando chegar a hora da minha partida, quando os donos do ayê me chamarem, eu morrerei contente e feliz. Sei que bebi dos ensinamentos de Gandhi, Luther King e Dalai Lama” (Mãe Beata de Yemonjá).

Referências

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Felipe Fanuel Xavier Rodrigues é doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde atua como Pesquisador Pós-Doutorando da Fundação de Amparo à

* Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Defendeu a primeira tese sobre a literatura de Mãe Beata de Yemonjá em comparação com a obra da autora estadunidense Maya Angelou.

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