Aspectos da sátira em Machado de Assis*

Paulo Sérgio de Proença**

Resumo

Machado de Assis, leitor atento e crítico da tradição literária, apreciou muito a sátira (cujo principal representante é Luciano de Samósata), que oferece meios para averiguação crítica dos fenômenos humanos que retrata. Três procedimentos da sátira são apontados:  exploração (anatomia), provocação e ironia instável. A sátira expressa a instabilidade e, como tal, aponta para a crise da representação e pode servir de suporte a ambiguidades e ambivalências, características da escrita machadiana. O aporte teórico é constituído por estes três autores, principalmente: Oliver (2008), Griffin (1994) e Sá Rego (1989).

Palavras-chave: Sátira; Machado de Assis; Luciano.


 Abstract

Machado de Assis, attentive reader and critic of literary tradition, has always very much appreciated satire (mainly in its most important representative Luciano de Samósata), and offers means to the critical discussion of the human phenomena it represents. Three procedures for the analysis of satire are presented: exploration (anatomy), provocation and unstable irony. Satire expresses instability, and as such, points to crises of representation and may work as the basis for ambiguities and ambivalence which are characteristic of Machado's writings. Theoretical support is found in three authors: Oliver (2008), Griffin (1994) e Sá Rego (1989).

Key words: Satire; Machado de Assis; Luciano.


1. Considerações iniciais

A obra de Machado de Assis continua despertando interesse. Apesar de ser o autor brasileiro que tem a maior fortuna crítica, ainda inspira pesquisadores a descobrir novas e desafiadoras abordagens de sua abundante produção literária.

Um intrigante – e, por isso mesmo, sedutor – aspecto de seus escritos é a presença da sátira e o papel ela que tem no conjunto de sua obra, em diversos desdobramentos: as relações com a ironia, o niilismo, a melancolia e o ceticismo que brotam de sua pena. A sátira enquadra o autor fluminense na moldura literária ocidental, em que se destacam Sócrates, Luciano de Samósata (sátira menipeia) e Swift, dentre outros, sem contar que trechos bíblicos são constantemente evocados.

Machado era leitor voraz e crítico de toda literatura (lato sensu) ocidental, em sua época conhecida; ele tinha no jogo intertextual e no diálogo frutífero com a tradição o que pode ser considerado estratégia de produção ficcional. Dentre outros críticos da mesma opinião, Merquior (1998, p. 36) reconhece que “Machado realmente cita com abundância, é o campeão de citações na literatura brasileira”.

A incorporação do discurso do outro será analisada com ênfase na utilização da sátira também em relação à crise da representação, sob enfoque particular da tradição menipeia. Oliver (2008), Griffin (1994) e Sá Rego (1989) contribuem para uma avaliação teórica desse fenômeno.

A sátira “se ocupa em insistir na nítida diferença entre vício e virtude, entre bem e mal, entre o que o homem é e o que ele deve ser” (Griffin, 1994, p. 36). Esse autor indica três elementos componentes da sátira: exploração (anatomia), provocação e ironia instável.

2. Sátira como exploração e investigação: a anatomia

Importante característica da sátira é explorar, pesquisar e clarificar um tema ou uma ideia. Satiristas, de forma geral, adotam o diálogo para essa finalidade. Diálogo e debate foram, sempre, importantes aspectos da sátira.

Uma investigação sistemática é anatomia, no sentido médico de dissecação. O termo liga-se mais a investigação do que a conclusão. Há, nesse caso, aproximação com Bakhtin; afinal, a sátira menipeia testa princípios filosóficos, sem incorporar a verdade (Griffin, 1994, p. 41). Acresça-se que, para Bakhtin, a menipeia é dialógica e polifônica.

Esse autor indica que a sátira como investigação se vincula à mudança experimentada pela retórica a partir do começo do século XVI, sob pressão da ciência moderna1. Para isso, o que importa não é só a prescrição de determinado comportamento para adequação moral a padrões vigentes em determinada cultura, mas o processo de exame e exploração das verdades socialmente estatuídas.

Ao termo anatomia como procedimento de investigação, muito peculiar a Machado, Sá Rego (1989) associa a noção de paradoxo e dá como exemplo típico da modalidade o “Conto Alexandrino”. Pelas informações desse conto, conclui-se que Machado se interessou pela tradição da anatomia, tendo feito pesquisas literárias e históricas sobre o assunto. Os nomes dos personagens do conto lembram personalidades históricas relacionadas à medicina e a viagens de exploração geográfica. Isso indica que há um fundo histórico que emoldura a narrativa, pois Herófilo (personagem do conto) foi médico famoso, o primeiro a dissecar corpos humanos para fins científicos. A anatomia pode ser metáfora para “análise minuciosa da alma humana, em busca não da descrição de ‘situações’, mas sim do estudo de ‘caracteres’” (Sá Rego, 1989, p. 109)2.

O recurso da anatomia é frequente e fértil em Machado. Os exemplos podem se multiplicar. “O Espelho”, “Teoria do medalhão” e “O alienista” são contos em que a técnica é notada. Outros tantos exemplos ocorrem também nas crônicas e nos romances.

No capítulo CXVII, “O humanitismo” das Memórias Póstumas, Quincas Borba, ao discorrer sobre a inveja, indica procedimentos adequados à aplicação técnica da anatomia, recomendando a Brás Cubas: “abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão subtil e tão nobre”. O humanitista vê nisso mesmo a superioridade do sistema por ele proposto. O método prescrito (abre mão, esquece, estuda) é necessário ao exercício da anatomia:

Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da inveja. O acordo é universal, desde os campos da Idumeia até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão subtil e tão nobre. (ASSIS, 2008, vol. 1, p. 732).

A universalidade enquadra termos espaciais e temporais, nacionais e religiosos. A Idumeia (lá-então) contrasta com o alto da Tijuca (aqui-agora). Esse contraste é comum em Machado. À Idumeia está associada a universalidade da inveja, “esse sentimento tão subtil e tão nobre”.

Outro exemplo significativo, mais ligado a fontes bíblicas, é o conto “A Igreja do Diabo”, para cuja construção a intertextualidade bíblica é generosa e essencial3. Essa moldura é explorada pela técnica da anatomia satírica.

Comecemos por apontar o título do capítulo III: “A boa nova aos homens”. “Boa-nova” é expressão que normalmente explica o sentido do termo evangelho. O capítulo III ocupa-se da pregação do Diabo, da exposição do seu “evangelho”. Evangelho contra Evangelho. É justamente disso que deriva a segunda ocorrência, na pregação e na técnica de manipulação usada pelo Diabo, descrita nos seguintes termos:

Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos...

— Sim, sou o Diabo, repetia ele. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (ASSIS, 1985, vol. 2, p. 349).

Essa tentação (no sentido semiótico) evoca a de Jesus: “Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4.8-9). Numa breve comparação, alguns termos se equivalem. Em “a igreja do Diabo” temos, como no Evangelho de Mateus, a manipulação condicionada à exigência de culto. O contraste radical entre os dois evangelhos serve à operação própria da anatomia, ao sugerir a possibilidade de nova abordagem, sob novo ângulo, do texto bíblico.

O Diabo apresentado pelo conto é a negação da tradição, que lhe atribui aspecto amedrontador. Ao contrário, ele se assume como o verdadeiro Pai da humanidade, não o pai castrador, mas o provedor de delícias: “Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai”4.

Ainda, o apólogo, narrado no final da terceira parte do conto, tem motivação bíblica:

— Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria. (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 351).

O trecho é inspirado em uma parábola bíblica, a da “ovelha perdida:

Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e nove, indo procurar a que se extraviou? E, se porventura a encontra, em verdade vos digo que maior prazer sentirá por causa desta do que pelas noventa e nove que não se extraviaram. (Mt 18.12-14).

A parábola bíblica tematiza o amor de Deus, que busca a ovelha perdida. No conto de Machado, a ênfase é oposta: cada um cuida de si, o que contamina a noção de amor, conforme este trecho:

A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 351).

No apólogo, o amor é virtude que precisa ser combatida, segundo o Diabo, ou, pelo menos, transformada: o amor ideal não é o do evangelho bíblico, mas o do diabo; de altruísta, passa a egoísta:

Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 350-351).

Por fim, apontamos a alusão a , que serve de motivo ao conto. Em comum, o diálogo-disputa entre Deus e o Diabo e as consequências vividas pelos seres humanos. O Diabo é também um espírito de negação, para quem a piedade de Jó era motivada apenas pelo interesse. Jó é temente a Deus porque recebe copiosa recompensa. O Diabo propõe que Deus o exponha a situações adversas, para testá-lo, no que Deus consente5. Então Jó sofre privações, misérias, dores extremas. As remissões à Bíblia são feitas de forma independente, com a finalidade de negá-las. O Diabo apresenta interpretação própria, para realçar a sua versão.

Quanto à interdiscursividade, predomina em “A Igreja do Diabo” o diálogo polêmico com o discurso religioso, em suas manifestações: doutrina, pecado, aparato eclesiástico. A noção de pecado, na verdade, pecado-virtude, é subordinada ao tema da contradição. Além dela, focamos a dissimulação, a venalidade, a disputa e a contradição como os principais temas interdiscursivos do conto.

A dissimulação tem um percurso temático muito bem construído, no final do conto, quando o Diabo verifica o fenômeno da contradição entre seus seguidores, do qual ele mesmo foi vítima – aliás, o mesmo mal que serviu de argumento para condenar os seguidores da igreja de Deus e formar sua igreja, no início do conto: até o Diabo é vítima da contradição humana! Parece que, para Machado, a dissimulação é, por assim dizer, uma virtude necessária ao convívio social. Em Memórias Póstumas, por exemplo, temos o caso do homem mais honesto conhecido pelo narrador:

Digo apenas que o homem mais probo que conheci em minha vida foi um certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares, não me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacó Rodrigues; em suma, Jacó. Era a probidade em pessoa; podia ser rico, violentando um pequenino escrúpulo, e não quis; deixou ir pelas mãos fora nada menos de uns quatrocentos contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e cansativa. Um dia, como nos achássemos, a sós, em casa dele, em boa palestra, vieram dizer que o procurava o Dr. B., um sujeito enfadonho. Jacó mandou dizer que não estava em casa.

– Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro. (ASSIS, 2008, vol. 1, p. 711).

Jacó afirmou que pensava ser outra pessoa, que tinha prazer com a visita. Quando o Dr. B. sai, Brás observa que Jacó, o homem mais probo que ele conhecia, mentira quatro vezes. Jacó conclui que, sem “embaçadelas recíprocas”, a vida seria insuportável6:

Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da minha observação, mas desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas [...] (ASSIS, 2008, vol. 1, p. 711)7.

No jogo de dissimulação, procura-se a acomodação entre o ser e o parecer.  É o ponto em que se apoia o Diabo, no trecho do capítulo II, em que se confundem “o livro santo e o bigode do pecado”, o ardor e a indiferença. No mesmo trecho, o conto fala da “placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda” (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 348).

A venalidade é o ápice a que o conto chega. Ela indica o papel que o dinheiro passa a ter na ordem social; é a máxima virtude da religião do Diabo:

A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 350).

O dinheiro subsume a essência do ser.  Os percursos temático e figurativo da venalidade impõem-se de forma convincente e não convencional: vender casa, boi, sapato, chapéu, opinião, voto, palavra, fé, cabelos, partes físicas – e não físicas – do corpo. E, se a venalidade combina com a hipocrisia, melhor ainda.

A Ilíada apresenta a disputa entre Aquiles e Agamenon8. Em “A igreja do Diabo”, a disputa ocorre entre Deus e o Diabo. A luta de novo se faz presente, por uma “supremacia, seja ela qual for”, como queria o menino Quincas Borba, nas Memórias póstumas9. Há enfática repetição de termos relativos à “disputa”:

Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja, uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 347)

Além dos termos referidos (“combate”, “destruí-las”, “contra”, “combatem”, “dividem”), há outros que se empregam para a composição do percurso temático e figurativo da luta e da disputa: “gesto magnífico e varonil”, “desafiá-lo”; “olhos acesos de ódio, ásperos de vingança”. O Diabo queria também a sua supremacia, a de uma igreja única.

A contradição é uma expansão da disputa, como polêmico resultado de forças antagônicas que atuam nos seres humanos. O bem e o mal são destinadores dos homens10, o que resulta em esquizofrenia, contradição insolúvel. Observe-se que, no conto, é Deus quem diz eterna contradição. A contradição eterna é figurativizada no manto de dupla constituição: ora de veludo com franja de algodão, ora o contrário; ou de algodão com franjas de seda: “Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova” (ASSIS, 1985, vol. 2, p. 351).

Em “A Igreja do Diabo”, a relativização dos conceitos de virtude e de vício é elevada a extremos, o que pode chocar o leitor não provido das motivações estéticas necessárias para a compreensão do procedimento literário motivador. Isso conduz ao engano de se pensar que o narrador está cavando uma trincheira moral, demarcando limites – quando, na verdade, ocorre o contrário: o narrador está borrando as fronteiras morais entre vício e virtude; ambos moram na “alma humana”: um à outra fornece estrume e flor.

O conto “Na arca” igualmente apresenta um tratamento anatômico da violência, focando suas motivações primárias e sua progressão geométrica. Elas conduzem à seguinte percepção: de dois irmãos litigiosos nascem povos que guerreiam entre si.

A paródia “O Sermão do Diabo” move o prisma da anatomia, também. Promove-se nela a máxima exploração econômica de um ser humano sobre outro, motivada pelo interesse de cumulação de bens materiais, para cuja finalidade valem todos os meios – e tudo sob a inspiração de um texto bíblico tomado às avessas.

Em Memórias Póstumas, pelo menos cinco capítulos (de XXII a XXXVI) giram em torno de pernas e de botas. O pano de fundo é um virtual relacionamento amoroso entre Brás e Eugênia, a “Vênus manca”. As pernas são imortalizadas em novo capítulo, o LXVI. A distribuição de um tema por diversos capítulos, quando operada pela técnica da anatomia e da intenção satíricas, tem o efeito de prolongar, na mente do leitor, pela insistência, as reflexões do narrador. O efeito disso é captar a atenção para o processo de anatomização, pela continuidade da exposição do leitor às considerações em foco. Em Dom Casmurro ocorre o mesmo; três capítulos sequenciais exploram a teoria da ópera, com a evocação da disputa primordial entre Deus e o Diabo11.

O uso da anatomia na construção de uma peça satírica é próprio da assunção de um ponto de vista distanciado, chamado kataskopos, que “como um espectador desapaixonado, analisa não só o mundo a que se refere como também a sua própria obra literária, a sua própria visão-de-mundo” (SÁ REGO, 1989, p. 46-47). Podem-se notar, sob esse aspecto, vínculos com Luciano, que tem as mesmas características12: “todos os seus escritos refletem, de uma ou de outra forma, a busca de um ponto de vista distanciado, uma rejeição de compromissos assumidos anteriormente, uma compulsão no sentido de colocar-se de fora para poder então olhar para dentro” (SÁ REGO, 1989, p. 53). Não por coincidência, esses elementos aplicam-se a Machado.

3. Sátira como provocação

Atualmente há razoável consenso entre os estudiosos da sátira no que diz respeito à sua função, entendida não como um julgamento de pessoas pelos seus vícios ou pelo ridículo, mas como questionamento de atitudes e opiniões, como instauração da dúvida e da descrença.

O paradoxo13 é recurso para atingir tal objetivo. Trata-se, segundo Griffin (1994, p.53), de “uma sentença contraditória na aparência que deve ou não provar ser bem fundamentada”. Opera a mudança da opinião aceita; ocorre quando o para-doxo desafia o orto-doxo. Esses elementos possibilitam a justaposição de contrários, de duplos que se negam e se complementam. “Paradoxo, então, deve servir como oportunidade para [...] expor erros vulgares, ou estimular um comportamento reflexivo” (GRIFFIN, 1994, p. 53).

Sá Rego registra o exemplo característico de Luciano, que duvidou de tudo, não aderiu a nenhuma opinião, desdenhando delas, usando-as quando serviam a um propósito, rejeitando-as em seguida (GRIFFIN, 1994, p. 55). Isso tudo se aplica integralmente a narradores de Machado, que, de fato, usaram ideias, citações e pensamentos para finalidades específicas, ao sabor das circunstâncias, do que o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas é exemplo. A não adesão a ideias e programas de qualquer espécie é marca machadiana, pelo que, aliás, não foi entendido por muitos e severamente censurado por outros14. O seu ceticismo, como já se notou, foi uma de suas características literárias15. Hansen (2006, p. 61) observa que “Machado de Assis é um mestre insuperado na sátira e na paródia que caracterizava a tradição luciânica”.  

Podemos recorrer ao conto “Adão e Eva” para nos referirmos ao emprego do paradoxo. Se Adão e Eva não pecaram, no conto, por que então não há esperança para a humanidade? Por que os seres humanos estão condenados? O conto evidencia as contradições entre o paradoxo e o ortodoxo, em polêmica com o discurso religioso que atribui a desgraça humana ao pecado original.

Em crônicas de maio de 1888, os narradores projetam luz para o paradoxo existente entre as ações particulares e as opiniões públicas dos senhores de escravos e as ações políticas em que estavam empenhados, além das vantagens, políticas e pecuniárias, que tinham intenção de auferir com a (falta de) liberdade dos escravos. Claro que há provocação embutida nelas, pelas evidentes contradições que portavam. Note-se que o paradoxo é mais do que um recurso que serve à provocação; é, de fato, uma consequência natural da exploração anatômica.

4. Sátira como ironia instável

A sátira, formalmente, apresenta mais do que anatomia e paradoxo, porque nem sempre o satirista resiste ao humor. Toca-se, então, o território da ironia. A ironia satírica é, em seus termos, instável; não pode ser entendida como um interruptor binário (liga/desliga), mas como um retórico dimmer, que permite um contínuo espectro de efeitos entre “Eu quase quero dizer o que eu digo” e “Eu quero dizer o oposto do que eu digo” (GRIFFIN, 1994, p. 65-66). Joga-se num terreno pantanoso, no qual faltam apoios necessários ao estabelecimento da ortodoxia.  A figura do dimmer é sugestiva para apontar dificuldades em se tentar determinar o grau da ironia (GRIFFIN, 1994, p. 66).

A instabilidade de que fala Griffin pode ser homologada à ambivalência e a ambiguidade, pois esses termos desestabilizam o recurso da referência linguística, básico para a construção de sentido. Nada mais próprio de Machado. Ambivalências e ambiguidades estão presentes, por exemplo, no narrador Brás Cubas, pelo contraste entre as visões de mundo do personagem e do narrador16.

Ambivalência e ambiguidade são irmãs gêmeas da ironia satírica, que se vincula ao riso e ao humor, desde os tempos dos gregos que, segundo Sá Rego, não designaram o que se chama sátira nem criaram formas fixas para sua expressão; o riso, na sátira grega, apresenta o satirista como spoudogeloion, “um personagem que através do seu riso – gelon – fala com seriedade – spoudaion” (SÁ REGO, 1989, p. 36).

E o riso é a manifestação de algo mais intenso, de natureza filosófica. É preciso “raspar a casca do riso” para penetrar nos seus mistérios, como propõe o cronista machadiano, em 26 de janeiro de 1885:

Há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro. Daí a acusação que me fazia ultimamente um amigo, a propósito de alguns destes artigos, em que a frase sai assim um pouco mais alegre. Você ri de tudo, dizia-me ele. E eu respondi que sim, que ria de tudo [...].(ASSIS, 2008, vol. 4, p. 580).

O riso volta a ser comentado na crônica de 4 de fevereiro de 1894, a propósito do carnaval. Ele não tem apenas profundidade filosófica; é próprio do homem, tem também uma dimensão antropológica e, por isso, é universal:

Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano. (ASSIS, 2008, vol. 4, p. 1044)

Bakhtin (1987) reconhece que na cultura da Idade Média o riso carnavalesco era um patrimônio universal e ambivalente, pois nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente17. Tudo que era terrível e espantoso no mundo habitual transforma-se, no mundo carnavalesco, em alegres espantalhos cômicos e serve para atenuar o impacto do medo, que é expressão de uma seriedade unilateral (BAKHTIN, 1987, p. 41). Acrescenta o teórico russo que o riso tem uma força criadora, conforme atestam mitos antigos:

A ideia da força criadora do riso pertencia também aos primeiros tempos da Antiguidade. Num papiro alquímico [...] que data do III século da nossa era, lê-se uma narrativa onde a criação e o próprio nascimento do mundo são atribuídos ao riso divino: ‘Quando Deus riu, nasceram os sete deuses que governam o mundo [...] Quando ele começou a rir, apareceu a luz [...] Ele começou a rir pela segunda vez, tudo era água [...] Na sétima vez (que ele riu, apareceu) a alma”. (BAKHTIN, 1987, p. 61).

A cultura do riso desenvolveu-se fora da esfera oficial da ideologia, embora nela se faça presente, ainda que mitigada. Conforme Bakhtin (1987, p. 62), “o riso [...] universal e alegre [...] penetrou decisivamente no seio da grande literatura e da ideologia ‘superior’, contribuindo assim para a criação de obras de arte mundiais, como o Decameron de Boccaccio, o livro de Rabelais, o romance de Cervantes, os dramas e comédias de Shakespeare [...]”.

Apesar de a seriedade religiosa tender a não tolerar o riso, a cultura medieval abrigava o risus paschoalis, constituído de performances parodísticas no interior das igrejas, durante a Páscoa. “Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz”. (BAKHTIN, 1987, p. 61; 1987, p. 68).

Além do riso, Sá Rego (1989) observa que a utilização sistemática da paródia é característica da tradição da sátira menipeia. Partindo da definição da paródia como canto paralelo, o autor indica que a obra de Luciano apresenta pelo menos três tipos principais de emprego de tal procedimento literário: a) paródia aos gêneros e a convenções da literatura passada e presente; b) paródia a temas e ideias da literatura e da vida social contemporânea; c) paródia a textos definidos, por meio de citações literais ou quase literais, geralmente em um contexto distinto daquele do qual a passagem em questão teria sido apropriada (SÁ REGO, 1989, p. 52).

Quanto à paródia de textos específicos, há pelo menos duas muito representativas. Uma é paródia da Missa Campal, de maio de 1888, alusiva à Abolição. A outra está inserida em crônica semanal de Machado de Assis, intitulada “O Sermão do diabo”, publicada em 1892, no jornal Gazeta de Notícias; trata-se de paródia do conhecido “Sermão do Monte”, registrado no Evangelho de Mateus (Mt 5). Vejamos o começo da peça:

1º. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.

2º. E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes.

3º. Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.

4º. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.

5º. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.

6º. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.

7º. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito.

8º. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

9º. Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar? [...]. (ASSIS, 2008, vol. 2, p. 620).

Corcovado provoca uma superposição espacial e temporal; o aqui e o agora se projetam no espaço e no tempo míticos. Contudo, há nova perspectiva que comanda essa inserção, pois a bem-aventurança é descrita em novas categorias. Os bem-aventurados do Corcovado não são mais os pobres, os pacificadores, os que têm fome e sede de justiça, conforme o evangelho bíblico; ao contrário, são os afoitos e os que enganam dolosamente e os privilegiados do money market. Na peça machadiana, a bem-aventurança é alcançada pela posse do dinheiro, obtido pela violência e pelo logro (“o vosso galardão é copioso na terra”); isso é afirmado com o apoio a recorrências temáticas e figurativas que asseguram coerência ao conjunto.

O uso literário da paródia repousa, igualmente, em rica tradição, como atesta Bakhtin (1987). Os jogos monacais a que se permitiam teólogos e eclesiásticos criavam liturgias paródicas, que se ocupam do culto e do dogma religioso: “Conhecemos a Liturgia dos bêbados, a Liturgia dos jogadores, a Liturgia do dinheiro. Existem também evangelhos paródicos: o Evangelho do marco de prata, o Evangelho de um estudante parisiense, o Evangelho dos beberrões [...] Encontramos muito cedo [...] testamentos paródicos: Testamento do porco, Testamento do asno” (BAKHTIN, 1987, p. 74).18

O riso da cultura medieval estudada por Bakhtin se ligava à liberdade, apesar de relativa, pois ocorria na circunscrição das festas populares; contudo, era projeção utópica que apontava para a vitória sobre o medo opressor, seja de ordem social, seja de ordem místico-transcendental: “Ao derrotar esse medo, o riso esclarecia a consciência do homem, revelava-lhe um novo mundo” (BAKHTIN, 1987, p. 78).

5. Sátira e crise da representação

Sá Rego demonstra que os textos de Machado apresentam as características da poética do lucianismo:

[...] o hibridismo genérico como meio de inovação artística; a utilização sistemática da paródia e de citações truncadas; uma extrema liberdade de imaginação e fantasia, em oposição à exigência da mimesis aristotélica; o caráter satírico não-moralizante do spoudogeloion [...]; e, finalmente, o emprego sistemático do ponto de vista irônico do kataskopos ou do observador distanciado. (SÁ REGO, 1989, p. 191).

Oliver estuda a obra de Joyce e Rabelais, sob esse ponto de vista19. Particularmente no que tange à paródia de motivação satírica, ela acrescenta: “a paródia menos rebaixa que distancia [...] Ela envolve uma crítica cuidadosa que inclui tanto o fator linguístico como o fator social e histórico” (OLIVER, 2008, p. 156). A paródia converte uma estrutura fechada em outra, aberta e permeável, dando ao texto-fonte outra dimensão em que há, em algum grau, jogo de deformação e de ironia. O autor acrescenta que a paródia é uma

[...] forma de solapar o mito em sua credibilidade. Vista sob o ponto de vista da sátira menipeia, a mitologia greco-romana ou judaico-cristã constituiu um repositório de ideias recebidas e preservadas de forma intocável. No caso da mitologia judaico-cristã, esse repositório é, além do mais, inquestionável, pois seus mantenedores são religiosos. (OLIVER, 2008, p. 165-166)

Ronaldes de Melo e Souza, em trabalho de fina argúcia crítica, alega que identificar a filiação de Machado à tradição menipeia é um reducionismo. Considerando particularmente as Memórias póstumas, avalia que:20

A multiestratificação estilística das Memórias póstumas é o efeito artístico do narrador multiperspectivado. E toda tentativa de filiar tal dispositivo literário a um determinado gênero, à sátira menipeia, por exemplo, como pretendem José Guilherme Merquior e Enilton de Sá Rego, resulta, ao fim e ao cabo, numa redução, e não numa explicação da complexidade da ficção machadiana. (SOUZA, 1998, p. 77).

Não deixa de ter razão o crítico por essas considerações, nem elas invalidam a perspectiva aqui adotada, pois não se pretende reduzir a obra machadiana a apenas um aspecto, o da tradição menipeia. Ela não se esgota por esse nem por outro único prisma de análise. A filiação, ainda que independente, à tradição menipeia, combina-se bem com a liberdade de que sempre Machado se serviu, diante das escolas literárias que conheceu e estudou. Aliás, essa liberdade é própria do movimento menipeu.

Machado tinha em sua biblioteca as Oeuvres complètes de Luciano e as cita diversas vezes. As técnicas de anatomia, de citações truncadas e de paródias foram aplicadas a diversos empréstimos, com fertilidade, alguns bíblicos; com recriação, reinterpretação e modificação, situam as sequências em novo contexto no qual adquirem significados inesperados. O escritor brasileiro percebeu e viveu o que poderíamos chamar de crise da representação; tinha consciência da precariedade que então havia no que diz respeito a métodos de composição literária vigentes. Fischer atesta o fenômeno com propriedade:

No Ocidente como no Brasil, acabara o tempo da formulação romântica, acabara o tempo em que fazia sentido para o autor de relatos fabular sobre a identidade nacional segundo a regra mimética (romântica) e sobre heróis que atuavam positivamente no mundo, o tempo em que fazia sentido para o leitor o dispor-se à leitura de tais fábulas e o de aceitar o desempenho daquele personagem. Acabara o tempo, portanto, em que a posição da voz enunciadora do relato podia manter-se em posição serena, inquestionada, a partir da qual todo um mundo era criado. (FISCHER, 1998, p. 161).

Esse fenômeno pode ser notado nos narradores machadianos que passaram da terceira pessoa, com os recursos da onisciência, para primeira. Já em “Instinto de nacionalidade”, Machado indicava as limitações do projeto narrativo romântico e, posteriormente, na famosa crítica a “O primo Basílio”, de 1878, diz que o realismo “só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha [...] Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética” (ASSIS, 1985, vol. 3, p. 904)21.

A crise da representação fez com que Machado experimentasse novas alternativas, o que provocou férteis resultados, não só na sua produção ficcional, mas também na leitura da realidade de seu tempo histórico, por exemplo, na noção de nacionalidade, de brasilidade, avaliada sob o crivo da juventude do país, ainda sem autonomia, principalmente no campo da Literatura. Evidência da lucidez com que compreendia os fenômenos que afetavam social e politicamente o homem de seu tempo pode ser a forma com que avaliava a ciência, que começava a seduzir os moços. No citado ensaio “A nova geração” não vê na ciência fator de humanização:

[...] a nossa mocidade manifesta certamente o desejo de ver alguma coisa por terra, uma instituição, um credo, algum uso, algum abuso; mas a ordem geral do universo parece-lhe a perfeição mesma. A humanidade que ela canta em seus versos está bem longe de ser aquele monde avorté de Vigny — é mais sublime, é um deus. [...] A justiça, cujo advento nos é anunciado em versos subidos de entusiasmo, a justiça quase não chega a ser um complemento, mas um suplemento; e assim como a teoria da seleção natural dá a vitória aos mais aptos, assim outra lei, a que se poderá chamar seleção social, entregará a palma aos mais puros. É o inverso da tradição bíblica; é o paraíso no fim. (ASSIS, 2008, vol. 3, p. 1259).

Há nisso consciente crítica ao darwinismo social, avalizador de injustiças, historicamente construídas (não naturais); com isso, verifica-se que Machado via com muitas reservas as teorias filosófico-científicas de seu tempo e a ilusão ingênua a partir da qual “a ordem do universo” (qualquer que fosse ou qualquer que pudesse vir a ser) poderia, de alguma forma, se associar à “perfeição mesma”. Não estaria nisso uma motivação adequada para o niilismo e o ceticismo de Machado, tão decantado pela tradição crítica?

6. Observações finais

Machado, como leitor atento e crítico da tradição, incorpora autores e obras, de forma livre, não somente para a elaboração do suporte linguístico de seus escritos, mas também para dissecação satírica dos grandes temas de sua época com que se defrontou (a venalidade, por exemplo; ainda é a deusa mais incensada nos altares de nossos interesses e consciências); para isso, tomou estratégico distanciamento para a observação dos fenômenos sociais analisados e retratados em seus escritos; apontou a instabilidade própria dos projetos humanos (materializada em ambiguidades linguísticas), em decorrência da percepção dos efeitos satíricos em questão.

A sátira, assim, é forma de compreensão e avaliação crítica da realidade e das inconsistências da ordem humana. Os elementos de que se serve são, dentre outros, a paródia e o riso, aqui mais particularmente considerados. Além disso, não é estranho certo ceticismo e certo niilismo, necessários à iconoclastia das verdades estabelecidas, ao borrar fronteiras morais, ao desmascarar as estruturas materiais e ideológicas, historicamente construídas. Significativa, nesse aspecto, é a utilização paródica de textos bíblicos, normalmente invocados para a sacralização do arranjo social e bênção aos detentores do poder.

A crise de representação com que Machado conviveu pode ter hoje outras dimensões, mas a crise, enquanto tal, ainda nos acompanha. Frente a ela, a sátira e a literatura machadiana podem ser ferramentas para compreensão mais coerente de nós mesmos, de nosso próprio tempo e mundo; podem, ainda, ser meio e motivação para transformá-lo...

Referências

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Notas

[1] Na Velha Retórica prevalece a comunicação do que se sabe (transferência de conhecimento). Na Nova Retórica importa mais a exploração (descoberta da verdade). Isso tem eco em Bakhtin, na diferença entre monologia (posse da verdade) e polifonia/ dialogia (busca da verdade).

[2] Contraste de caracteres é o que Machado propõe fazer quando publica seu primeiro romance, Ressurreição, conforme ele indica na “Advertência” à obra: “Não quis fazer romance de costumes: tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres” (Assis, 2008, vol. 1, p. 236).

[3] Há no conto outros desdobramentos intertextuais: Goethe, Homero, Rabelais, Antonio Diniz, autor do poema “Hissope”, e Luculo. A maioria desses autores e obras está ligada aos pecados capitais - virtudes da igreja do Diabo. A exceção é Goethe, que tem conexões com o livro bíblico (duelo entre Deus e o Diabo). Autores e obras são vinculados à história, ao pecado, ao sofrimento e à contingência própria dos seres humanos.

[4] A anatomia, no caso, pode ser resultado não só de rigor metodológico, mas também de uma constatação, o que projeta o resultado sugerido para o campo das relações entre ser e parecer. Hipótese por hipótese, aplicando a esse raciocínio a técnica apresentada, bem pode ser o contrário. Assim, topamos com a possibilidade efetiva de que as coisas podem ser diferentes.

[5] Na prática, ocorre uma anatomia, no livro de Jó, operada pelo Diabo. Em termos semióticos, o Diabo é o destinador de Deus. Por outro lado, há contra manipulação, sustentada na confiança do destinador na competência do sujeito e na segura adesão ao contrato original – o proposto por Deus. Esse jogo entre Deus e o Diabo provoca trágicas consequências aos seres humanos, que pagam alto preço por tudo. Esse é o pano de fundo trágico que é percebido e explorado por Machado.

[6] Jacó é conhecido nome bíblico, ligado a engano; é irmão gêmeo de Esaú, a quem engana para obter a bênção do pai e o direito de primogenitura, no que foi ajudado pela mãe.

[7] O “Sermão do Diabo” tem um de seus versículos que proclama a bem-aventurança dos que enganam: “Bem-aventurados os que embaçam, porque eles não serão embaçados” (Assis, 2008, vol. 2, p. 620). Essa paródia foi inserida na crônica de 4 de setembro de 1892 e incluída na coletânea Páginas recolhidas, de 1899.

[8] Ao falar da ira, motivo da Ilíada, o conto evoca Aquiles. A ira, de pecado capital passa a virtude; daí o realce intertextual. Em Esaú e Jacó, o conselheiro Aires compara os gêmeos Pedro e Paulo aos heróis Aquiles e Ulisses. Um tem a astúcia; outro, a força. São opostas no romance indicado, mas, se se combinam em uma pessoa, melhor, como se pode perceber no seguinte trecho, sobre a definição de fraude: “Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo” (Assis, 1985, vol. 2, p. 350). Ora, como a fraude é filha da astúcia, os dois trechos se complementam.

[9] No capítulo XIII das Memórias, o narrador fala de Quincas Borba e de sua propensão a obter supremacia, desde pequeno: “Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade [...] Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse [...].” (Assis, 2008, vol. 2, p. 644).

[10] Na tragédia (grega) ocorre o mesmo fenômeno: a destinação dupla causa a tragédia, pois adesão a um destinador implica punição pelo outro.

[11] A teoria da ópera é uma alegoria inspirada em Luciano, segundo a qual o mundo é concebido como resultado de dois princípios, ordem e desordem. O tema da queda do paraíso não é luciânico; é judeu-cristão. Contudo, em Icaromenipo, Menipo menciona coro e cantores que querem impor sua melodia, de que resulta uma “cacofonia”. A diferença em relação a Machado é que este menciona a criação, Deus, Diabo; há uma volta à mitologia cristã – a desordem, porém, permanece a mesma.

[12] Luciano de Samósata (115[120?]-181?) inspirou escritores como Rabelais, Swift e Machado. Defendia o riso filosófico de natureza satírica.  Escreveu o Diálogo dos Mortos, em que reis e nobres, depois de mortos, viram mendigos. Na obra Acusado duas vezes, Luciano é o autor e o réu, acusado pela Retórica e pelo Diálogo. Este, acusando, diz que Luciano “lhe arrancou a máscara trágica e respeitável, aplicando-lhe uma outra, grotesca, cômica, satírica, quase ridícula, trazendo-lhe as anedotas, o cinismo [...] que ridicularizavam tudo o que é sério e honesto [...]. Personagem frequente nos Diálogos dos Mortos é Menipo, que viveu no século IV a.E.C. em Gadara (Síria). Ele criou a “sátira menipeia” e fez da religião e da filosofia epicurista alvos de suas sátiras.

[13] A aporia dos diálogos socráticos deve ser considerada. O filósofo insere-se na tradição cínica. Além disso, se não inaugura, com suas aporias, a exploração do paradoxo, consolida procedimento essencial aos satiristas. Para Griffin (1994, p. 54), “o paradoxo é provocativo porque parece absurdo ou porque desafia a opinião recebida”. É isso o que ocorre na aporia socrática.

[14] Para parte da crítica, Machado seria um escritor que, de forma servil, apenas copiou modelos e tradições literárias estrangeiras. É o caso de Sílvio Romero (1992, p. 14), para quem “Machado de Assis se fez o mais perfeito exemplo de ‘arianização’ e de civilização da nossa gente. Na língua. No estilo. E na sua concepção estético-filosófica escolhendo o tipo literário inglês, que às vezes rastreou por demais, principalmente [...] Sterne. Nisto, aliás, escapou a Machado de Assis que, de alguma forma, ele estava ‘mulatizando’”.

[15] Maia Neto (2007) estuda o ceticismo como visão de mundo filosófica de Machado.

[16] Isso é comum em memórias, nas quais há considerável hiato temporal entre os fatos narrados e o momento da narração.

[17] Discini (2006), em interessante ensaio sobre carnavalização, aponta as principais características da cultura do grotesco medieval (dentre elas o riso regenerador), associando a isso a noção de polifonia bakhtiniana.

[18] Bakhtin (1987, p. 82) alerta que os autores das paródias dos textos sagrados e do culto religioso aceitavam com sinceridade esse culto e o serviam com fidelidade. Acrescenta que não havia nenhum texto ou sentença da Bíblia de que não se tirava uma alusão ou uma ambiguidade suscetível de ser traduzida na linguagem do baixo material e corporal (Bakhtin, 1987, p. 74).

[19] No geral, o que a autora diz sobre as características da sátira menipeia observáveis em Joyce e Rabelais pode ser aplicado a Machado, por ela estudado, também. Machado não reproduz simplesmente uma tradição. Ele a recria, incorporando elementos próprios de sua cosmovisão.

[20] Souza refuta, com argumentos convincentes, a proposta teórica de Roberto Schwarz de caracterizar o narrador machadiano, particularmente Brás Cubas, de volúvel e, nisso, representar, sob o ponto de vista literário, a elite da época. Para Souza, as voltas do narrador merecem outra abordagem, inspirada ao teatro, que possibilita a representação de múltiplos papéis, na recuperação etimológica de mimesis.

[21] Conforme realça Hansen (2006, p. 73) “a ficção não é a vida empírica” nem a reprodução dela; essa confusão realista-naturalista não se deu conta de que a “ficção imita outra coisa, os discursos que regulam a vida”. 


* Artigo publicado originalmente em Capoeira - Humanidades e Letras, v. 1, 2015, p. 61-77.

** Paulo Sérgio de Proença é Professor da área de Língua Portuguesa na UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês (BA). É autor, entre outros, de Sob o signo de Caim: Machado de Assis e a Bíblia (2015), O Diabo protagonista em Machado de Assis: dilemas da eterna contradição humana (2017) e de O protagonismo do Diabo em Machado de Assis (2018). Em 2019, concluiu estágio de Pós-doutorado junto ao Programa de Pós-graduação em Letras, Estudos Literários, da UFMG.

 

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