A revolução e a pedagogia do possuído no romance Oiobomé, de Nei Lopes 

John Maddox*


Nei Lopes (nascido em 1942, Irajá, Rio de Janeiro) é muito mais do que um sambista.1 De fato, é um pensador afrocêntrico com muitos interesses, um romancista e um autor de textos que educam o povo brasileiro sobre a história negra. O presente ensaio proporciona um resumo bio-bibliográfico do autor e uma análise de como seu romance Oiobomé: A epopeia de uma nação (2010) representa o que pode considerar-se uma “pedagogia do possuído”, um afrocentrismo que possui semelhanças com o livro clássico de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido (1968). O romance propõe uma “pedagogia do possuído” para reimaginar o concurso da história brasileira, baseando-a menos em ideias europeias e muito mais em quilombos, tradições religiosas que incluem a possessão dos crentes e outras formas de criatividade e resistência afrodiaspóricas. Lopes se inspira em Palmares e as Revoluções Haitiana e Cubana. Esse romance é particularmente importante para o país com a maior população negra das Américas (GATES, 2011).


1. Nei Lopes: Música e letras

A cultura é central para a emancipação e a memória cultural afro-brasileiras. Lopes ganhou fama através da música enraizada nas culturas sub-saharianas e as tradições da diáspora africana. Começou a gravar sambas em 1972 e iniciou sua carreira como solista com Negro Mesmo (1983) (FAUSTINO, 2009). Seu afrocentrismo é evidente em alguns dos títulos de seus discos dos anos 80, 90 e 2000: A Arte Negra, de Wilson Moreira e Nei Lopes, Canto Banto, e Partido ao Cubo (FAUSTINO, 2009). Esse último brinca com “Partida para Cuba”. A música de mesmo nome inclui os versos “O samba mandou chamar / a rumba / e casou com ela” (LOPES, 2004, n.p.). Por isso, Lopes reúne o samba com suas raízes africanas e também com uma consciência diaspórica, como nos seguintes versos:


A festa foi na favela
E amanheceu no solar
Na mesa posta ao luar
Ají guaguao no tempero
Som cubano e brasileiro (LOPES, 2004, n.p).


Ele tem dedicado sua carreira, em parte, à educação sobre as origens africanas da cultura popular do Brasil, como no concerto televisionado Sambeabá - O samba que não se aprende na escola, o que compartilha seu título com um estudo afrocêntrico do autor sobre o assunto (FAUSTINO, 2009).

A consciência diaspórica de Lopes tem influenciado tanto sua música como sua bibliografia extensa de pesquisas e ficção literária sobre os afrodescendentes no Brasil. O samba, na realidade (1981) seguiu o estudo linguístico/antropológico Bantos, Malês e identidade negra (1988) (FAUSTINO, 2009). Esse último mostra que os bantos no Brasil eram tão sofisticados como os malês (muçulmanos alfabetizados), mas se diferenciavam em relação às manifestações culturais (LOPES, 1988). Publicou o Dicionário banto do Brasil (1996), baseado no seu trabalho de campo na África Ocidental (FAUSTINO, 2009) para impulsionar a educação sobre a afrodescendência. Ele também escreveu o Dicionário escolar afro-brasileiro (2006), para fazer das particularidades linguísticas e as contribuições culturais do negro mais acessíveis ao aluno (FAUSTINO, 2009). Seu amor pela história, literatura e cultura resultou na Enciclopédia da Diáspora Africana (2004), livro de referência que inclui as biografias de ícones negros do mundo inteiro (FAUSTINO, 2009). Seu O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (1992) continua a refletir sobre re-africanização da música popular (FAUSTINO, 2009). Oiobomé foi seu primeiro romance e depois veio Rio negro, 50 (2015). As vinhetas da segunda obra contam cinquenta anos da história carioca desde o ponto de vista de personagens negros. Seu trabalho em prosa começou com crônicas como Casos crioulos (1987) (FAUSTINO, 2009). Também publicou Contos e crônicas para ler na escola (2015), o que indica que na sua escrita, ele procura não só entreter mas também educar sobre as raízes negras da identidade nacional. Lamentavelmente, sua narrativa ainda é pouco estudada. Parece que os escritores negros são melhor vistos quando são músicos e não quando são intelectuais que questionam a narrativa hegemônica da democracia racial e criam novas identidades afrodescendentes.2


2. Oiobomé - Resumo do enredo

Oiobomé, apesar de suas 223 páginas, narra toda a história de uma nação hipotética. O liberto carioca Francisco Domingo Vieira Dos Santos funda essa comunidade na ilha de Marajó. Seus habitantes originais são quilombolas negros e indígenas que ele convida a morar lá. O fundador é filho de jejes e nagôs, neto do rei de Abomé do império de Daomé. Dos Santos é um dos inconfidentes junto com Tiradentes em 1789, só que o herói quer liberar todos os negros escravizados. Quando Tiradentes vai preso,  Dos Santos foge para o Grão Pará. Ele, então, chega a um acordo com os indígenas locais para usar essas terras. O nome do novo país combina os nomes de dois reinos originários de grande parte dos africanos escravizados: Oyo (dos iorubá) e Abomé (dos daomeianos). Seu estilo de governo sincretiza as dinastias africanas com as ideias ocidentais de ordem e progresso.

Oiobomé é um Sião para a diáspora africana nas Américas, mas sua história é tempestuosa. A abolição do tráfico transatlântico de cativos adiciona mais exilados à população da nova nação em 1807. Refugiados dos Estados Unidos, as Bahamas e Jamaica também vão.

No século vinte, Oiobomé se desenvolve num estado-nação moderno. Eles codificam a língua oiobomense, um crioulo com base portuguesa mas que é ininteligível para os brasileiros. Há avanços nos direitos das mulheres e o alfabetismo. Infelizmente, Oiobomé entra em decadência até o dia que um furacão destrói sua capital.

A nação se recupera e vira uma utopia negra. Após a morte do seu maior líder, Apurinã, uma monarquia constitucional é estabelecida sob o reino da rainha lésbica Afra-Ramana I e sua Primeira Dama, a Primeira-Ministra Malvina Jackson dos Santos. Inspirada por Fidel Castro, Jackson dos Santos dissolve o parlamento e assume administração direta. Há alfabetismo e assistência médica universais, e o matrimônio homossexual é legal.

 

3. Uma utopia afro-brasileira

Oiobomé interage com outras nações históricas de uma maneira geralmente plausível até chegar ao “final” da sua história, a conclusão das suas tensões de classe e raça e seus conflitos com as superpotências mundiais. A história do arquipélago segue uma grande narrativa baseada nos conflitos entre raças, classes e nações que é influenciada pela Filosofia da História (1830) de Georg Friedrich Wilhelm von Hegel (1830) e O Manifesto Comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels (1848). Esses três filósofos imaginam a história como o desenvolvimento e a decadência de civilizações a base de lutas que chegariam, por meio de noções diferentes do progresso, até sua resolução. Deve ser curioso para alguns(mas) leitores(as) que Lopes apoie o comunismo castrista num romance de 2010. Isto é, foi publicado quase vinte anos depois da caída da União Soviética em 1991. Um texto que pode ajudar a entender o marxismo de Lopes é o ensaio Espectros de Marx (1993), de Jacques Derrida. O filósofo argue contra Francis Fukuyama, que considerou o ano de 1991 o “fim da história”, porque a democracia liberal ocidental tinha conquistado o mundo inteiro segundo a opinião do autor. Derrida resgata o marxismo, dizendo que o mundo ainda não resolveu os problemas centrais da desigualdade de classes que o Marx tenta resolver nas suas escritas.

Enquanto Derrida desconstrói o Ocidente, Lopes procura modelos de fora dele para renovar sua filosofia. Oiobomé termina com a vitória e o reencontro da diáspora africana numa sociedade justa onde há liberdade sem carência, ignorância e perseguição. Chega a uma harmonia utópica sob o reino de uma maioria negra, como Sânderson Reginaldo de Mello nota. O comunismo pode ser descrito como uma utopia, termo que em grego significa “lugar nenhum”, uma sociedade inexistente mas desejada. A Utopia (1516) do inglês Sir Thomas More foi inspirada por uma ilha da América do Sul, mas Oiobomé faz sua própria utopia por meio de renovações afrocêntricas de modelos ocidentais. De fato, o último crime cometido em Oiobomé é o furto da obra-prima de More, como a “constituição” indica (LOPES, 2010, p. 223). O delito é apresentado como algo fora do comum porque ninguém no arquipélago atual sofre carência material desde, aproximadamente, os anos 1960 (a base da aliança oiobomense-cubana). A “posse” metafórica da Utopia, o Brasil, acontece através da criação ficcional literária afrocêntrica.

Textos não-ficcionais sobre a raça no Brasil como Brasil, país do futuro (1942) - de Stephan Zweig - criam um Brasil que é uma utopia racial. A mistura racial e cultural especial do Brasil e o mito da “democracia racial”, conhecido no mundo inteiro, têm criado a mentira de uma terra sem discriminação que foi fundada por escravocratas que não foram violentos da mesma forma que foram os norte-americanos. A “democracia racial” é a ideologia que informa a pedagogia da história nacional desde Casa-grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre e As raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda. Embora essas pesquisas abandonaram elementos centrais da eugenia, elas justificaram o status quo num país com muita desigualdade (EAKIN, 1998). Esses autores continuaram a coisificação dos afro-brasileiros, mostrando-os em papéis servis, inclusive depois da escravatura e sem apoiar a emancipação negra. Enquanto os pontos-de-vista de Freyre e Buarque se alinham com os opressores, Lopes apoia o oprimido: os antigos escravos.

 

4. A pedagogia do oprimido

Proponho que a solidariedade do romance Oiobomé com os afrodescendentes realiza uma “pedagogia do oprimido” semelhante à de Freire e sua filosofia educacional marxista. Essa abordagem permite ao/à leitor/a apreciar o porquê de Lopes construir uma utopia afro-indígena no Brasil. Ele está ensinando todos os brasileiros, sobretudo os racializados e os pobres, a imaginar uma alternativa às injustiças do passado e do presente que eles sentem na pele. Desse modo, Freire considera sua pedagogia:


[...] aquela que tem de ser forjada com ele [o oprimido] e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE, 1970, p. 17).


Para realizar objetivos parecidos, a pedagogia de Lopes tem que se inspirar não só no pensamento hegemônico ocidental, imposto pela opressão, senão também de fontes populares, africanas, indígenas e mestiças.

 

5. Uma pedagogia que refunda a nação brasileira

Ao ensinar o/a leitor/a a identificar-se com o oprimido no século vinte e um, Lopes inverte a formula elitista do “romance nacional” do século XIX. Benedict Anderson argue que, como o parentesco ou a religião, o nacionalismo não é “natural”. É imaginado, político, limitado e soberano (1991). Nem todos se conhecem dentro dessa comunidade, mas eles acreditam num laço fraterno entre si. “Communities are to be distinguished,” ele afirma, “not by their falsity/genuineness, but by the style in which they are imagined” (ANDERSON, 1991, p. 6) ("As comunidades devem ser distinguidas [...] não pela sua falsidade/genuinidade, mas pela maneira na qual elas são imaginadas"). As nações surgiram durante o afastamento da religião como o nexo das comunidades. Anderson nota que as elites nascidas nas Américas criaram comunidades imaginadas que eles governariam, substituindo a ordem imperial. Comunicaram esse controle através da letra escrita, gesto que excluiu a maioria do Brasil e América Latina. Por isso, e pela ausência de uma universidade colonial (à diferença das colônias espanholas), Anderson considera o Brasil um caso único de imaginar uma nação independente que mantém a marginalização total de suas massas. De fato, Andrew Kirkendall (2003, p. 85) considera a elite culta, os bacharéis, o primeiro exemplo da consciência nacional na América Latina: “The nations they imagined were as limited as the oligarchical political systems they designed [...]” ("As nações imaginadas por eles eram tão limitadas quanto o sistema político oligárquico que eles projetaram"). O historiador François-Xavier Guerra nota que a imprensa não chegou a toda América e por isso a marginalização era a norma, mas mantida de formas diferentes.

Com esse pano de fundo, Lopes cria um Brasil do século XIX mais democrático para Dos Santos e os heróis nacionais oiobomenses habitarem. Eles ensinam o povo oprimido que sua cultura é imprescindível à nação brasileira e para eles mesmos, embora não seja valorizado devidamente hoje em dia. Como uma nação alternativa, Oiobomé é imaginada de forma soberana e libertadora para o oprimido. As instituições de educação são centrais ao país muito antes do Brasil alcançar uma democracia nominal em 1889. Até os anos 1870, só quatorze por cento dos brasileiros sabiam ler (KIRKENDALL, 2003). Como no contexto de Freire, “Obligatory education was seen as being linked to ‘communist and socialist movements’” (KIRKENDALL, 2003, p. 93) (A educação obrigatória era vista como sendo ligada aos movimentos comunistas e socialistas), e por isso os programas de alfabetização integram o projeto de uma sociedade igualitária, destacando o fato que no Brasil não era assim. O romance diminui a marginalização dos afrodescendentes antes e depois da abolição, devido ao seu analfabetismo comum (LOVEMAN, 2009). John Charles Chasteen (2003, p. xxi) nota que, diferentemente do foco elitista de Anderson, a maioria dos pesquisadores da América Latina enfatizam “contested meanings of nationalism” (concepções contestadas de nacionalismo), e Lopes não é nenhuma excepção. Seu romance é uma contra-narrativa ao Brasil escravocrata do Império Brasileiro e à marginalização sistemática dos afrodescendentes.

O romance nacional seria fundamental à imaginação da nação brasileira no século vinte, como Doris Sommer mostra. Romances da época do romantismo, como O guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, explicam e justificam a estrutura política brasileira através de histórias de amor. Para a pesquisadora, o romance nacional é:


the book frequently required in the nation’s secondary schools as a source of local
history and literary pride, not immediately required perhaps but certainly by the time the
Boom novelists were in school [1930s to 1950s]. Sometimes anthologized in school
readers and dramatized in plays, films, television serials, national novels are often as
plainly identifiable as national anthems. As for the foundational bonds between literature
and legislation […] they were no secret in Latin America. (SOMMER, 1991, p. 4).


Sommer rastreia a influência da “democracia racial” nas ficções de Alencar sobre conquistadores e elites aos antropofagistas dos anos 20 e 30 (SOMMER, 1991, p. 138). Os antropofagistas procuravam criar uma cultura brasileira única no contexto dos movimentos da vanguarda francesa e representaram os afrodescendentes e os indígenas num estilo exotista (SCHWARTZ, 1998). Sommer mostra que Alencar tenta convencer os/as leitores/as brasileiros/as que eram descendentes de tupis e conquistadores apaixonados e pertencentes à sua terra. Não eram opressores e oprimidos em conflito para ele, enquanto que, na obra de Lopes, o afro e o indígena colaboram para lutar contra o colonialismo branco. O romance de Lopes é parecido com romances nacionais do século XIX no sentido em que “interpretations of the past articulated explanations of the present and set models for future societies” (SOMMER, 1991, p. 135) ("interpretações do passado articularam explanações sobre o presente e estabelecem modelos para sociedades futuras") . Como aqueles romances, Oiobomé inspira o desejo de um “novo mundo” ideal e a criação de uma nacionalidade ideal para todos os/as leitores/as, os negros em particular (SOMMER, 1991, p. 160).

O foco de Lopes na opressão racializada é parte de uma resistência maior entre a crítica contra as ficções fundacionais da harmonia racial que associam a branquitude com o conhecimento e o poder. Um autor, Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908), cujo romance Esaú e Jacó (1904), por exemplo, tanto imaginou como satirizou a nação brasileira, era pardo. Esse fato foi quase esquecido pela crítica até que Eduardo de Asiss Duarte publicou Machado de Assis afro-descendente (2007). Do mesmo modo, Horácio de Almeida redescobriu o romance Úrsula: Romance original brasileiro (1860) num sebo carioca (DUKE, 2008). A autora, Maria Firmina dos Reis (1822–1917), afrodescendente, argue por um Brasil sem escravos, um sonho que só viraria realidade em 1888, pelo menos em termos legais. Como o “redescobrimento” de um Machado afro-descendente e o romance de Reis, Lopes ensina o/a leitor/a que o negro é uma fonte de conhecimento, poder e identidade nacional. Por isso, como Freire, ele mostra que o conhecimento pode vir das margens.


6. O Quilombismo e o revisionismo histórico

Em vez de limitar-se às narrativas de indivíduos privilegiados que lideram e governam as massas, Lopes usa a história para achar modelos de uma sociedade governada por negros para mostrar aos afro-brasileiros que eles também podem governar e ensinar. Para Oiobomé, Lopes escolhe o símbolo quintessencial da resistência contra o colonialismo, o quilombo, como a origem da nação. Em O Quilombo dos Palmares (1947), o folclorista Edison Carneiro trouxe nova atenção à comunidade enorme de afrodescendentes rebeldes. Palmares é a raiz de outra pedagogia, o quilombismo de Abdias do Nascimento (1914–2011).

Freire combinou o ensino com o fortalecimento da emancipação das massas, e Nascimento fez isso com um foco específico nos afro-brasileiros. Ele estabeleceu o Movimento Negro Unido em 1978 (AFOLABI, 2010). Em parte pelo seu ativismo cultural e liderança como senador, a lei 10.639/2003 fez o ensino da cultura e história afro-brasileiras um requisito em todas as escolas e a lei 11.645/2008 incluiu a história indígena. Alguns têm feito novos materiais para esses cursos desde 2003, mas a implementação tem sido inconsistente, segundo Douglas Verrangia (Diversidade, 2016).

A pedagogia de Nascimento é central à comunidade alternativa que Lopes imagina. O herói de Nascimento é Zumbi dos Palmares, comandante militar do rei Ganga Zumba de Palmares (ANDERSON, 1996). Como o personagem Dos Santos, Zumbi dizia que era descendente de reis africanos. Mas o quilombismo é mais profundo que a memoração dos quilombolas. Nascimento vê a imagem de Zumbi como o símbolo culminante de uma semana consagrada aos afro-brasileiros, que todas as escolas deviam celebrar. Cada dia da semana deveria ser dedicado ao ensino de um tema da história negra: 1: A África antes da escravatura; 2: A invasão portuguesa na África; 3: O comércio escravista; 4: Os mercados de cativos no Brasil; 5: A vida do negro na plantação e na cidade; 6: A resistência dos quilombos históricos até hoje e 7: Uma homenagem a Zumbi e a celebração de todos os afro-brasileiros no dia 20 de Novembro (NASCIMENTO, 1979, p. 280). Esses ideais resultaram no Dia da Consciência Negra em 2003, o que comemora a morte de Zumbi.

Esse plano era, para Nascimento, uma maneira de ensinar uma versão mais acessível do seu pensamento radical. Ele sonhou em estabelecer um novo Palmares onde não haveria propriedade privada, as religiões africanas seriam respeitadas como as outras, o trabalho seria baseado no dever cívico, a liderança seria negra, mas todos seriam bem-vindos e a metade dos empregos seria reservada para as mulheres.

As influências do nacionalismo negro, o marxismo e o feminismo são claras no pensamento de Nascimento. Lopes continua seu marxismo e sua pedagogia, porque em Oiobomé não há analfabetismo, a televisão só mostra programas edificantes e só a internet e videogames educativos são permitidos. Enquanto Oiobomé faz uso do mercado livre para vender as jóias que são descobertas na sua terra, seu governo usa esses benefícios para criar sistemas socialistas de saúde e educação parecidos com o sonho de Nascimento de um quilombo moderno, livre de classismo e racismo.

Lopes cria seu próprio quilombo ficcional, uma mistura de história e metáfora, que nasce durante a Época das Revoluções e é ligada á Inconfidência Mineira. Essa conspiração tem sido ensinada como um antecedente da declaração da Velha República, a que rematou a monarquia brasileira (1822–1889). De fato, os ideais da república revisaram a história para justificar seu regime, dizendo que a Inconfidência foi o que fez com que Dom Pedro I declarasse a independência e que esse fato causou o golpe que acabou com o reino de Dom Pedro II, um pulo enorme (CORDEIRO, 2002). Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746–1792), o líder da conspiração, era muito centrista e elitista segundo as normas de hoje em dia, e seu mito reafirmou a oligarquia que a Velha República era. Enquanto Tiradentes foi apresentado nas escolas como o herói que foi esquartejado pela sua dedicação ao Brasil (VILLALTA, 2014), parece que Lopes resgata os corpos que mais sofreram, dos negros e dos índios, para que a elite, personificada por Tiradentes, continuasse no poder. O historiador Luís Carlos Villalta nota que Tiradentes nunca pensava em abolir a escravatura. No romance de Lopes, o liberto Dos Santos negocia com ele sobre o assunto. Mas as forças coloniais acabam com a Inconfidência e o conspirador branco abandona seus cúmplices. O covarde Tiradentes personifica os ideais de uma monarquia ilustrada seguida por repúblicas que foram “democráticas” só de nome. Dos Santos é o herói que Tiradentes devia ter sido, porque ele vem dos oprimidos e governa usando seus princípios e sua visão de mundo.

A condição de negro, livre e fugião numa sociedade racista é uma desvantagem para o protagonista, mas sua diplomacia em trabalhar com os marginalizados cria uma nação verdadeiramente democrática. Ele foge do Rio de Janeiro para Belém do Pará. Ali, ele conhece um francês chamado Bastide (homenagem a Roger Bastide) que vê na sua revolução a “liberté, egalité, fraternité” da Revolução Francesa (LOPES, 2010, p. 44). Esse personagem personifica a Ilustração. Bastide e Dos Santos compartilham os ideais da democracia e uma consciência de que os quilombos estão realizando ideais parecidos. Dos Santos forma alianças com outros fugiões negros e negocia a posse do arquipélago abandonado do Marajó. Os donos são os guerreiros kaxuyanas, um grupo que hoje só consiste de oito famílias (Instituto Socioambiental 2014). Para ganhar seu respeito, Dos Santos se inspira no espírito iorubá do raio e do fogo, Xangô/Hevioçô. Usando álcool, ele sopra fogo no nome da deidade. Os kaxuyana ficam impressionados com o espetáculo, mas sua interpretação vem da sua própria cosmologia. Eles veem-no na forma do japu, um pássaro que controla o fogo. Através de uma combinação de ideias ocidentais e não-ocidentais, uma nação mestiça nasce para os afrodescendentes que substitui a mestiçagem harmoniosa hegemônica. A ilha vira um refúgio para quilombolas de todas as Américas, inclusive 3.000 afro-brasileiros chefiados por Cosme Bento do Maranhão (1800-1842). A nação é fundada e governada pelos oprimidos como os quilombos que inspiraram Nascimento.

O quilombismo tem um telos parecido ao da história de Oiobomé. O romance fecha quando Dominga, o duplo negro de Brasília, é batizada por um casal lésbico. Como Nascimento, Lopes procura incluir as mulheres de cor na nação num papel que vai além do de objeto sexual como em Casa-grande. Duarte vê seu reino como a transcendência da morte do patriarca da dinastia (2013), e a família Dos Santo é análoga à nação que eles fundam como nos romances nacionais (UNZUETA, 2003). No romance, as meninas aspiram a ser uma das guerreiras afrodescendentes que combatem os invasores brasileiros. Esse batalhão foi inspirado pelas daomeanas que afiavam seus dentes, mas ele protege a nova nação. Elas têm um papel forte em declarar sua soberania e preservar as tradições africanas. As afro-amazonas da obra são o contrário das “ángeles del hogar”, burguesas brancas do século XIX cujo papel na nação era ficar em casa e criar filhos (UNZUETA, 2003, p. 154). Mas elas ainda são tão sexualizadas que alguns atacantes querem morrer nos seus braços gritando “Mata, mãezinha!” (LOPES, 2010, p. 128). Essas amazonas feminizam a antropofagia, retomando-a para os afro-brasileiros. Enquanto Oswald de Andrade (1890–1954) imaginou que o Brasil “canibalizava” outras tradições, assimilando-as, as amazonas controlam quem entra e quem não entra no território nacional.3 As amazonas têm paralelos com os movimentos dos direitos da mulher em Oiobomé, as que advogam pela educação.


7. O vitalismo: Conhecimento desde as margens

As mulheres são importantes para religião oiobomense, o vitalismo, como nos casos das especialistas espirituais e culturais Agontimé e Eufrásio Teodora. Elas personificam o ideal freiriano de conhecimento originário das margens. O vitalismo tem um papel fundamental na cultura e no governo, uma semelhança com Palmares (ANDERSON, 1996). É uma fé animista e tem uma cosmovisão baseada em noções fluidas de tempo, espaço e morte. É sincrética como o candomblé e a umbanda e retira o estigma dessas religiões. Elas são um suplemento às formas ocidentais de libertação. Não devemos esquecer que a rejeição da teocracia e as declarações iluminadas de cidadania universal frequentemente ignoravam ou até justificavam a escravatura de milhões de pessoas.

Lopes diz que o vitalismo é uma mitologia complexa do tempo e da natureza. É essa religião, e não motivações iluminadas, que é a razão de Oiobomé apostatar da Igreja Católica, pois indica esta última a continuação da colonialidade no maior país católico do mundo, o Brasil. O vitalismo rejeita a modéstia cristiana a favor de um “caráter empreendedor e guerreiro” como Xangô (LOPES, 2010, p. 92). O machado da deidade aparece na bandeira nacional e ele é o alafim do arquipélago, o que é como se fosse o padroeiro. O Grande livro do saber e do espírito, a bíblia estatal, é um compêndio de sabedoria dos anciãos. Afirma que o tempo é simultâneo e mítico: “O ser humano tem que entender que o passado, o presente e o futuro existem ao mesmo tempo” (LOPES, 2010, p. 93). Podemos ver Oiobomé como um retorno no tempo para corrigir o percurso da escravidão e do racismo.

A ênfase do romance no passado, e não no futuro, também é para mostrar reverência aos anciãos sábios, como em muitas culturas africanas. Eles acreditam em Deus, mas Éle é inaccessível. Em seu lugar os humanos consultam “divindades secundárias [...] intermediárias” e poderosos “ancestrais” (LOPES, 2010, p. 93). Eles são os “heróis civilizadores” do texto (LOPES, 2010, p. 93). Nessa nação sincrética, esses heróis profanos e divinos têm uma função parecida à dos grandes Homens e grandes Pensadores do nacionalismo do século XIX. No entanto, esse conhecimento se transmite através de cerimônias com sacrifício, música, danças e uma atmosfera de reverência. Por isso, chamo a pedagogia de Lopes a “pedagogia do possuído”, não somente porque os afrodescendentes tomam posse da terra, mas também porque reconhecem os terreiros, apresentando-os como centros culturais e educativos e não um espaço marginal para práticas tabus.

Em Oiobomé, os primeiros núcleos de aprendizagem são os terreiros e depois os ilhéus acrescentam uma escola para cada comunidade para capacitar os cidadãos por meio do alfabetismo no século XIX. A alma oiobomense está entre os textos canônicos, uma alternativa ao eurocentrismo hegemônico. É proposto um “espírito civilizatório afro-indígena, enraizado em nossa terra e em nossos corações negros e índios, que queremos e devemos mostrar ao mundo. Não para o impor, mas para que o mundo o compreenda e o aceite em seu direito de se manifestar” (LOPES, 2010, p. 129–30). Apesar do seu próprio etnocentrismo, essa identidade clara faz a nação visível numa escala internacional e é adaptada para dar poder aos cidadãos através de centros de pesquisa da cultura oiobomense. Esses centros se assemelham aos núcleos do Centro Popular de Cultura (1962–1964), os que apresentaram produção segundo a filosofia freiriana que mostrava a luta do trabalhador e apoiava uma política progressista (DUNN, 2001).

As instituições oiobomenses padronizam a língua crioula local. Embora seja baseada no português, mostra a influência de línguas de todas as Américas. Há estruturas de iorubá, kikongo e outros idiomas africanos e também a influência do tupi. Poucas frases na língua aparecem na obra além de palavras para a morte (jirapé) e Deus (Zambidiê) (LOPES, 2010, p. 134). A língua cria coesão nacional e inverte a atitude colonial de que somente as línguas europeias concedem inteligência e poder. A palavra “boçal”, a que hoje significa “idiota”, antes indicava o africano cativo que não falava português e não era católico (PESSOA, 2003). Outro nome para os boçais era negros de nação, o que quer dizer de etnia africana (CHASTEEN, 2003). Por isso, Lopes retoma os idiomas e ideias não-ocidentais como fontes de conhecimento que subvertem o imperialismo cultural.

O reino de Lopes vai além de uma república ilumimada: Oiobomé é uma nação enraizada em culturas africanas e europeias. No oiobomense, os termos africanos indicam orgulho. Sua combinação com o inglês e o francês antilhanos, as línguas de refugiados afrodescendentes, segue celebrando a mestiçagem ao mesmo tempo em que desafia o eurocentrismo. O oiobomense mostra a variedade de códigos que formaram o português brasileiro, indicando que o Brasil também é uma comunidade imaginada com raízes africanas.


8. Lições do Haití

Na língua, religião e política, Oiobomé volta no tempo para reimaginar a nação como a aliança entre quilombos e ideais ocidentais. Mas não é o primeiro país em fazê-lo. A versão do autor da história brasileira imita a Revolução Haitiana, ou como a Revolução devia ter sido, se tivesse resultado em prosperidade econômica. Tal não foi o caso para a nação mais pobre das Américas. Porém, alusões à sua origem heroica permeiam o texto. A primeira referência indireta a Saint-Domingue é a lenda do líder quilombola Solonga, aparentemente criação do romancista. Além de atormentar os oficiais coloniais e eclesiásticos, ele conspira para levar cativos de volta para a África. Uma vez que é capturado, as autoridades o acusam de bigamia, blasfêmia e bruxaria e elas queimam-no em público. A vida de Solonga parece muito com a de Mackandal (d. 1758), o líder e sacerdote afro-haitiano cuja subversão foi punida do mesmo jeito espetacular (JANIK, 2010). Mas os cativos lançaram o grito “Mackandal sauvé” e eles não aprenderam a obedecer os brancos ao ver seu herói queimar (JANIK, 2010, p. 485). Alguns veem-no voando pelo céu como Solonga. A fuga do rebelde é descrita com reverência para o pensamento mágico e sua descrição tem paralelos com os relatos sobre Mackandal:


sabe-se lá por que artes de que deuses africanos, talvez Aganju, talvez Xangô, talvez Zaze, talvez Hevioçô - ou quem sabe Elegbá -, o negro Solonga, corpo em chamas, desprende-se do poste e transforma-se ele mesmo numa tocha humana, num aríete em chamas (ou um pássaro de fogo, atravessando o mar em busca de Ruanda?)” (LOPES, 2010, p. 23).

 

Testemunhar a execução de Solonga ensina Dos Santos, uma criança na época, o oposto da lição pretendida. Em vez de temer as forças coloniais, ele é inspirado a rebelar-se contra elas. Ele é batizado numa confraria e eventualmente funda Oiobomé com a ajuda de “santos” africanos. A imagem do “pássaro de fogo” reaparece quando o protagonista funda Oiobomé com a bênção dos indígenas. O menino aprende a se engajar com a luta quando vira homem.

O laço entre Oiobomé e Haiti também ilumina a história pouco ensinada de enredamento com a Guiana Francesa e o quilombola Pompée (GOMES, 2011). Ele chefiou uma revolta de escravos em 1802 que coincidiu com a Revolução de Saint-Domingue. Napoleão queria reinstituir a escravidão na Guiana em 1802. Na obra, quando Dos Santos declara independência do Brasil, o quilombola lhe dá um elegante uniforme militar francês. Provavelmente pareceria com Toussaint Louverture (1743–1803), o libertador haitiano. Como Toussaint, Pompée, além de chefiar quilombolas, personifica os Direitos do Homem e Cidadão e é Bastide, o banqueiro inspirado pelos philosophes, que apresenta o guianense ao brasileiro. É através da guerra de Toussaint contra Napoleão que Portugal usou o Brasil para invadir a Guiana Francesa. Enquanto o Haiti enfraqueceu e distraiu o exército francês, a Inglaterra convenceu Portugal a se apropriar da colônia francesa. O incipiente Oiobomé, vizinho da capital guianense, é atacado e queimado para dar uma “lição” aos escravizados, mas, como a execução de Solonga, a tragédia só inspira os oiobomenses a lutarem contra o colonialismo.


9. Lições de Cuba

Lopes termina a luta para fundar e manter a soberania sobre Oiobomé com uma aliança com a Cuba comunista. Quando Fidel Castro assumiu poder em 1959, seu governo mudou radicalmente como a história do seu país era contada. Na sua palestra de 1961, “Palabras a los intelectuales”, ele celebra o fato de Cuba ter finalmente declarado sua independência cultural. Isso significa que uma ex-escrava pode contar a sua história e que será estudada (SKLODOWSKA, 1992). Miguel Barnet entrevistou um antigo escravo fugião e veterano dos mambises independentistas que na época já tinha 104 anos. O resultado foi Biografía de un cimarrón (1966). O relato do rebelde indomável cria uma história para a nação majoritariamente afrodescendente que faz do negro seu protagonista, assim como Oiobomé. Cimarrón pode ser interpretada como uma nova “novela nacional”, da mesma forma que o livro de Lopes, mesmo não sendo um romance sentimental como as obras que Sommer pesquisa.

O autor carioca parece tão impressionado com Cimarrón que é um fator importante em suas personagens evitarem uma guerra. Logo depois da declaração de que Cuba era comunista, a primeira ministra Malvina Jackson deve aliar-se com Cuba ou com os Estados Unidos. Um jornal africano afirma que não há líderes negros nas forças armadas cubanas, mas Montejo vem à mente da primeira ministra junto com o afro-cubano Juan Almeida. Ela se lembra das declarações de Castro sobre a luta contra o racismo na ilha. Enquanto Alejandro de la Fuente e outros mostram que, para Castro, o uso da identidade afro-cubana era estratégico e nem sempre beneficiava os afro-cubanos. Mas fica claro que Lopes respeita a soberania de Castro sobre o território cubano e não delata os problemas da Revolução.

Oiobomé tem uma evolução que é influenciada por Cuba, mas que é afro-diaspórica. Os Estados Unidos ameaça-a com invasão pelas suas alianças políticas. Em vez de declarar solidariedade a Castro, ela manda um telegrama para Martin Luther King, Malcolm X, and Huey Newton afirmando: “contem com Oiobomé para o que der e vier”, o que quase resulta num ataque americano quando a mensagem é divulgada (LOPES, 2010, p. 208). Simultaneamente, um santero haitiano-cubano de nome Barbarito Vaillant chega a Oiobomé, desde Santiago, em Cuba. Ele acalma Jackson com uma cerimônia, enquanto alguns covardes oiobomenses fogem para Miami, como a elite cubana. Para o pequeno arquipélago, a ameaça americana é como se fosse a crise dos mísseis soviéticos em Cuba. Mas o desenredo é diferente. Devido à magia do sacerdote, a ameaça americana resulta ser literalmente um pesadelo, e Jackson acorda. Similar à neutralidade suíça durante as guerras mundiais, a primeira ministra também parece indiferente à Guerra Fria, agindo como seus precursores que brincavam falando “eles que são brancos, que se entendam”, se referendo às superpotências (LOPES, 2010, p. 160). Essa postura política é uma contra-narrativa da história do Brasil, um aliado importante das democracias transatlânticas durante ambas guerras. Por outro lado, como Haiti e Cuba, as origens e o sucesso de Oiobomé incluem a exportação de uma revolução, só que essa é afro-diaspórica. No século XIX, eles apoiam rebeliões que incluem a conspiração que provocou o Año de la Escalera (Ano da Escada) em Cuba (1844), os maroons de Trinidad e Jamaica e a rebelião de Nat Turner nos Estados Unidos. Eles dão refúgio aos garífunas de Saint Vincent e Guatemala. Enquanto nem Haiti nem Cuba tiveram sucesso em exportar sua revolução para outros países, Oiobomé se inspira nos dois para reimaginar o Brasil como parte de uma cultura pan-africana.


10. A pedagogia do possuído

O romance de Lopes ensina o/a leitor/a que o conhecimento e a identidade nacional devem vir do povo. Desse jeito, exemplifica a pedagogia do oprimido de Freire. Redescobre as lições de Palmares, Haiti e Cuba para os afro-brasileiros, mostrando que eles podem ter posse da suas terras, sejam brasileiros ou quilombolas. Ademais, ensina para os afrodescendentes que sua luta é aliada com a dos negros e dos indígenas por todo o Novo Mundo. Mostra-lhes que a educação sobre a história afro-brasileira pode prognosticar uma sociedade justa e até utópica. Mas essa educação não deveria ser só ocidental, como também aberta às fés africanas que o vitalismo exemplifica. Comunica-lhes que o Brasil tem muito a aprender se quer ser a terra do futuro.

Minha única crítica ao romance de Lopes é que é um romance. Esse gênero pode fomentar alfabetismo, o que continua sendo comum nas margens brasileiras. Outrossim, provê modelos para os jovens de hoje. Porém, espero que algum dia o livro seja adaptado para o cinema, a televisão, o YouTube ou outra forma popular de mídia. Assim, o romance voltaria à função difusora e educativa que tinha no século XIX como um dos primeiros exemplos de cultura de massa. Como os romances de antanho, esses novos textos inspirariam os telespectadores a agir e criar seu próprio Oiobomé no Brasil.

Em suma, Lopes é um pensador afro-diaspórico que conhece mais do que o samba. Seu romance nos obriga a re-examinar seus outros textos. Sua obra extensa exige mais análise como o que foi apresentado nesse artigo. Ele reimagina o Brasil como um quilombo onde a política, a sociedade e a cultura beneficiam o país com a maior população afrodescendente das Américas.


Notas

1 - Uma versão prévia desse artigo apareceu em Afro-Hispanic Review, Vanderbilt University, n. 36.1, p. 142-159. Revisão da versão em português por Harion Custódio.
2 - Ensaios de Eduardo de Assis Duarte (2013; 2015), Conceição Evaristo (2010) e Sânderson Reginaldo de Mello (2010) são excepções.
3 - Duarte vê no subtítulo do romance uma alusão a Macunaíma (2015, p. 8).


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Sobre o autor

* John Maddox é Professor Assistente de Espanhol pelo Departamento de línguas e literaturas estrangeiras da Universidade do Alabama, em Birmingham.