Memória e consciência negra em Waldemar Euzébio

 Eduarda Rodrigues Costa*

Waldemar Euzébio produz uma escrita marcada pelo resgate do passado através da memória, que se faz ora individual, ora coletiva. É com essa memória coletiva que o eu-lírico exalta a bravura com que lutou contra a escravidão o seu povo vindo da África. O ritmo de seus poemas reproduz o som dos tambores, instrumentos sempre presentes nas celebrações religiosas e culturais afro-brasileiras, capaz de promover a rememoração de uma vida deixada em seu continente de origem.

 Em prefácio a Do cinza ao negro, o crítico literário Marco Antônio de Souza, assim sintetiza a poética de Euzébio:

Waldemar Euzébio Pereira é um poeta de longa aprendizagem no sentido da vida em função da memória. A memória que é uma espécie de saudade revisitada, saudade das coisas que aconteceram sob os olhares de menino, naquela infância espiritual enraizada na sensibilidade, no coração, no amor pelas coisas, as mínimas, as demais coisas, todas as coisas. Porque Waldemar Euzébio Pereira fez uma viagem para compreender os homens: seu texto é uma descida há muitos mil metros abaixo do ser – o ser em função da liberdade e da libertação. (In: PEREIRA, 1993, p. 7).

O livro de poemas Do cinza ao negro é esse mergulho nas perturbações de um ser em conflito consigo mesmo e com o mundo que o discrimina. O título remete à relação entre o sujeito e a sua afro-descendência, no caminho que vai do descobrir-se ao assumir-se negro. Essa transição aparece no texto através do resgate da memória cultural como elo que permite a preservação da herança africana pelo indivíduo, fazendo de sua voz um discurso coletivo.

O livro divide-se em quatro partes: 1.cinza, 2.escuro, 3.lusco-fusco e 4.negro, nas quais um mesmo eu-lírico parece rememorar sua vida da infância até a maturidade. O poema a seguir é fortemente marcado por elementos da vida popular do interior, presentes na memória do adulto. Com um lirismo fascinante converte as pequenas coisas cotidianas em imagens de pura sensibilidade:

1. a gente, menino,
se não ia bem,
mal também não ia.
se era manga,
lá pelos pés trepávamos,
quando de lá descíamos
era a jabuticaba quem nos recebia.

a gente, menino,
se não ia bem,
mal também não ia.
tinha o pai,
tinha o mercadão da praça,
antigo casarão
que aos sábados me lembrava senzalas,
panelas de barro cozido da dionísia
pote, pamonha,
caldo de cana de seu jason... zé mário.
(...)

(Do cinza ao negro, p. 11)

O texto introduz de forma sutil a temática negra no livro, presente no ritmo que remete ao som dos tambores e na associação da senzala com o mercado da praça, onde aos sábados se praticava a degustação da comida afro-brasileira.

Já no poema de número cinco, percebe-se o tema da negritude explícito, através da presença de um sujeito de enunciação que se afirma como negro e que recusa ser mero assunto. O afro-descendente passa a deter a voz ao contar a sua história segundo uma ótica de denúncia das injustiças sofridas pelos cativos, promovendo o reconhecimento do esforço desempenhado por esse povo no processo de desenvolvimento do país.

5. agora vou para o tempo do meu povo,
dos meus gestos e feitos,
da minha cana e meu arado,
do meu solo e da fertilidade do meu suor.
agora sou mais próximo do pó que sou,
mais vida da vida que me gerou
e guardião de quem contém minha voz:
raiz das falas de toda a nossa história.
do galho que se verga pela força do vento
ao vôo da ave pairando sob um céu de escaldante sol,
assoma essa energia que me envolve,
me fortalece e me consome em eternidades.
(...)

(Do cinza ao negro, p. 18)

No poema acima se nota a forte utilização de pronomes possessivos nos quatro primeiros versos. Tal recurso pode ser lido como uma necessidade do eu-lírico de encontrar uma realidade da qual também possa fazer parte e com a qual possa identificar-se. A memória cultural é o que permite esse movimento entre passado e presente, concedendo um novo modo do negro se ver dentro da sociedade, o que possibilita a construção de uma identidade cultural centrada na herança africana.

No segundo momento do livro, merece destaque o poema de número 8 que traz a voz de um eu extremamente irônico, que denuncia as discriminações sofridas pelas pessoas marcadas pela diferença étnica. E este eu-lírico é porta-voz de uma coletividade que está sendo chamada a reivindicar seus direitos:

8. vamos deixar que o mundo cresça
e se nos ofereça
o seu limite algoz de cão danado.
vamos brincar de morte lenta
para ver quem aguenta se sustentar.
vamos deixar que a coisa fique
porque quem assiste
não vai participar.
por fim,
brincar de fazer de conta
pra no final das contas não termos com quem contar.

(Do cinza ao negro, p. 23)

No poema acima explicita uma crítica aos negros que se acomodam frente às desigualdades de tratamento que lhes são impostas pela sociedade dominante. Esse alerta vai também para os chamados “negros de alma branca”, que anulam sua ancestralidade e assimilam os valores do seu “outro” para compartilhar de uma falsa igualdade de direitos. No campo da literatura, essas barreiras também são impostas com a hegemonia de um conservadorismo estético, que pretende uma arte desvinculada dos fatores sociais. A literatura afro-brasileira empenha-se em despertar o interesse dos leitores para a existência de diversas facetas da discriminação racial.

Na terceira parte, no poema de número 12, observa-se um eu-lírico que se queixa a alguém chamado “julien” após a constatação de que seria responsável pelas “amarguras” do momento presente. O eu-lírico representa o sujeito aculturado,

cuja “cara é a feição do momento”. Diante da perda de sua identidade, ele deseja voltar ao lugar de origem, mas está ciente de que, mesmo lá, a reconstrução de si mesmo não será possível. O homem que um dia fora, só existe “em memórias / de outros tempos”. Seguindo essa abordagem sob uma perspectiva afro-descendente, é possível ler essa amargura como um sentimento de frustração por ter se curvado durante toda a vida aos valores dominantes.

“12. ao ver, julien, que fomos nós que
construímos esse hoje tão amargo para os
nossos, dá-nos vontade de voltar... mas
como? A essa altura já não somos o compromisso
de ontem. nem sequer nos lembramos tê-lo de algum dia.
nossa cara é à feição do momento.
o homem, julien, esse, já não o tenho...,
senão em memórias
de outros tempos.

 

ah senhor dos passos... que tropeços.”

(Do cinza ao negro, p. 29)

Na última parte do livro observa-se o resgate de uma memória situada em um passado longínquo, que remete aos tempos da escravidão: período em que os cativos sofriam tanto de violência física, quanto moral. A miséria é o cativeiro da atualidade, que coloca o sujeito numa situação de total desespero, de modo que o próprio ato de (sobre)viver já é, por si só, uma forma de luta, a exemplo do poema 16:

16. era preciso ciso
riso não
negro tisno sem batismo
cão
sem dente
demente
doente
samba? samba ... samba!
benguela
banguela
bantu
urubu
o povo zomba
a fome comendo o dia.
ria? ria ... ria!
tosse
torse
contorse
agonia
é noite
não
é dia
o filho
a filha
a família
trapo
tripa
forca/forquilha

(Do cinza ao negro, p. 35)

O texto sintetiza a ideia central da última parte do livro, que é a da miséria, do descaso social. É possível perceber que a transmutação de cores a que se refere o título Do cinza ao negro remete aos estágios pelos quais se passa até chegar ao fundo da memória cultural dos ancestrais desse povo. Essa escrita de combate da discriminação, da desigualdade de oportunidades e do branqueamento é predominante na obra, que expõe as perturbações de um eu-lírico representante da coletividade negra.

Já Achados é seu livro de contos que, escrito com uma linguagem poética e marcada pela oralidade, traz à tona um emaranhado de vivências do passado. Estas permanecem vivas no presente enquanto são contadas e, ao mesmo tempo, recriadas, como diz o próprio narrador:

Estes são os achados. As lacunas entre uma coisa e outra, não iluminadas pela luz da memória, são os perdidos..., que poderão ser achados, se me faço entender. Donde criados, recriados e mal criados. Cabe a cada um escolher. O propósito não é o de ”unir uma ponta à outra”, como pretendeu o Bruxo do Cosme Velho, mas confesso que me atrai o sabor em reatar, urdindo, invencionando e confundindo o real com o idealizado, os fatos com as pessoas. (Achados, p. 28)

Essa característica inventiva dialoga com os aspectos supersticiosos do imaginário popular, fortemente explorados no livro. São marcas da herança cultural vinda dos povos africanos e indígenas, dos quais descende, e, sobretudo, dos que hoje se encontram às margens da sociedade. É desse universo que nascem as personagens dos contos. O livro é constituído por um narrador que, a cada conto, vai povoando o texto de personagens resgatadas da sua memória. Estas vão se entrecruzando nas narrativas e reforçando o caráter de unicidade da obra. A crítica social é feita de forma mais sutil, menos combativa do que em Do cinza ao negro, mas ainda empenhada em denunciar as várias máscaras que revestem o preconceito étnico.

O conto “A cantora” fala de uma menina pobre e negra que tinha o dom do canto e cujo maior desejo era vestir-se de anjo e participar da cerimônia religiosa de coroação de Nossa Senhora. Como cantava bem, a menina ofereceu-se para coroar a Santa, mas o máximo que conseguiu foi permanecer atrás do altar, fazendo a segunda voz do coro, enquanto a criança escolhida cantava. Isso se repetiu nos anos seguintes... Para cada vez que a menina era impedida de realizar o seu desejo, havia uma “justificativa” que, no fundo, nada mais era do que uma tentativa de mascarar o preconceito racial. Da primeira vez, ela não houvera se inscrito com antecedência, no ano seguinte também, e ainda foi advertida pela organizadora de

que era muito vaidosa para a idade que tinha. Na terceira vez, tentou novamente e disseram-lhe que já estava mocinha para coroar a Virgem, porém lembrou-se de uma menina da mesma idade que ela havia subido ao altar. Ao questionar o fato, a organizadora diz à protagonista que só havia aberto uma exceção porque a mãe da criança precisava cumprir uma promessa. Depois disso, a cantora começou a se lembrar de outras meninas que, como ela já tinham idade superior à exigida para coroar Nossa Senhora, mas continuavam a fazê-lo. Lembrou-se também de seu irmão, que não conseguira ingressar no seminário porque nunca fora recebido nas entrevistas que marcava.

Este é, talvez, o conto que, mais explicitamente, denuncia a discriminação pela cor da pele, pois a menina não era admitida na celebração vista por todos, mas poderia cantar atrás do altar sem que ninguém a visse. Mesmo que ela cantasse melhor do que as outras, não era aceita por sua aparência não condizer com os padrões estabelecidos.

Nos contos de Euzébio encontramos ainda homens que se transformam em lobisomens, outros que fazem pacto com o diabo, trazendo esse universo mítico da cultura popular para a literatura. O conto “O Pirapira” refere-se a uma entidade mágica que surge na vida das pessoas quando estas estão às vésperas da morte. Os animais podem sentir a sua presença e algumas pessoas também e, embora ele apareça no momento da tristeza, da partida, não é um ser maléfico. O Pirapira vem junto a seu escolhido para proporcionar que seus últimos momentos de vida sejam de alegria e, ao tocar sua flauta, retira toda a angústia do coração do doente e só deixa as boas recordações. A narrativa alerta para uma peculiaridade do trabalho dessa entidade: nos tempos atuais, além de levar os velhos e doentes, leva também as crianças que, mesmo tão jovens ainda, já sofreram bastante.

Neste conto é possível perceber o movimento entre passado e presente, mito e realidade. Um elemento do imaginário popular é utilizado para resolver um problema que é de natureza prática e realista. O Pirapira se enche de compaixão pelos meninos de rua e resolve que é o momento deles serem salvos de uma vida marcada pela opressão e pelo descaso social:

Misturadas aos medos dos homens assaltam-nos. Confundida nas mentiras deles, prometem. Pulam traseiras de ônibus, surfam e dão aos seus frágeis corpos alimentos de sonhos que giram velozes vitrines em suas retinas. Letárgicos, ziguezagueiam: sem a ordem do enxame, nem a eficácia das formigas. O medo estampado, refletido nas retinas dilatadas lhes dão uma falsa sensação de força e poder. Onde dormiam dóceis cordeiros, despertam ferozes leões. A frágil silhueta letárgica, num átimo, torna-se letal, sobretudo, para si mesma. E ziguezagueiam na deambulação peregrina. (Achados, p. 96)

Em seguida, lhes mostra, de uma só vez, tudo o que podiam esperar de suas vidas:

Num segundo, Pirapira mostra toda a vida às crianças. Olhos embriagados elas vêem seus filhos e os filhos dos filhos, todos

iguais; sem casas, sem escolas, correndo e vivendo nas ruas, cheirando, apanhando, indignos, deserdados de humanidades... (Achados, p. 97)

O conto discute, por um lado, o diálogo entre o imaginário popular e fatos da realidade atual, e, por outro, o descaso social que torna previsível o futuro das gerações oriundas das camadas socialmente desfavorecidas. A poeticidade de seus contos é dada por essa memória cultural, resgatada por um narrador que permite ao leitor transitar em suas vivências e conhecer personagens que, vez por outra, ressurgem em outros contos, como se fossem lembranças. Assim é possível que se conheça a família desse narrador: sua mãe negra bisneta dos Tapuias, seu pai Joaquim, seus numerosos irmãos, seu amigo Simeão, seu parente dono do sabiá de laranjeira. Um narrador que assume sua identidade negra e que descreve, no decorrer da narrativa, a vida nas típicas cidadezinhas do interior de Minas Gerais, vida esta que ganha uma dimensão universal devido ao alto grau de sensibilidade com que o autor trata as inquietações do ser.

 

Referências

 

PEREIRA, Waldemar Euzébio. Do cinza ao negro. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1993.

PEREIRA, Waldemar Euzébio. Achados. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004.

 

 

 

* Eduarda Rodrigues Costa é graduada em Letras pela UFMG