O protagonismo negro na leitura infantil (?):

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The black protagonism in childreen reading (?):
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Débora Cristina de Araujo1

Jucimara Gomes da Silva2

Rejane Georgina Pott Ferrando3

 

 

Resumo:

Considerando a literatura como um importante artefato cultural para a formação da visão de mundo da criança, torna-se necessário discutir como a literatura voltada para o público infantil tem se preocupado em tematizar a diversidade étnico-racial, sobretudo acerca de grupos humanos historicamente subalternizados na sociedade brasileira, como negros e indígenas. A partir dessa constatação, o presente artigo tem comoobjetivodarvisibilidadeaoprotagonismonegronaliteraturainfantileinvestigar como tal protagonismo podem estar produzindo elementos que convergem para representações identitárias positivas ou negativas.Trata-se da compilação das análises e resultados de duas pesquisas desenvolvidas em 2014 e 2015. Por meio da análise bibliográfica de seis livro são todo, constatou-se que se de um lado houve um aumento na qualidade das obras mais recentes, por outro, um dos livros mais referenciados no trabalho de mediação da leitura com protagonista negra reitera estereótipos raciais.

Palavras-chaves: Protagonismo negro; Literatura infantil; Pesquisas; Diversidade étnico-racial.

Abstract:

Considering literature as an importan tcultural artifactfor the formation of way tosee the world for the child, it is necessary to discuss how children's literature has been concerned with the theme of ethnic-racial diversity, especially about human groups historicallyoppressedinsociety,suchasblacksandindigenouspeople.Basedonthis observation,this article aims to give visibility to black protagonismin children's literature and investigate how such protagonism may be producing elements that converge to positive or negative identity representations.This is the compilation of the analyzes and results of two researches developed in 2014 and 2015. Through the bibliographical analysis of six books in all, it was possible to verify that although there has been an increase in the quality of the most recently published books, on the other hand one of the most referenced books in the mediation work of reading with black protagonist reiterates racial stereotypes.

Keywords: Black protagonism; Children's literature; Researches; Ethnic-racial diversity.

INTRODUÇÃO

As modificações instituídas sobre a história e cultura afro-brasileira, africana e indígena nas práticas pedagógicas, nos currículos e na formação inicial e continuada de professoras e professores da educação básica têm produzido, ainda que com limites, reflexões sobre a produção simbólica destinada à formação de estudantes. Neste vasto “universo simbólico” que adentra a escola está o livro literário, produção artística que, ao ser inserido no ambiente escolar, por consequência escolariza-se. Tal processo, inevitável, para Magda Soares (2006), não necessariamente implica a transmutação da arte em didatismo. É também possível, concordando com a autora, que a escolarização seja um processo inerente a qualquer artefato simbólico que adentra o espaço escolar, e que se há algo a ser questionado é a “imprópria escolarização da literatura que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendida que, ao transformar o literário em meio escolar, desfigura-o,desvirtua-o,falseia-o.” (SOARES, 2006, p. 22).

Nesse sentido, entender o livro literário como um objeto escolarizado ou, em outras palavras, entender como inevitável a escolarização da literatura, é possibilitar o avanço para investigações mais significativas sobre como se desenvolve tal processo e, a partir daí, e caso se evidencie a ideia de uma literatura puramente pedagógica ou instrutiva, propor reflexões e mudanças. É justamente nessa perspectiva que os estudos que analisam a implementação da legislação sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais [4] aproximam-se da literatura na escola. Em que medida o repertório de obras literárias disponíveis nas bibliotecas escolares está também adequado ao público leitor no tocante à diversidade étnico-racial e cultural? Dito de outra forma: as crianças brasileiras têm tido acesso a uma produção literária que cumpre com o papel de ampliação do repertório de leitura com vistas à formação de leitoras/es críticas/os, ou estão submetidas a um cânone literário que representa muito pouco do seu entorno e da sua sociedade? Estamos falando especificamente sobre a literatura clássica disponibilizada cotidianamente para as crianças pequenas como forma não só de ingresso no mundo das letras ou no mundo das artes, mas também como modo de formação de representações sociais. Foram vários e sistemáticos os estudos que apontáramos limites da literatura voltada para crianças no que tange a representação: o modelo humano “ideal” das histórias infantis é masculino, adulto, branco e heterossexual [5]. Nesse sentido, quanto mais se distancie desse modelo mais diminuta é a chance de uma[6] personagem se fazer presente no livro literário, seja na ilustração, seja no texto escrito.

Diante de constatações como essas, e considerando a necessidade de outros olhares sobre a literatura infantil, o que se propõe neste artigo é, concordando com os limites no tocante à representatividade, investigar as alternativas, as brechas ou, melhor, as “fraturas literárias”, conforme defende Maria Anória de Jesus Oliveira (2010, p. 84):

A ‘fratura’ consiste na inserção de temas, ideias e subjetividades preteridas da chamada literatura canônica e/ou impressa em seu corpus textual tendenciosamente desqualificada ou omitida, de modo a perpetuar e hierarquizar,diga-se de passagem, a tendência marca da mente eurocêntrica em detrimento das demais, a exemplo da ascendência africana.

Obras preteridas não necessariamente são dotadas de baixa qualidade ou, no caso específico de livros voltados para a criança, de textos com limites artísticos, de fundo moralizante ou instrutivo. Um número significativo de livros não adentra o cotidiano escolar por apresentar outros referenciais de humanidade e destoarem do cânone. É justamente sobre tais livros que o presente artigo se debruçará: investigando títulos voltados para o público infantil com protagonistas negras e propondo, a partir daí, análises sobre as possibilidades ou limites de tais obras na superação de estereótipos e na produção de um repertório de qualidade estético-literária.

O que se apresenta neste texto é o resultado de duas pesquisas desenvolvidas como requisito de conclusão do Curso de Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná, nos anos de 2014 e 2015. E, para tanto, o artigo está dividido em três partes: na primeiras era apresentada a análise bibliográfica de livros infantis com personagens negras protagonistas no enredo e/ou na capa. Na segunda parte, será desenvolvida uma análise específica sobre a condição identitária de protagonistas negras em duas das mais recorrente sobras literárias utilizadas no ambiente escolar muitas vezes mais como pretexto do que propriamente exploração das características literárias quando se tematiza a representação da/o negra/o. E na terceira parte será apresentado um comparativo entre as duas obras, evidenciando os limites na construção da identidade de uma delas no tocante ao seu pertencimento étnico-racial.

Quem (e como são) são as personagens protagonistas na literatura infantil?

A partir da sobras disponíveis na biblioteca de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Curitiba -PR e da pesquisa e acervos particulares de professoras da educação básica, foi desenvolvida a análise de 22 livros de literatura infantil com personagens negras protagonistas expressas ou no seu enredo ou na capa da obra. A proposta de tal investigação foi de atualizar os resultados da pesquisa desenvolvida por Débora O. C. Araujo e Paulo V. B. Silva (2012). Tal pesquisa à época teve como objetivo “traçar um panorama da produção literária brasileira para crianças pequenas que apresentam em alguma medida personagens negras ou temáticas relaciona das à cultura e história africana e afro-brasileira.” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 194). A autora e o autor desenvolveram uma escala para avaliar a qualidade das obras em relação à valorização da cultura afro-brasileira e africana com os seguintes itens: ótimo, muito bom, bom, razoável e ruim. E os critérios utilizados para tais classificações foram:

[...] presença e importância de personagens negras; se personagens principais; grau de ação na trama; uso de linguagem; se narradoras/es; ilustrações com valorização de aspectos fenotípicos ou com uso de símbolos relacionados com africanidades; temas relativos à história ou cultura africana ou africana da diáspora; qualidades estética e literária; temas relativos a vivências de personagens africanas ou africanas da diáspora; ausência de estereótipos nos textos e nas ilustrações; ausência de hierarquias entre personagens brancas e negras; não presença da/o branca/o como representante exclusivo de humanidade (branquidade normativa) (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 211).

De modo geral, naquela pesquisa os resultados indicaram que o repertório literário destinado à criança pequena era bastante restrito no tocante à diversidade étnico-racial: além de poucos, um número significativo de livros com personagens negras continha estereótipos no enredo e/ou na ilustração. Além disso, quanto mais nova a criança menor era a chance de haver livros com diversidade étnico-racial, ratificando estudos anteriores que apontaram altos índices de “branquidade normativa” (ROSEMBERG, 1985).

O presente estudo incorporou alguns dos critérios de Araujo e Silva (2012), acrescentando outro: construção e consolidação positiva da identidade da criança negra. E no tocante aos itens de avaliação (ótimo, muito bom, bom, razoável e ruim), neste estudo foram reduzidos para três: ótimo, bom e ruim.

Procurou-se observar nas ilustrações se há valorização de traços fenotípicos negros, bem como as condições do ambiente onde as personagens estão retratadas e se parecem felizes. Analisou-se nos enredos:

  • se existe formação familiar e sua qualidade do ponto de vista da afetividade;
  • se a história pode auxiliar na superação do racismo e discriminação racial;
  • se contribuem para a construção positiva da identidade racial da criança negra, do fortalecimento e da consolidação de sua autoestima.

Outros aspectos também observados, como as características tipográficas dos textos, elementos de valorização afro-brasileira/africana, bem como as classificações dos livros por faixa etária foram definidos a partir das experiências docentes das autoras na educação infantil e de seus estudos relacionados à Educação das Relações Étnico-Raciais.

Em função das dimensões deste artigo, a opção nesta seção é de apresentar quatro dos livros analisados, sendo dois deles avaliados como ótimos, um bom e um ruim. A escolha de dois livros ótimos tem a intenção de dar visibilidade a diferentes composições narrativas e imagéticas (um com linguagem não verbal e outro com linguagem mista). Para as demais atribuições – bom e ruim – foi selecionado apenas um título, inclusive levando-se em conta que apenas três livros da amostra geral foram avaliados como ruins.

A disposição das análises será apresentada da seguinte maneira: título; nome da autora ou autor e ano de publicação da obra; número de páginas; sinopse; análise (considerando os critérios aqui anteriormente apresentados), características tipográficas (no caso dos textos com linguagem verbal) e indicação etária.

Fig. 7: Capa do livro “Cheirinho de neném”

Fonte: Santana (2011)

  1. Título: CHEIRINHO DE NENÉM

SANTANA, Patrícia. Cheirinho de neném; ilustrações de Thiago Amormino. – Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.

 

Sinopse: Iara é uma menina que fica muito feliz com o nascimento de seu irmão, o Abayomi. Diferente de muitas crianças quando ganham um irmão ou irmã, ela não sente ciúmes, pois gosta de ficar próxima do irmão e sentir seu cheirinho de neném, cheirinho “de alecrim do campo, cheirinho de chuva na terra, cheirinho de açúcar caramelado”.

Análise: As metáforas produzidas para descrever o cheirinho do irmão Abayomi contribuem para a fruição da leitura que, fruição da leitura que, poética e sensível, estimulando os sentidos, sobretudo do olfato, visão e tato.

As preocupações de Iara sobre o medo “de o irmãozinho sumir, ir embora e não voltar mais” (SANTANA, 2011, s/p) são atenuadas pela mãe, que mostrava o quanto Abayomi estava bem e tinha vindo, realmente como seu nome significa, para trazer felicidade para a família. As ilustrações são delicadas e revelam uma família que se ama e é feliz. As personagens são esteticamente bem retratadas, com tipos de cabelos diversos e em condições sociais humanizadoras.

Características tipográficas: O texto é escrito em letras maiúsculas, favorecendo a leitura feita por crianças em processo de alfabetização.

Fig. 8: Família

Fonte: Santana (2011, s/p)

Avaliação acerca da valorização afro-brasileira/africana: Ótimo

Indicação etária: 3 a 8 anos

Fig. 5: Capa do livro “Meninas negras”

Fonte: Costa (2010)

  1. Título: MENINAS NEGRAS

COSTA,Madu. Meninas negras; ilustrações de Rubem Filho. 2. ed. – Belo Horizonte: Mazza Edições,2010.

Número de páginas: 24

Sinopse: As personalidades e preferências de três meninas são descritas no livro:

- Mariana, que é alegre e sonhadora, gosta de mar e rio, palavras que ela associa ao seu nome. Aprendeu na escola que os negros “vieram da África como escravos” e seu sonho é atravessar o Oceano Atlântico para encontrar “a mãe África linda e livre”.

- Dandara, que é linda e de sorriso aberto, gosta de animais e aprendeu com a professora sobre a África e suas terras. Ela viaja com a imaginação vendo “girafa, elefante, tigre e leão” nas nuvens.

- Luanda, que “dança como ninguém e aprende o que lhe convém”, aprendeu na escola sobre acultura africana. Ela tem “o som na alma negra [...] dança sua história, menina feliz”.

Análise: Percebem-se no enredo as características individuais de cada menina, os seus gostos e a elevada autoestima de todas, tanto quanto o fato do reconhecimento de suas ascendências, pertencimento étnico-racial e as influências trazidas pelo povo africano. Além disso, as ilustrações são coloridas e as meninas possuem traços fenotípicos negros não estereotipados e aparecem felizes em relação ao ambiente em que se encontram.

A narrativa oscila em passagens mais ou menos didáticas, com trechos informativos. São apresentados questões e temas aprendidos na escola como a história do povo africano (como e de que forma os negros foram trazidos para o Brasil), geografia da África (paisagens e animais africanos) e artes (cultura africana repassada através de sons e danças), embora o termo“escravo” esteja naturalizado no enredo.

Fig. 6: Nascer do sol Fonte: Costa (2010, s/p) 

Verifica-se um erro no enredo da história, o que também influenciou na avaliação: um trecho refere-se ao desejo de Dandara de ter animais de estimação africanos e aparece a personagem pintando um tigre de bengala no chão, porém esse animal não tem como habitat o continente africano e sim o asiático.

Características tipográficas: O texto é escrito em letras maiúsculas, favorecendo a leitura feita por crianças em processo de alfabetização.

Avaliação acerca da valorização afro-brasileira/africana: Bom Indicação etária: 5 a 9 anos

  1. Título: O ALMOÇO

VALE, Mario. O almoço – 10.ed.–São Paulo: Saraiva, 2009 [Primeira edição 1987].(Coleção Conte ou travez) Número de páginas: 8

Fig. 2: Almoço

Fonte: Vale (2009, s/p)

Sinopse: Narrativa visual em que a personagem central é um homem que vai até o jardim, vê um buraco no chão, enfia sua a mão e captura um coelho, arrastando- o pelas orelhas até sua casa. Em seguida ele aparece preparando o almoço na cozinha, com a panela fechada. Quando a refeição está pronta, leva a panela até a mesa e, surpreendentemente, serve cenouras para ele e para o coelho que espera ansiosamente pelo prato demonstrando alegria pela surpresa.

Análise: É um livro-imagem, em que as crianças podem criar hipóteses sobre o desfecho da trama. As ilustrações são confeccionadas com cartões coloridos, recortados, colados e montados para então serem fotografados.

Contudo, as escolhas de composição da personagem protagonista, sobretudo dos lábios e cabelo, reiteram ilustrações historicamente estereotipadas: os lábios são exageradamente protuberantes e vermelhos que, em contraste com o tom de pele marrom escuro e os olhos de fundo branco, rememoram imagens racistas da publicidade, literatura e cinema europeu e estadunidense das quais Frantz Fanon (2008) analisou em sua principal obra:

Observem que, nos periódicos ilustrados para crianças, todos os negros têm na boca o ‘sim sinhô’ ritual. No cinema, a história é mais extraordinária ainda. A maior parte dos filmes americanos dublados na França reproduzem negros do tipo: y´abonbanania. [...] É que do preto deve sempre ser apresentado de certa maneira, e, desde o negro do filme Sanspitié–‘eubomoperário, nunca mentir, nunca roubar’, até a criada do Duelausoleil, encontramos o mesmo estereótipo (FANON, 2008, p. 47, destaques doautor).

Tal reiteração na ilustração, aliada a um enredo bastante simplório, prejudicou a qualidade do livro.

Fig. 2: Almoço

Fonte: Vale (2009, s/p)

Avaliação acerca da valorização afro- brasileira/africana: Ruim

Indicação etária: 3 a 8 anos

  1. Título: VIDA QUE VOA

MARTINS,Lena. Vida que voa. Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2011.

Número de páginas: 32

Sinopse: No Jardim Boiúno, num vale ao pé da montanha onde moram cobras grandes, avó e neta conversam sobre pássaros e borboletas, ao mesmo tempo em que se embalam na rede da sala. A neta Isadora faz curiosas perguntas para a sua avó, que as responde uma a uma. No final da história a neta explica para a avó que gente também “tem asa” e voa no embalo da rede.

Fig. 3: Capa do livro “Vida que voa”

Fonte: Martins (2011)

Análise: O livro possui um enredo acessível e delicado, em um momento em que avó e neta observam a “vida que voa” e trocam carinho entre si. As ilustrações são artesanais, feitas com tecidos costurados e bordados, formando painéis com paisagens da montanha, com cobras, lua, borboletas e pássaros. Destacam-se as bonecas negras Abayomi, marcas da cultura africana no Brasil, utilizadas para representar as personagens humanas. A cor preta das personagens proporciona um efeito agradável em relação ao cenário já que cada elemento é também, como as personagens, artesanal. A opção portal obra diante de tantas outras igualmente avaliadas como ótimas é de justamente confrontar dois livros (LIVRO 3 e 4) com personagens representadas com peles de tonalidades escuras e observar que no processo de composição de ambas também se faz uma escolha e que dessa escolha podem decorrer ou não os estereótipos.

Fig. 4: Deitadas na rede Fonte: Martins (2011, s/p)

Características tipográficas: No que se refere à leitura do texto, o tipo de fonte (maiúsculas e minúsculas) dificulta a leitura por parte de crianças em processo de alfabetização, cabendo a um adulto possivelmente fazê-la.

Avaliação acerca da valorização afro-brasileira/africana: Ótimo

Indicação etária: 3 a 8 anos

Levando-se em conta que o objetivo era de atualizar a pesquisa de Araujo e Silva(2012), é necessário, contudo, ressalvar que a quantidade de livros avaliados naquela pesquisa foi maior do que na investigação que originou os dados para este artigo: numa relação de 37 para 22 livros. Outro fator que conferiu variabilidade nas análises foram os critérios de classificação, já que no estudo de Araujo e Silva (2012) foram utilizadas cinco escalas (ruim razoável, bom, muito bom e ótimo) e neste estudo elas foram reduzidas para três (ruim, bom e ótimo), considerando a não existência de tantas nuanças a ponto de estabelecer variações tão sutis. Mas em um panorama geral, pôde-se verificar um aumento na quantidade de livros avaliados como ótimos: ao passo que em Araujo e Silva (2012) 16 dos 37 livros (43,2%) foram ótimos, neste estudo foram 14 (63,3%), representando uma diferença de mais de 20% para a pesquisa mais recente. Na mesma lógica houve aumento na quantidade de livros avaliados como bons (que, na presente pesquisa, reuniria o que o estudo anterior subdividiu em “bom” e “muito bom”) e diminuição nos livros classificados como ruins.

Um elemento prejudicial identificado por Araujo e Silva (2012) também se fez presente nos dados gerais da outra pesquisa utilizada neste artigo: a inadequação do texto escrito ao público infantil. Prevaleceu nas obras ou só combinado de letras maiúsculas e minúsculas, característica que dificulta o processo de alfabetização das  crianças. Também foi reincidente a alta quantidade de obras que extrapolaram a faixa etária de crianças pequenas (chegando até a 8 anos de idade). Muito disso deveu-se à combinação das fontes minúsculas e maiúsculas somado à quantidade de páginas e grau de complexidade das tramas.

Outro elemento comparativo entre a referida pesquisa e a de Araujo e Silva (2012) relaciona-se ao ano de publicação das obras. Nas análises da autora e do autor ficou evidente que “quanto mais antiga a obra que apresenta personagens negras, mais chances ela tem de trazer estereótipos negativos e racismo implícito ou explícito” (ARAUJO; SILVA, 2012, p. 211), com prova do também neste estudo por meio do livro de Vale (2009 [1ª edição 1987]). Também foi possível reiterar a relação entre o aumento de obras mais positivas nos últimos anos com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana por meio da Lei 10.639/2003.

Com a intenção de aprofundar a investigação sobre o protagonismo negro, nas seções seguintes será mais bem detalhada a análise sobre duas marcantes obras literárias com protagonistas negras.

As meninas negras como protagonistas nas obras BRUNA E GALINHA D'ANGOLA E MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA

 interesse no aprofundamento de análise desses dois livros apresentados a seguir foi devido ao fato de serem duas das mais recorrentes obras literárias infantis adotada sem práticas ou mediações de leitura no ambiente escolar quando se pretende tratar de temáticas da cultura africana ou estética negra. Em uma busca simples na internet é possível verificar um número significativo de exemplos de projetos de intervenção, atividades pontuais ou mesmo o explícito uso da literatura com personagens negras para fins de “combate ao racismo” ou de trabalho com a “questão do negro”. E dentre esses dois livros, é a obra Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, que se sobressai. Muitas atividades são produzidas artificialmente apenas como recurso didático para o desenvolvimento do tema diversidade étnico-racial e, em grande maioria das vezes, localizado em um tempo específico do calendário escolar: no mês de novembro, em atividades alusivas ao Dia Nacional da Consciência Negra. O outro livro, “Bruna e galinha d’Angola”, de Gercilga de Almeida, embora menos incidente que o primeiro, também tem seu uso reificado quando a temática envolve história africana.

Outro aspecto de interesse na aproximação de ambos os livros é o fato de as duas protagonistas, além de serem negras, aparentemente terem idades próximas. É relevante, portanto, analisar como se dá a construção da identidade de ambas no tocante ao seu pertencimento étnico-racial.

A seguir serão apresentadas as sinopses e análise das duas obras.

Menina Bonita

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita, 8. ed. – São Paulo: Ática, 2010 [1ª edição 1986]. Ilustrações: Claudius

Número de páginas: 23

Sinopse: O livro narra a história de uma menina negra que é questionada por um coelho branco sobre os motivos que a fazem ser tão bonita, ressaltando que a cor de sua pele era a maior marca de sua beleza. Sem saber o que dizer ao coelho, a protagonista inventou várias histórias: era preta por ter caído na tinta preta, por ter tomado muito café ou, ainda, por ter comido muita jabuticaba. À partir de cada uma das versões da menina, ocoelho, na tentativa de ficar parecido com a ela, banhou-se de tinta preta, depois tomou muito café e ainda comeu muita jabuticaba, tudo sem sucesso. Novamente retornando à casa da menina para perguntá-la sobre o que ela fez para ser tão pretinha, a mãe da menina interveio e disse: “Artes de uma avó preta que ela tinha”. Então o coelho percebeu que ele não pode ser preto, mas havia outra opção: ter filhos pretos,“ por que a gente se parece é com os pais, os tios, os avós e até com os parentes tortos”. Assim, ele conheceu uma coelha pretinha e se casou com ela e ambos tiveram muitos filhos e de várias cores,“e até uma coelha bem pretinha. Já se sabe, afilhada da tal menina bonita que morava na casa ao lado”.

Fig. 9: Capa do livro Menina bonita do laço de fita

Fonte: Machado (2010)

Análise: Publicado originalmente em 1986, essa obra tornou-se referencial pois pela primeira vez uma menina negra é representada positivamente em uma trama. Uma importante ressalva a ser feita é sobre a capa das cinco primeiras edições, cuja ilustração não destacava a beleza da menina. Muito pelo contrário, mostrava uma imagem estereotipada, bem diferente da ilustração atual, conforme indica a imagem a seguir.


Fig.10: Capa da primeira edição de"Menina bonita do laço de fita" Fonte: Machado (1986)

Considerando que nos acervos das bibliotecas escolares a predominância é de edições mais recentes (com ilustrações menos estereotipadas e com traços de valorização), a presente análise será sobre a 8ª edição, do ano de 2010.

A obra aponta, sobretudo para o período em que foi escrita (década de 1980), uma inovação no modo de representar personagens negras: ao contrário de enredos de sofrimento e humilhação,essa história a presenta as personagens negras destacadas por sua beleza. Além disso o texto que convida à fruição literária. A narrativa inicia-se com a expressão convencional de contos de fada europeus: “Era uma menina linda, linda” (MACHADO, 2010, p. 4). Apesar da exaltação da beleza da menina, ela não tem um nome, fato que, somado a outros apresentados no decorrer dessa seção, compõe um quadro negativo do ponto de vista da identidade da personagem.

Ela é negra, de cabelos visivelmente crespos, que recebem o cuidado da mãe. Essa manipulação do cabelo é um elemento que representa, na trajetória de crianças negras, um avanço.Nilma Lino Gomes (2002) nos lembra como essa relação entre mulheres negras a partir do cabelo é um elemento constitutivo da identidade negra:

As meninas negras, durante a infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo,realizados pela mãe, tia, irmã mais velha ou pelo adulto mais próximo. As tranças são as primeiras técnicas utilizadas.

[...]

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, algumas famílias negras, ao arrumarem o cabelo das crianças, sobretudo das mulheres, fazem-no na tentativa de romper com os estereótipos do negro descabelado e sujo (GOMES, 2002, p.44).

Na narrativa, a menina é comparada às princesas da África ou fadas, sendo, sobretudo, essas últimas personagens geralmente retratadas como brancas, com cabelos lisos e olhos claros.

Fig. 11: Balé

Fonte: Machado (2010, p. 7)

Fig. 12: Lendo

Fonte: Machado (2010, p. 8)

Em todas as vezes que o coelho procura a menina, a ilustração que a companha a narrativa possui um papel fundamental na construção de uma imagem positiva. Na edição analisada a menina é representa da pelo ilustrador em atividades valoriza das socialmente. Ela dança balé, lê um livro em uma rede e também desenha com diferentes materiais. Apresentada assim em seu cotidiano, realizando atividades comuns a qualquer criança, a narrativa explora uma imagem positiva para a criança leitora, seja ela negra ou branca.

No entanto, no tocante à ênfase sobre os traços físicos das personagens, sobretudo da menina [7], em nossa interpretação outros aspectos são realçados: embora a perspectiva de várias autoras e autores (como Luiz Fernando França, 2006; 2008) que analisaram esta obra seja de que, ao enfatizar de forma exagerada os atributos físicos das personagens está-se construindo um modelo de literatura que valoriza personagens negras, argumentamos que tal ênfase pode atuar muito mais como uma necessidade de se reforçar algo que não é representado como comum: a beleza de uma pessoa negra. Nessa mesma direção, outra pesquisa, realizada por Eliane Cavalleiro (2006), constatou elementos semelhantes relacionados a uma ênfase sobre a beleza negra:

Já em outras situações, muita ênfase foi dada a ‘minha beleza’. Assim, fui tratada de ‘mulata linda’, ‘crioula, crioula bonita’ e, ainda, de ‘negro na maravilhosa’. Posso até concordar com a ideia de ser uma mulher bonita e de que algumas pessoas costumam enquadrar-me no famoso estereótipo da “mulata Sargentelli”,mas nada que devesse ser constantemente enfatizado.

No final da entrevista com uma professora negra, ela comentou: ‘Você é muito bonita. Não seria discriminada. Hoje o negro está mais bonito. Você passa por branca. Ninguém te discrimina’ (CAVALLEIRO, 2006, p.41).

Diante deste exemplo, outro aspecto é evidenciado: o discurso exagerado da beleza negra desloca o tema do racismo na sociedade brasileira para a ideia de que a miscigenação ou menos pigmentação da pele em pessoas negras representaria a superação do racismo (e logo, o branqueamento aceleraria o processo).

E a intelectualidade, no caso específico da personagem Menina bonita, ficar e legada a um segundo plano, já que a mesma, como bem apontou Maria Anória de Jesus Oliveira (2003), apresenta poucas ou fragmentadas informações sobre sua história, podendo-se inferir, portanto, em uma espécie de alienação por parte da personagem, que não se interessa em conhecer suas origens.

Outro elemento de interpretação é a figura do coelho: a presença dessa personagem, visivelmente apaixonada pela menina negra, não apenas enfatiza os traços físicos do negro como instaura um processo de idealização das relações inter-raciais e da mestiçagem (FRANÇA, 2008, p. 129). Mesmo considerando o fato de se tratar de um animal (e isso representa, em nossa interpretação, problemas devido à direta associação de uma personagem humana negra relacionando-se em posição equivalente com animais), verifica-se a presença de uma dicotomia “branco – masculino” e “negro – feminino”, rememorando a condição típica de personagens femininas negras na literatura brasileira das quais Edith Piza (1998) categorizou em seu estudo: personagens descritas na trama por meio principalmente (quando não somente) de seus atributos físicos e em situações de constante sedução dos homens, sobretudo dos brancos.

E complementa-se nessa mesma direção a presença da mãe da protagonista, descrita na trama como “uma mulata linda e risonha” (MACHADO, 2010, p. 15), sendo o termo “mulata” uma atribuição que vem cada vez mais assumindo uma conotação pejorativa, em consequência do simbolismo em torno da imagem da “mulata” como alguém dotado de atributos sexuais naturalmente convidativos ao sexo. É importante ressalvar que tais interpretações pouco incidiriam na leitura feita por crianças que podem não identificar aspectos tão complexos quanto os destacados aqui. No entanto, não podemos negar que a reificação sistemática de modelos humanos produz representações mentais e sociais sobre tais grupos humanos. Em outras palavras, se se tratasse apenas de uma obra literária que enfatizasse os atributos físicos de personagens femininas negras e utilizasse palavras com conotações racializantes não poderíamos falar em problemas na narrativa. Mas esta obra une-se a centenas de outras que cristalizaram a imagem da mulher negra nessa ou em outra condição típica: a mulher negra destinada à função serviçal. Duas passagens do estudo de Piza (1998) aproximam-se deste argumento:

[...] a personagem feminina negra sexualizada é uma constante na literatura brasileira, desde sua origem, no período colonial. Salvo o período do romantismo,em que a mulher indígena vai encarnar valores de mulher branca (coragem, fidelidade, pureza de espírito), a mulher negra vai surgir como paradigma da sensualidade e beleza, principalmente na forma da mulata [...].

[...]

A mulher negra é invariavelmente a empregada doméstica, retratada com um lenço na cabeça, o avental cobrindo o corpo gordo: a eterna cozinheira e babá (PIZA, 1998, p. 111; p.120).

E, continuando, a explicação da mãe para a menina e para o coelho sobre o pertencimento étnico-racial de ambas é de que sua cortem origem em sua ancestralidade,graças às “artes de uma avó preta que ela tinha” (MACHADO, 2010, p. 15), acompanhada pela ilustração da foto da avó da menina. Mas o que seria mas artes da avó? A narrativa não explora tal aspecto. Os sentidos fornecidos pelo texto possibilitam inferir sobre os contextos sexuais e reprodutivos da “avó preta” que, por ter feito “arte”,teria dado à luz a uma menina“mulata”, ou seja, fruto de um relacionamento inter-racial.

Justifica-se, contudo, a pouca força desse argumento como componente explícito da narrativa, já que se trata de uma obra destinada à infância. Mas de qualquer modo, a própria presença da expressão “artes de uma avó preta” denota a intencionalidade de produzir outros sentidos para a leitora ou o leitor, de qualquer faixa etária. A palavra “artes” também pode ser explorada em uma conotação negativa referindo-se à “bagunça”, coisa errada. No universo infantil pode significar que a avó fazia algo considerado errado, inaceitável.

Seguindo o percurso de análise, a menina descobre suas raízes étnico-raciais, entende que sua cor é resultado de sua composição familiar quando sua mãe lhe mostra uma foto da avó. No entanto, “a menina bonita não faz experiência para descobrir o porquê de ser tão ‘pretinha’” (OLIVEIRA,2003,p.154). Não há, na narrativa, elementos que sugiram um fortalecimento do seu pertencimento étnico. Assim sendo, apesar de alguns elementos de valorização, essa obra pode não colaborar efetivamente para a construção de uma identidade negra positiva.

Por outro lado, o coelho, muito mais atento às diferenças e interessado na história da protagonista, compreende que a cor da pele é uma condição dada por herança genética. Portanto entende que para ter uma filha como a menina, ele deveria se “casar” com uma coelha “escura como a noite” (MACHADO, 2010, p.18). O casal de coelhos (formado a partir do encontro do coelho branco com uma coelha preta) tem, então, muitos filhotes e de todas as cores, “até”uma coelha pretinha como a menina. O “até” sugere uma diferenciação entre os demais filhotes, indicando tal filhote novamente como um ser exótico ou estigmatizado pelo fato de ser diferente dos irmãos.

Muitas outras questões podem ser levantadas com esse livro como o fato de a menina, ao ser questionada porque era preta, não sabia sua origem, apesar de ser comparada a uma princesa da África.

Bruna

ALMEIDA, Gercilga. Bruna e a galinha d'Angola, – 8.ed.–São Paulo: Pallas, 2011.Ilustrações: Valéria Saraiva

Número de páginas: 24

Cor/etnia da autora:branca

Cor/etnia da ilustradora: não identificada

Sinopse: O livro conta a história de Bruna, uma menina que se sentia sozinha e recorria a sua avó, de nome Nanã, para lhe contar histórias. A que ela mais gostava era a do panô da galinha d’Angola, a Conquém. Bruna sonhou com a Conquém e pediu ao tio, que era oleiro, para lhe ensinara modelar. Então ela fez uma galinha para fazer-lhe companhia. Em seu aniversário, ela ganhou da avó uma Conquém de verdade e as outras meninas da sua aldeia vieram brincar com ela e sua galinha. Certo dia a Conquém estava ciscando e achou alguma coisa. Quando as meninas desenterraram, a avó de Bruna percebeu ser seu baú perdido. Dentro dele havia outro panô da Conquém que contava a história da criação do mundo. Todos da aldeia se juntavam para ouvir as histórias de Nanã, que ficou muito contente e ensinou as meninas a pintarem panôs como os da África. Isso fez com que a aldeia se tornasse conhecida. Um dia a galinha sumiu e as meninas a encontraram chocando um ovo. Em pouco tempo cada menina tinha sua própria galinha d’Angola.

Fig. 13: Capa do livro “Bruna e a galinha d´Angola 

Fonte: Almeida (2011)

Análise: O livro, escrito por Gercilga de Almeida e ilustrado por Valéria Saraiva, tem um enredo mais bem elaborado em relação à formação identitária da personagem Bruna, que, diferentemente da primeira obra, tem um nome e encontra na avó e no tio (um bom oleiro) referências positivas de ancestralidade africana.

A avó, que veio de um país distante (não nomeado, mas situado no continente africano e provavelmente com influências Iorubás, por mencionar um mito iorubano de criação do mundo, além do próprio nome da avó homenagear uma orixá do panteão desse grupo étnico: Nanã), mantém a tradição de contar histórias como forma de transmitir conhecimentos a neta. De acordo com Vanda Machado (2006, p.80):

A memória das antigas sociedades africanas se apoiava na transmissão continuada de histórias, contendo conhecimentos, princípios e valores que preservavam,entre outros, o sentido agregador enquanto família e vinculação a terra. Portanto, o ato de lembrar está na essência das tradições que sustentam a organização comunitária e formas de governar nessas sociedades.

Apesar de a narrativa iniciar dizendo que a menina era muito sozinha e se sentia triste, não fica explícito o motivo da tristeza da menina, embora o banzo, sentimento de melancolia em relação à terra natal, experienciado por negras e negros em condição de escravizados, possa ser sugerido na trama. As figuras da mãe e do pai não aparecem na história, embora haja elementos na narrativa que indiquem que ela deva morar com pelo menos um deles, já que não morava com a avó: “quando estava muito triste ia para casa de sua avó Nanã” (ALMEIDA, 2011, s/p); “foi à casa de sua avó” (ALMEIDA, 2011, s/p). A relação da menina com sua avó, contadora de histórias, leva o público leitor a conhecer um pouco dos mitos do povo da avó, de um país muito distante, na África, sua terra natal, mas tudo feito sem incorrer em uma narrativa instrutiva. A menina gosta de ouvir as histórias contadas, evidenciando o respeito pelo conhecimento dos mais velhos e da sabedoria que podem transmitir.

Assim, as histórias míticas podem trazer muitos exemplos para a vida cotidiana, incluindo lições sobre o mistério da natureza humana. São histórias que, aprendidas, serviam e ainda servem para dar continuidade à tradição, à cultura e aos sonhos de um determinado grupo de indivíduos ou de uma sociedade (MACHADO, 2006, p. 84).

A figura da avó também representa a ligação da menina com seu passado, com a história de seu povo, e sua ancestralidade é exposta de forma positiva.Bruna gosta de ouvir a história de Òsún, que, como ela, também se sentia sozinha e criou a galinha d’Angola: “Conta a lenda de minha aldeia africana que Òsún era uma menina que se sentia só. Para lhe fazer companhia resolveu criar o que ela chamava de ‘o seu povo’” (ALMEIDA, 2011, s/p). Percebe-se a identificação da menina com o orixá, fato que pode auxiliar na superação do preconceito em relação às religiões de matriz africana no Brasil.

Fig. 14: Panô

Fonte: Almeida (2011, s/p)

Quando a temática religiosa é introduzida por uma história, cheia de sutilezas, contada pela avó, espera-se contribuir para o enfrentamento do preconceito religioso bem como da tendência ocidental de demonização dos orixás e supervalorização das religiões cristãs.

Bruna se identifica tanto com Òsún que chega a sonhar com a galinha d’Angola criada por ela. O pedido da menina ao seu tio para que ele fizesse uma galinha para ela com o barro, artefato e maior representação da orixá Nanã, evidenciam, novamente, relações familiares positivas e tradições transmitidas às novas gerações.

A narrativa segue até o aniversário de Bruna, em que a menina recebe de presente de sua avó uma galinha d’Angola de verdade. As meninas da aldeia passam a brincar com Bruna e sua Conquém, até que descobrem um baú que pertence à sua avó. Dentro do baú está um panô que conta a história da criação do mundo por Òsún.

Novamente nesse trecho a valorização do mito e da cultura africana é apresentado na trama por meio da história da criação do mundo:

– Bruna, minha querida, conta a lenda da minha aldeia africana que estes foram os animais que vieram ajudar a Conquém na criação do mundo e de meu povo. Conquém espalhou a terra quando desceu do céu para a Terra, o lagarto desceu para ver se a terra estava firme e o pombo foi avisar aos outros animais que já podiam descer para habitar naquele lugar. Esta é a história da criação do mundo que minha avó já me contava enquanto eu pintava panôs como este (ALMEIDA, 2011,s/p).

A forma como a narrativa trata questões como família, ancestralidades, mitologia, contribuem para a valorização de elementos culturais de povos africanos ao mesmo tempo em que atua no fortalecimento positivo da identidade de crianças negras brasileiras. Acrescentam-se que as ilustrações do livro demonstram cuidado com a estética já que as personagens são retratadas sem estereótipos, em situações cotidianas.

 Proximidades e distanciamentos entre as protagonistas

Ao compararmos as narrativas Bruna e galinha d'Angola e Menina bonita do laço de fita, podemos perceber que a principal proximidade entre as duas histórias é o fato de as protagonistas serem meninas negras. Sobre outras características e elementos composicionais das identidades de ambas, as duas narrativas percorrem caminhos bastante diferentes. Enquanto Bruna é uma criança que possui um nome, uma identidade e reconhece sua ancestralidade, a Menina é destituída de uma identificação nominal, tem dificuldade para acessar sua ancestralidade e reconhecer suas origens.

O livro de Ana Maria Machado mostra uma preocupação evidente com a exaltação da beleza da menina negra, valorizando a estética, porém reforçando elementos da branquidade normativa já que a Menina é reiteradamente ressaltada como bonita quase que numa relação de compensação do tipo “negra, mas bonita”. Na narrativa de Gercilga de Almeida não há essa explicitação sobre a estética da menina, apresentada muito mais por meio das ilustrações.

As duas meninas possuem uma avó que figuram na trama com a função de ligação com a história de vida das personagens. A avó da Menina é apresentada como uma “preta arteira”, responsabilizada (e essa é sua única função na trama) pela herança racial da menina. Ela não participa da história e apenas é mencionada como uma referência positiva(?) para a identidade da Menina. Já a avó de Bruna, Nanã, possui nome, é uma artista que pinta panôs e é contadora de histórias de sua antiga aldeia africana. Percebe-se na intenção das narrativas de promover o vínculo familiar e a ancestral, mas com abordagens e níveis de envolvimento com essa ancestralidade bastante diferente.

A presença de um animal na trama também é um ponto convergente das histórias. Mas enquanto Bruna tem no animal um bichinho de estimação e metaforicamente como um dos agentes de criação do mundo, a Menina bonita relaciona-se com o coelho estabelecendo diálogo, em nível de igualdade, o que produz um possível duplo movimento: a Menina bonita se insere no reino animal ou o coelho humaniza-se. Essa aproximação de personagem negra à natureza evidencia uma abordagem baseada no “racismo científico”, teoria racista do século 19 que utilizava elementos biológicos para tentar explicar cientificamente a hierarquização das raças.

O quadro a seguir sintetiza e evidencia as principais semelhanças e diferenças entre as obras analisadas.

 

CARACTERÍSTICAS

MENINA BONITA DO LAÇO

DE FITA

BRUNA E A GALINHA

D’ANGOLA

IDENTIFICAÇÃO

NOMINAL

Ausente

Bruna

CARACTERIZAÇÃO FÍSICA

Menina linda, linda, olhos de azeitonas pretas, cabelo enroladinhoenegro,peleescuraelustrosa (Atribuições do texto)

Menina negra, cabelo trançado, sapato nos pés, vestido vermelho combolinhasbrancas(Atribuições a partir do texto)

PROTAGONISTA

Menina bonita

Bruna

NARRADOR/A

Terceira pessoa

Terceira pessoa

PERSONAGENS

COADJUVANTES

Coelho branco, mãe

Avó, tio, meninas da aldeia,galinha d’Angola

MÃE/PAI

Mãe: Mulata linda e risonha

Pai: não citado

Mãe: não citada

Pai: não citado

AVÓ/AVÔ

Avó:   “preta”,   “arteira”  (sem

identificação nominal)

 

Avô: não citado

Avó:contadoradehistórias,artista (com identificação nominal: Nanã)

Avô: não citado

OUTROS

FAMILIARES

Não citados

Tio

ANO DE

PUBLICAÇÃO

1986 [1ª edição], 2010 (8ª edição)

2000 [1ª edição], 2011 (3ª edição)

MENÇÃO À

RELIGIOSIDADE/ RELIGIÃO

Não citada

Mitos de Òsún e de Nanã

RELAÇÃO COM ANIMAIS

Zoomorfizada: a coelha conversa com as personagens humanas. É personagem preponderante na trama

Não zoomorfizada: a galinha d’Angola não conversa com as personagens humanas emboratambém seja preponderante na trama

Quadro 1: Comparativo das características identitárias de Menina bonita do laço de fita e de Bruna e a galinha d'Angola

Fonte: Organização das autoras

Esta análise permitiu compreender a construção da identidade das personagens, estabelecendo semelhanças e diferenças fundamentais acerca das produções literárias, aprofundando a percepção dos significados que podem vir a assumir para crianças e/ou educadoras e educadores. Embora não tenha sido mera intenção estabelecer hierarquias entre as duas narrativas, atribuindo à segunda uma avaliação bem mais positiva que à primeira, é fato que no que se refere à composição das personagens e suas relações com seus pares, bem como suas identidades, uma delas foi bem mais elaborada. Tal resultado retoma o que foi discutido no início deste texto sobre a qualidade estética. Estamos diante de duas obras altamente escolarizadas mas com caminhos narrativos bastante diferenciados a ponto de uma ser muito mais condizente com o que se preconiza como qualidade estético-literária do que a outra,isso se considerarmos – e é o que estamos fazendo – que um critério de qualidade deve incluir também a valorização étnico- racial.

Considerando finalmente...

Considerando finalmente que a literatura infantil voltada para a criança pequena oferece pouca diversidade temática de livros, além da carência de gêneros literários – inclusive neste estudo predominaram os contos –, resta-nos avaliar a própria análise aqui empreendida para verificar em que medida seus resultados contribuem para a ampliação do debate sobre a escolarização da literatura e da qualidade literária.

Inicialmente foi proposta uma análise bibliográfica sobre livros com protagonistas negras com vistas a avaliar a qualidade em relação à valorização ou não da diversidade étnico-racial. Embora não tenha sido possível apresentar todos os livros analisados na pesquisa original, o que se concluiu foi que houve um melhoramento na elaboração de personagens negras protagonistas no que se refere a características estéticas e sua atuação na trama, contribuindo para uma diminuição de representações estereotipadas ou desumanizadoras.

Posteriormente, no entanto, ao se debruçar sobre duas obras popularizadas no ambiente escolar e muitas vezes utilizadas como pretexto para o trabalho de valorização da cultura negra,foi possível observar limites em uma delas, principalmente em relação à constituição da identidade da protagonista.

Assim, o que se verifica é que ainda quando se tratado protagonismo negro na literatura infantil os limites prevalecem, sobretudo no tocante à representatividade, pois apesar de nesta pesquisa serem apresentados apenas livros com protagonistas negras,a realidade nas bibliotecas escolares brasileiras é bem diferente: tais personagens são escassas. Ratificando esse fato, Heloísa Pires Lima (2005) propõe um importante exercício:

 Entre numa livraria, na biblioteca da escola, numa bienal do livro, ou se aproxime da estante de livros de sua casa. Agora, separe os que possuem personagens negros.[...] A primeira sensação era a de não existirem,de nunca aparecerem nas aventuras, nas histórias de amor, nas de suspense, no mundo das princesas, dos heróis e das turmas desses enredos (LIMA, 2005, p. 101- 102).

Tais personagens são escassas e, muitas vezes,preteridas para o trabalho de mediação da leitura com crianças pequenas (exceto em datas “comemorativas”, como o Dia Nacional da Consciência Negra,por exemplo). Mesmo que a legislação para a Educação das Relações Étnico- Raciais tenha estimulado, não tem sido suficiente para superar o racismo incutido nos valores estéticos e artísticos de um modo geral. Será necessário um investimento maciço em formação literária a partir de outros referenciais de humanidade. E, para tanto, torna-se preponderante a assunção da diversidade humana como mais um dos critérios para avaliar se uma obra literária tem qualidade ou não. Do contrário só nos resta o restrito e cada vez mais compartimentalizado cânone, termo que atua como um eufemismo para “literatura infantil com personagens brancas”.

 Referências

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            .Literatura infanto-juvenil contemporânea no Brasil e em Moçambique: tecendo negritudes.Itabaiana: GEPIADDE, Ano 4,v.7,p.75-92, jan-jun de 2010.

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VALE, Mauro. O almoço. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. (Coleção Conte outra vez).


[1]  Débora Oyayomi Cristina de Araújo é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Professora Adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[2] Jucimara Gomes da Silva é Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná; Professora da rede municipal de educação de Curitiba - PR. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[3] Rejane Georgina Pott Ferrando é Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná; Professora da rede municipal de educação de Curitiba - PR. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[4] Neste texto chamaremos de legislação da Educação das Relações Étnico-Raciais o conjunto de documentos legais que subsidiam a implementação do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena na educação brasileira: Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/2008, que modificaram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tornando obrigatório ensino de tais áreas do conhecimento; Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituída pelo Conselho Nacional de Educação por meio do Parecer CNE/CP 03/2014 e Resolução CNE/CP01/2004.

[5] Ver, por exemplo, os estudos de Gládis Elise Pereira da Silva Kaercher (2006) e Fúlvia Rosemberg (1985).

[6] No presente estudo será generalizado o vocábulo “personagem” no feminino, como era a origem etimológica dessa palavra. Nas citações, será mantida a grafia adotada pela autora ou autor.

[7] Em que “os olhos dela parecem duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra quando pula na chuva” (MACHADO, 2010, p. 5).

 

Nota: o presente texto das autoras Débora Cristina de Araujo, Jucimara Gomes da Silva e Rejane Georgina Pott Ferrando foi originalmente publicado no periódico Revista Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar (RECEI), v. 3, p. 269-288, 2017. Disponível  em http://periodicos.uern.br/index.php/RECEI/article/view/2307/1233