As negruras de Edson Cruz

 

Ronald Augusto

 

(...) um ex-seminarista

com cicatrizes à flor

da pele

não ungido

sem excesso de melanina

ainda longe da matéria alva

que se tingiu o mundo

irmão daqueles que não se alçaram

ao carro do êxito

e continuam sonhando

com um suposto e belo

fim.

 

Edson Cruz

 

Quando se trata de interpretar a escritura negra, a tendência é de encarecer apenas o que se compreende como o afeto político das poéticas que lhe são constitutivas. Contudo, talvez fosse preciso reivindicar com igual ênfase outro modo de identificação: o afeto estético, uma vez que o conceito de arte é inseparável do de literatura. Porém, ao contrário das implicações políticas na trama dos textos, a afeição estética – em sentido que não se restrinja ao meramente ornamental – às vezes parece exigir mais justificativas para ser considerada como relevante no processo de interpretação dessa produção. É como se o enraizamento do racismo sistêmico na formação brasileira e a necessidade de sua revogação ou superação utópico-revolucionária indicassem tanto a intérpretes como a escritores negros que qualquer outra preocupação que pudesse desviá-los do problema mereceria menos sua suspeita do que seu desdém.

 

Felizmente não é esse o caso de Negrura, mais recente livro de poemas de Edson Cruz. O que a linguagem contida em Negrura oferece ao leitor não é uma relação de intransigência entre esses afetos, onde em alguns casos flagramos o criador tendo que fazer uma escolha entre o político e o estético. Entretanto, a tragédia do racismo não pode ser enfrentada de um modo edulcorado ou com luvas de pelica e, ao mesmo tempo, é preciso não lançar por terra certa autonomia conquistada pelo poema em relação ao objeto. Edson Cruz não sucumbe nem ao denuncismo óbvio, nem pisa distraído o terreno violento do racismo com as sandálias levianas do poeticamente correto. Sua singular negrura (como a de todos os não-brancos) se transfigura em proliferantes sentidos, porém jamais fugindo à materialidade mesma da linguagem.

 

 

Referência

 

CRUZ, Edson. Negrura. Curitiba: Kotter, 2022.

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* Texto publicado originalmente como orelha para o livro Negrura, de Edson Cruz, publicado pela Kotter Editora, em 2022.

** Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Nasceu no Rio Grande do Sul.

 

 

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