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 Resenhas do livro TRIZ, de Maria Esther Maciel

 

 

Alécio Cunha

 

Fabricio Marques

 

Lúcia Castello Branco

 

Agenor Gonzaga

 

Lúcia Helena

 

Milton Luiz

 

Reynaldo Damazio

 

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JORNAL HOJE EM DIA, BH, 29/12/1998.

                        

                      POESIA UNA E MÚLTIPLA
   

Alécio Cunha

       Há muitas portas de entrada à poesia de Maria Esther Maciel. Mas enganam-se aqueles que confundem multiplicidade com ausência de um tema norteador do fazer poético. Em seu livro Triz, de 1998, a ensaísta e professora de Teoria da Literatura da UFMG consegue ser, simultaneamente, una e múltipla. Ao falar de si mesma, ela discorre sobre a pluralidade da poesia, seu amplo leque de atuação e ressonância.

     Conhecida por seus ensaios sobre o escritor mexicano Octavio Paz, reunidos em As vertigens da lucidez, Maria Esther aposta numa linguagem límpida. Cristaliza o cristalino, recusa o rebuscado, repõe à palavra seu poder de transformar o visto, o imaginado e o sentido em outros territórios. Escrita de elevado poder sedução.

     E que manobras ela usa para alcançar seus objetivos. Estratégica geógrafa, Maria Esther Maciel constrói sua poesia sobre dois aspectos que se fundem e complementam: o corpo e a memória. O primeiro, engrenagem concreta, reflete-se nas abstrações inconscientes da segunda, espelho entre o imaginário e o real, depositário de vitórias e derrotas, lucidez e loucura, altivez e vertigem.

     Conciliadores de contrários, os versos de Maciel também têm lá seus pontos de fuga. Fuga, no sentido musical do termo, definida pelo dicionarista e filólogo Aurélio Buarque de Hollanda como “composição polifônica em estilo contrapontístico sobre um tema único (sujeito), exposto sucessivamente numa ordem tonal, determinada pelas leis da cadência”.

     A definição do mestre Aurélio pode ser muito bem aplicada ao extrato poético de Maria Esther Maciel. Sua poesia é absolutamente musical, cadenciada e forjada sob a força de um eu lírico que anda misteriosamente sumindo da poesia contemporânea. Estão trocando a subjetividade por um cerebralismo exacerbado numa poesia ricamente pontilhada de imagens e despovoada de sensações, oca do viver, órfã da experiência mais bela do ser humano.

     A poesia de Maria Esther Maciel dribla as armadilhas das acontecências, enriquecendo o elemento factual com belíssimo artesanato vocabular. Rica em referências, seus textos tramam malabarismos em segredo. Importante ressaltar que suas peripécias lingüísticas não ficam presas somente a matrizes originais. Sua poesia intertextual liberta-se da fonte, fecundando-se em farta e fértil floresta de novas composições textuais.

     Além de tudo isso, a poeta rende-se à tentação do cromático. O poema “Mallarmé ao Acaso” revela: “de um infinito azul / serena ironia: cerração de sono / farrapo noturno / em minha alma vazia / tédio, bruma / desmemória / o céu é morto / em vão / Do nada escuro / o azul triunfa: / o azul, o azul, o azul, o azul”. Repetições blues que apenas ampliam a força quase cósmica das cores.

      Quando não mergulha nas profundezas da memória, Maria Esther Maciel relaxa refletindo sobre as múltiplas possibilidades e limites do corpo. O poema “Manuseio” revela esta filigrana táctil: “tépidas / essas mãos / que divagam / devagar / por meus relevos / óbvios / e  demoram / fundo / obscuro / ponto / onde o corpo / se    abisma / e    silencia, / absurdo”.

Terceira parte do livro, “Ponto de Fuga” evidencia belo projeto gráfico, com a autora apostando numa espécie de palimpsesto, com textos escritos sobre uma superfície inusual: eletrocardiogramas. Metaforicamente, essa ousadia gráfica oculta comentário poético sobre a finitude da vida e a presença inexorável da morte, indesejável das gentes em todos os tempos. O poema “Do pai” é uma montagem de fragmentos textuais de vários autores, entre eles Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Hilda Hilst. O resultado, que remete ao dadaísmo, é de absoluta coerência. Maria esther Maciel nomeia o próximo pai e desentende tudo.

 

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Jornal O Tempo -  BH, 24/04/1999.

                            

                       ENTRE ESTAR E NÃO-ESTAR
 
   

Fabrício Marques

Estar e, ao mesmo tempo, não-estar. No interstício desse espaço, querer produzir a contradição: Ser o estranho estrangeiro, voar e ficar entre as coisa que voam e ficam, entre o mesmo e o outro. Esses são os pontos de partida que devem ser considerados para se entrar nos poemas de Triz, de Maria Esther Maciel.

      Falando sobre a condição atópica do poeta em “A poética do espaço”, Gaston Bachelard refere-se à atopia como sendo um espaço equívoco, onde o espírito perdeu sua pátria geométrica e a alma flutua. Sempre não estar onde se está. Não-ser e ser outro. Em um estudo clássico sobre o cinema brasileiro, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes ressalta que “nada nos é estrangeiro, pois tudo é”.

      De acordo com o poeta mexicano Octavio Paz, o ato da criação poética é, para o sujeito, o caminho da perda e, paradoxalmente, da sua própria constituição. Paradoxos. Eles movem o (e se movem no) texto de Maria Esther: lúcida vertigem., vertiginosa lucidez. De novo, vale lembrar Paz: “toda palavra é relação entre uma negação e uma afirmação”.

      Como notou a professora Maria Luíza Ramos, a auto-semelhança dos versos de Triz abre espaço a uma complexidade infinita. Quem visita esses poemas e se irrita com a recorrência de alguns temas não conhece os paradoxos da lucidez. Os exemplos estão espalhados no livro: “sol/ que não há”; “Habitar o não sabido”; “Lá onde não sei estás”, “Minha cidade/ é onde não estou”; “a palavra/ que não há”. A poeta sabe que fica sempre algo a não ser dito pelo poeta.

      Mas essa é uma das portas de entrada para os textos de 
Maria Esther, dos quais nos chegam vozes em espiral: merecem referência Octavio Paz, Carlos Drummond de Andrade, T.S.Eliot, Mallarmé e a tradição oral da Índia. 

      Prender essa poesia ao paradoxo, às referências, é limitá-la. Há espaço também para o erotismo (em “Onde o outro”) e, sobretudo, espaço para transformar um fato biográfico (a perda do pai) em um dos momentos mais marcantes de Triz. Trata-se de “Ponto de Fuga”, situado estrategicamente no meio do livro. Compõe-se de uma bela colagem (“Constelação”), o poema “Do coração do pai” e de signos, traços, imagens embaralhadas, páginas em branco, “rastros” cardíacos (como diria o cronista Manoel Lobato). Não se pode perder de vista, ainda, as epígrafes de Clarice Lispector e E.M. Cioran, que presidem o coração que fala por um fio.

      
   
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SUPLEMENTO LITERÁRIO (SLMG), maio de 1999:

 

                                       POR UM TRIZ

Lúcia Castello Branco


       “Aquele que opera com a sonoridade das palavras margeia, dessa forma, um abismo. Aproxima-se da loucura, porque atua nessa ausência de garantia, nesse ateísmo insuspeitado que sempre falta na linguagem comum. Quando considera as palavras em si mesmas, quando trabalha sua materialidade, o poeta relega a segundo plano sua significação. Assume, então, um risco dos mais elevados, porque, ao fazê-lo invoca um nome, convoca um pai que não responderá, que ficará surdo à sua prece atéia.”
 

      Estas palavras de Gerard Pommier ocorrem-me, em primeiro lugar, porque Triz, livro de Maria Esther Maciel, evoca, no título e no traçado das letras, o beirabismo em que se sustenta, milagrosamente, a palavra poética: “entre o eco e o oco”, como observa a autora.

      Mas se Triz é, obviamente, aquilo que a expressão “por um triz” vem descortinar, é também fio, traço, risco de giz, como a linha fina que se encerra no centro oblíquo do livro: coração sangüíneo do pai.

      “Pai, assim somos tocados para sempre”, diz a filha, ao fim de um poema-palimpsesto em que ecoam as vozes de outros pais literários: Augusto dos Anjos, Drummond, Eduardo Milan, Pessoa, Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Bandeira, Murilo Mendes, Raúl Zurita. E o coração do pai cala.

      Mas, se o coração do pai silencia, é, no entanto, do lugar dessa falha de pai que o coração da filha se põe a falar, ainda que por um fio: “o coração do pai       fala/ o coração do pai    falha/ o coração do pai    cala/ o coração do pai     pára/ o coração do pai passa/ a limpo o coração / da filha    que fala/ por um fio”.

      E porque o pai permanece mudo, o sujeito poético, que se sustenta nessa linha tênue de riscos de giz, apaga-se e reaparece em sua liturgia, que enumera outros pais literários – Éluard, Camões, Mallarmé, Octavio Paz -, em sua ausência de outro, em que os poemas de amor se escrevem, em seu ponto de fuga, em que a morte do pai se desenha, em sua vida oblíqua, em que a voz de um certo eu se modula até se calar, novamente, no silêncio de sua própria excentricidade: longe, aqui.

      Assim se compõe esse livro de poemas de amor ao pai: aos pedaços. E são cinco os pedaços desse amor: Liturgia; Onde o outro; Ponto de fuga; A vida oblíqua; Longe, aqui. Cinco partes que não fazem um todo, mas antes se dispersam através de dois poemas – “Ofício”e “Onde o poema” -, portas de entrada e saída do livro que remetem, invariavelmente, para a atopia da palavra poética. Aos pedaços, como o quase rosto do pai que se encerra no coração do livro, como as linhas de um texto-eletrocardiograma que a filha assina e data, antes do desenho do órgão, este, sim, composto de partes que fazem um todo: um todo morto.

      Sístole ou diástole?  Que movimentos comportam o ritmo dessa pauta frágil do coração? Talvez aqueles da “aprendizagem da flecha”, como assinala a poeta. Aqueles cuja mira, o “alcance do alvo”, residiriam no “flash da alma”, “em vôo branco/ de silêncio/ e calma”.

      Nesse vôo branco, é fundamental que os pais se calem. Disso a filha sabe: “dê-me o esquecimento, meu pai”, dê-me o teu silêncio, meu pai”. Mas, se o pai permanece surdo a sua prece atéia, a filha, por fim, não alcança a graça do esquecimento. A esta só se chega, talvez, após certa travessia: “a solidez das pedras, o rigor das coisas/ a solidão sem dor”.

      A poesia de Maria Esther Maciel busca, na graça do esquecimento, a felicidade da desmemória. O rigor das coisas, como o perseguiram Mallarmé, Éluard, Octavio Paz, Fernando Pessoa. E, fascinada talvez pela solidez das pedras (lápides do pai?), esquece-se que o rigor das coisas – sua coisidade – só se atinge após o mergulho no que Heidegger denominava de “o aberto”, lugar de deslimite a que a poesia, com certeza, nos lança.

      Em Triz, a autora prefere o limite que uma linha estreita – fio de Ariadne – é ainda capaz de traçar. E mantém-se como beirabismo, talvez para não mergulhar, perigosamente, no aberto que o silêncio do pai descortina.

      Este é, certamente, um dos caminhos da poesia. Outro, entretanto, parece ser aquele percorrido pela filha que, às margens de um certo rio, “onde ramagens/ desalinham / ondulações/ da água/ límpida”, jaz, sem lápide. Desse lugar abandônico, onde não há solidez das pedras para ampara-la, pode-se ouvir, por um fio, o seu lamento: “Pai, não vês que estou ardendo?”

      Por um triz, essa voz não se faz letra. Por um triz, não temos ali a poesia do rigor das coisas, mas uma outra, menos vôo branco, aquela de sua imperfeição: poesia dilapidada. Assim, nesse duplo movimento “entre o mais e ou pouco / entre a sombra e o corpo / entre a voz e o sopro”, a poesia de Esther Maciel, milagrosamente, se escreve: por um triz. 

 

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Revista ALPHA. Patos de Minas: UNIPAM,  2001, n. 2, p.203-205:

 

 

TRIZ

 

 

 

Agenor Gonzaga dos Santos

 

 

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De início e por princípio, desejo afirmar que li o livro de Maria Esther Maciel com os olhos do leitor comum, admirador da poesia, buscando, muito mais que explica­ções, a intuição da autora. Ao mesmo tempo, não nego que fui também um leitor crítico, procurando desenvolver uma capacidade receptiva mais intensa e mais extensa, para comunicar as imagens recebidas. Tentei ser, em suma, o leitor crítico, que exerce uma atividade expressiva, comunicando as imagens intuitivas. Esses dois graus de leitura, expostos por Dámaso Alonso, em sua obra Poesia espanhola, levaram-me a também intuir e, a partir daí, poder relatar aquilo que me pareceu uma análise sincera.

 

O livro, como um todo, a par das inovações formais evidentes, das quais me abs­tenho de falar, remete a duas vertentes: a da filha e a do pai. Na primeira vertente, está presente a filha em tom confessional, poeta ciente de seu ofício, o exercício do abstrato, ou seja:

 

Escrever

a água

da palavra mar       

 vôo

da palavra ave

o rio

da palavra margem o olho

da palavra imagem o oco

da palavra nada.

 

E o oco da palavra nada cria um clima noturno em que o poeta, ser pensante e matemático, mas sensível e mágico, que desconhece quando haverá um ano azul, por­que sabe que "o dia é noite no poema" e que só restam "ecos entre as cinzas", fecha a sua dor para o mundo e abre a mesma dor para o poema. O resultado é a consciência da solidão: habitada por sombras, naturezas mortas, leituras e desvios até outras artes, mas sempre solidão e sempre dor inadiável. Apenas por um TRIZ, apenas "a grande custo, milagrosamente", para citar uma das epígrafes do livro, a autora reconquista o ato de viver, ainda que a "Leonor" que "voltou à fonte", permita sempre que a saudade teça suas ausências nesse caminhar e a suave Leonor julgue tristemente que ela própria dei­xou-se ficar nos tempos memoriais e só consegue dizer a solitude de quem o silêncio assombra. A filha, nos momentos do poema, é pura solidão em busca de azul.

 

         Quem vê o pai, vê pelos olhos dolorosos da filha. Nem os instantes em que o Outro se apresenta, como companheiro e como chamado à realidade, puxando-a pelas linhas do amor e do contato físico, nem nesses instantes, mais que fugidios no livro, têm o condão de se interpor entre a falta do pai e a ansiosa consciência da filha. Aquilo que se situa na Trama, no Amor e no Manuseio empalidece ante a volta da imagem fortíssi­ma do pai, e a filha, olhando o espelho, surpreende-se convergindo - em reeescrita e recomeço - às suas origens. E, à medida que "A noite passa, intacta" sobre seu coração, a autora se reconhece Maria, a de voz sem eloqüência, cabelos longos, a da origem sem começo, e Esther, a da história sem desfecho, a que fala por um fio das palavras, pois tudo o que resta forte, transferível, mas inapagável, é a consciência da dor. A vida se tomou oblíqua, já que ela não vai mais para onde for o Pai, ela não compra mais biblio­tecas de obras célebres, ela não vê mais o Pai montando a cavalo, possuindo uma fazen­da de éter, indo para o campo de nuvens, movendo a boca silenciosamente como um peixe, num recado agora silencioso, e despertando um amor tão permanente que o Se­nhor, se houvesse conhecido, certamente o teria amado igual a ela. Porém, o coração do Pai, que a abandonou.

 

O coração do pai         fala

O coração do pai        falha

O coração do pai       cala

O coração do pai      pára

 

O coração do pai     passa

 

a limpo o coração

 da filha   que fala

 

                       por um fio.

 

 

         O coração do pai, na verdade, cada vez mais leva a filha a despedaçar seu pró­prio coração em fractais que se unem pelo mesmo sentimento e pela mesma ansiedade.

 

         O que parece, no livro, poemas dispersos são fragmentos que expõem uma uni­cidade de tom, como caleidoscópicos instantes de procura e de constatação, convergin­do para compor o retrato da filha e o retrato do pai. Por esse motivo, o ofício do poeta é cantar o abstrato e a ausência, na liturgia da busca do outro. A vida restou oblíqua, mas a verdade transparece inequívoca: o longe é aqui, e a filha, identificada com as princesas de quem fala, é mesmo por um TRIZ que sobrevive, nessa dualidade silenciosa que se revela na mulher e na escritora. A mulher que vive à sombra da saudade e da dor e a escritora que desvela a mulher, oculta entre a vida real e a vida da memória.

 

Não sei se é porque conheci o pai, mas, como leitor ingênuo, tive instantes de leitura verdadeiramente barrocos, pelo prazer da beleza da dor e da solidão retratadas. Não sei se é porque conheço a filha, que tive também momentos de verdadeira estesia com os poemas de Triz. De qualquer forma, por força das lições que julguei ter decifra­do, saí da leitura muito mais enriquecido nas minhas experiências de filho, de pai e de leitor.

 

 

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SCRIPTA, Belo Horizonte, PUC-Minas, v. 3, n. 5, p. 271-290, 2° sem. 1999:

 

TELA DE ESTHER

 

Lúcia Helena (UFF)

 

 

Já se disse que as religiões surgiram da necessidade de se responder à angústia dos homens diante da morte. Na difícil fronteira da vi­da contra a morte, aí também atua a arte, só que sem fazer à terra dos homens a exigência da fé. Não existe outra atividade humana que possa nos colocar diante de nossa condição subjetiva e social com a mesma intensidade e riqueza, sem que essa experiência exija, como na religião, uma afirmação de transcendência. Capaz de nos fazer tocar no paradoxo que constitui a identidade - o absurdo de viver pa­ra morrer - a arte, em especial a literatura, inventa e refaz os bens de raiz. Diante da perda e do silêncio, revela-se o entrelugar, em que as coisas contrárias entre si, como a vida e a morte, o cálculo e o acaso se integram.

 

É o que ocorre em Triz, poema em poemas, em que o desenho esguio do ser e de seus paradoxos é traçado com sensibilidade, argúcia e intensa, ao mesmo tempo que contida, emoção. Se, no dizer cabralino, Marianne Moore emprega, quando escreve, lápis-bisturi, e compõe o verso cicaTriz, Maria Esther perfaz uma outra via. Seus textos como que insinu­am a régua e o compasso de um Mondrian que, no entanto presentes, refluem e se escon­dem, desfazendo-se a incisividade.do traço, tornado oblíquo, insinuante pincel mais do que um bisturi reto ou outro, de Francis Ponge, que se ramificasse.

 

Triz, não de cicaTriz, portanto, mas de teia fina sutil com que Esther tece sua tela, na qual pintura e literatura, na delicadeza de imagens firmes, recortam e fazem confluir, sob o signo da alteridade, a segurança e o absurdo. Estar à beira do abismo, abismar-se, como a dama ao espelho; e estar à beira da fonte, como a dama louçã; Leonor e Baudelaire e Mallar­mé, o azul, o azul, o azul. É a fronteira dilemática - de um traço ao mesmo tempo abismal e seguro: desenho do entrelugar, em que a palavra se dobra em silêncio, em que o vazio e o pleno se encontram e separam. É flor de pedra que consome, é o ser de soslaio. Jamais o sol a pino da faca só lâmina, mas o pressentimento de estar por um fio, por um Triz, resvalando, entre o ser e o nada, a pintura rara do instante.

 

Mas é também Triz, sim, de cicatriz. Em que o sol negro de Nerval faz do dia noite, na tela de Esther, quando a terra triste do poema enterra o fim e o infinito caleidoscópio da melancolia. Carne, osso, lápis, lápide e giz, lembranças e litania que solicitam a solidez das pedras, o rigor das coisas, a superação da dor. O corte dramático da cicatriz é o pathos, lugar de nascença de Triz, poesia saturnina que vive e sobrevive da metamorfose e da capacidade protêica da ambigüidade: "Entre as coisas que voam// e as coisas que ficam// vôo e fico". E, "daquele que amo// (...)// Quero tudo: o que falta// e o que sobra// o óbvio e o absurdo".

 

Triz - o verso, a vida, o poema por um Triz - diz de uma vertigem que alude, nas for­mas da linguagem poética, às barrocas exéquias, despojos lutuosos do impossível milagre: "exercícios de imagem// para a vertigem//" em que se encena o ato final: a constelação do que está "en el eter constelado". A vida contra a morte, a vida por um Triz, a vida que se des­faz e refaz como paisagem de linguagem, em que o poema - "Ele sabe// que ninguém sabe/ / em que azul!/ ocultas// teu absurdo".

 

Poema em poemas, Triz, cicatriz-vertigem, leva Leonor à fonte, onde o outro se reser­va e se arrisca em solidão, em busca da flecha que faz mover o que não morre. Triz, o poe­ma-por-um-triz-vertigem-cicatriz, "sem que seja três//ou um de cada vez//", "entre o eco e o oco", leva a indagar, sob o impacto de sua força, uma questão temível: "O que somos da vi­da: // talo ou sumo?" Sísifo sem resposta, o poema faz escorrer sua tinta, palavra-tela, papel de aço, traço do abstrato, "a cor lilás// da noite// que reluz// num verso de Éluard". Num im­passe, a arte se dá conta de que o silêncio assombra a palavra que jaz sob a serena ironia. Do "nada escuro", algo triunfa: apenas a arte, diria Augusto dos Anjos, esse poeta das ruínas, esculpe a humana mágoa. Triz é o traço de mais fino traço sobre um paradoxo: quanto mais "Tu presencia me desabita", mais "Tu ausência me habita". Lindo poema em poemas, texto que dialoga com uma profícua tradição da lira em consonância com o luto, a melancolia e a luta com a palavra, - Triz é uma das mais belas obras da literatura brasileira recente.

 

 

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JORNAL O TEMPO,  BH, 17/12/1998

                 Esther Maciel volta à poesia com "Triz"

 

 

 MILTON lUIZ,

 REPÓRTER

 

Triz, palavra que vem da ex­pressão "por um triz", significa, segundo o Aurélio, por pouco, por Um fio, por uma linha. Uma idéia que, segundo Maria Esther Ma­ciel, define a própria existência. "Nós somos e estamos por um triz", afirma. Por isso, escolheu "Triz" para ser o título de seu no­vo livro, que será lançado hoje.

"A própria palavra está por um triz. No mesmo momento em que é proferida, ela pode marcar a ausência da coisa que está di­zendo. A palavra está sempre com esse pé no abismo", afirma. Por outro lado, a idéia remete ao "Trilce" do poeta peruano César Vallejo. "Triz também é uma pala­vra que está dentro da palavra a­triz, que aponta parà aquela idéia de Femando Pessoa do poeta co­mo fingidor, que está encenando ali sua própria existência".

Esse é o segundo livro de poemas de Maria Esther que es­treou, em 1984, com "Dos Have­res do Corpo". Um hiato de tem­po que não sjgnificou um âistan­ciamento da criação poética. "Ao longo de todo esse período, escrevi muito. Foi uma opção minha esperar para publicar de novo. Queria amadurecer mais esses poemas", explica.

Esses 14 anos viram a criação poética de Maria Esther .mudar muito. MUdou a relação com as palavras e com o próprio fazer poético, ainda que uma certa dic­ção permaneça. "Meu primeiro li­vro ainda está voltado para um. certo traço intuitivo. Nesse últi­mo, consegui aliar essa esponta­neidade com uma elaboração maior da linguagem".

"Triz" é dividido em v.árias partes. Começa com o poema "O­fício" CEscrever Ia água/'cta pala- .

vra mar 10 vôo Ida palavra ave 10 rio Ida palavra margem 10 olho Ida palavra imagem 10 oco Ida palavra nada"). Em seguida, há uma série voltada para um diálogo implícito com poetas de várias tradições. Nessa parte, o poema "Desenho do Livro" explica o título da obra: "onde estou não é sempre le o que sou é por um triz".

Na segunda parte de "Triz", a

autora explora temas de seu pri­meiro livro: amor, paixão, corpo e a presença da morte, muito recor­rente no livro. "Perdi meu pai, ano passado, e a maneira' que encon­trei para elaborar essa perda foi escrevendo. Só que procurei não escrever poemas passionais ou.

piegas. Risco que se corre quando se trata de uIÍl tema tão visceral". Além do interesse pela filosofia e pela estética orientais, Maria Es­ther explica que seu trabalho tem muito da concisão, síntese e pre­sença de paradoxo dos orientais.

 

 

 

 

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