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 Resenhas de O LIVRO DE ZENÓBIA, de Maria Esther Maciel

 

 

 

Carlos Herculano Lopes

 

Manuel da Costa Pinto

 

Marcelo Moutinho

 

Fabrício Carpinejar

 

Claudio Daniel

 

Ricardo Teixeira de Salles

 

José Aloise Bahía

 

Sérgio Medeiros/Dirce Waltrick do Amarante

 

Sérgio de Sá (entrevista)

 

Carlos Roberto da Silva

 

Sabrina Sedlmeyer

 

José Alexandre Marino

 

Idelber Avelar

 

 

 

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          JORNAL ESTADO DE MINAS

         Belo Horizonte, 05/06/2004

       

        Indagação existencial

                                   Carlos Herculano Lopes

 

Escritora experimentada em livros, como Dos Haveres do Corpo , com o qual fez sua estréia na poesia em 1985, e com os ensaios As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octávio Paz , de 1995, e A Lição do Fogo , de 1998, entre outros, Maria Esther Maciel vem construindo uma obra sólida, com a qual tem conquistado o respeito dos seus leitores e da crítica especializada. Nascida em Patos de Minas, mas vivendo em Belo Horizonte há muitos anos, onde é professora de Teoria da Literatura na UFMG, se faltava a ela escrever ficção, essa lacuna foi plenamente preenchida agora, com o esperado lançamento de O Livro de Zenóbia , que há muito tempo ela vinha escrevendo. Mas que estranho livro é este, cujo gênero nem a própria autora, quando indagada, consegue definir qual é?

 

"Tentei misturar em um mesmo texto poesia, prosa e aforismo”, confessa a escritora, que, dando vida a uma fascinante personagem de nome Zenóbia, ao redor da qual giram todas as tramas e histórias deste belo livro, construiu uma prosa de primeira, digna de figurar entre o que de melhor está sendo escrito hoje no País. Com textos curtos e carregados de emoção, nos quais as palavras se encaixam na medida certa, Maria Esther Maciel, com um olhar às vezes perplexo, às vezes curioso, vai aos poucos - neste que talvez possa ser chamado de um romance em movimento, ou até mesmo desmontável - Ievando os seus leitores a tentar encontrar as chaves desse intrincado universo, que com maestria ela conseguiu construir. Cabe a cada um de nós, se é que isto seja possível, tentar desvendá-lo, ou pelo menos chegar até suas portas.

Mas não será tarefa fácil. Ou como disse o escritor e crítico Nelson de Oliveira: "Ah, Zenóbia, Zenóbia. Tua delicadeza no manuseio da nossa vã filosofia move prédios e comove montanhas. Tenho medo de que você faça com os ossos dos seus leitores o mesmo que fez com os meus." Mas vale a pena correr o risco, já que deste Livro de Zenóbia ninguém, com certeza, sairá impune. 
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       FOLHA DE SÃO PAULO

         Ilustrada, 10/07/2004

       

        RODAPÉ


Um reencantamento do mundo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

 

"Cada coleção é um teatro da memória, uma dramatização e uma "mise-en-scène" de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação."
A frase do ensaísta Philipp Blom, extraída de "Ter e Manter -°Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções" (Record), ajuda a compreender "O Livro de Zenóbia", primeira obra de ficção da crítica literária e poeta Maria Esther Maciel.
Enigmático em sua simplicidade, o livro é uma espécie de baú de histórias articuladas ao redor de Zenóbia -personagem ficcional composta por caracteres que parecem extraídos de memórias e tradições familiares.
Essa ambigüidade é reforçada pela nota biográfica colocada no fim do livro: "Zenóbia nasceu na fazenda Palmyra, nos arredores de Patos de Minas, em 25 de março de 1922. (...) Dizem que escreveu três livros de poemas, dois romances, uma coletânea de 20 contos curtos, duas biografias de santas e um pequeno estudo sobre orquídeas. Quase todos inéditos".
A referência a Patos (cidade natal da própria Maria Esther Maciel) e a seca objetividade desse apêndice (que contrasta com o tom epifânico do resto do livro) sugerem que Zenóbia é uma dessas personagens que existiram em carne e osso, mas cuja biografia foi sendo alimentada pela mitologia doméstica.
Ao contrário de uma biografia romanceada, todavia, "O Livro de Zenóbia" é caleidoscópico, descontínuo, dividido em seções com textos aforísticos que descrevem cenas da infância, sonhos e pesadelos de Zenóbia, reminiscências de seus amores, amizades, animais de estimação.
Essa fragmentação obedece a um princípio de composição responsável pelos encantos de uma prosa em que os seres e as coisas se equivalem, sobrevivendo apenas naquele "teatro da memória" de que fala Blom.
As personagens de "O Livro de Zenóbia" não são nem planas nem esféricas (para usar a terminologia de Forster), pois são aprendidas apenas pelos vestígios que deixaram na lembrança: a avó quitandeira que fazia roscas de trança, o tio que queria "receber os estigmas da Paixão", o menino que "dava aulas para os vidros vazios de remédio", o gato que Zenóbia enterra em papel de seda azul.
Da mesma maneira, o mundo à sua volta é organizado segundo uma sensibilidade para as miudezas, para os aromas e sabores adormecidos no álbum de família e que, ao final de "O Livro de Zenóbia", ela vai ressuscitando por meio de receitas (pontuadas com frases que lembram os chavões das velhas cozinheiras) e de listas de nomes que materializam as obsessões da personagem ("nomes de cidades", "temperos e ervas de cheiro", "livros de cabeceira").
Algumas dessas listas -como os elencos de "peixes perplexos" ou de "aves em perigo"- trazem a marca da gratuidade, expõem, por antífrase, o caráter arbitrário dos sistemas classificatórios, lembrando a célebre enciclopédia de animais fabulosos criada por Borges e citada por Foucault no início de "As Palavras e as Coisas".
Vale observar, aliás, que Maria Esther Maciel acaba de lançar, pela mesma editora de "O Livro de Zenóbia", um belo volume de ensaios intitulado "A Memória das Coisas", em que aborda justamente o que chama de "inventários do mundo" e "imaginação taxonômica", ou seja, sistemas de classificação (e fabricação) do real formulados por autores como o cineasta Peter Greenaway, o artista Arthur Bispo do Rosário e o escritor Georges Perec (além do próprio Borges).
Como observa a autora, a compulsão de colecionar e classificar é um "antídoto contra a destrutividade do tempo e da morte". Curiosamente, "O Livro de Zenóbia" está muito distante da perturbação introduzida na ordem do mundo pelo rigor delirante daqueles artistas: sua transubstanciação se dá em surdina e corresponde a um desejo de reencantamento do mundo por meio de pequenos êxtases que desvelam assombro e estranhamento no seio daquilo que é mais cotidiano.

 

O Livro de Zenóbia
    
Autora: Maria Esther Maciel
Editora: Lamparina
Quanto: R$ 29,50 (160 págs.)

 
      
   
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        Jornal do Brasil  /  Data:7/8/2004
       

       Romance? Diário? Ou bela colcha de retalhos?

 

                                                        Marcelo Moutinho

Zenóbia gosta de flores e plantas de raízes drásticas, de peixes perplexos, receitas criativas, cidades raras, palavras inventadas. Zenóbia tem filhos e se lembra dos que nem nasceram. Adora suas tias, amigas, ex-namorados - um deles, Belmiro, "queria todas as dores que não sentia para sobre elas escrever poemas tristes". Em companhia da mãe, Zenóbia plana em vôos implícitos, dividindo duas "quase-solidões". Mas a fascinante personagem criada pela poeta e ensaísta Maria Esther Maciel não se dá a conhecer no todo; apenas por meio de anotações, aforismos, pequenos comentários, listas pessoais. Como definir O livro de Zenóbia? Diário? Caderno de registros? Álbum de família? Conjunto de recortes? Tarefa vã. Melhor sorvê-lo.

 

A narrativa elaborada por Maria Esther Maciel não se inscreve no convencional dispositivo da representação, não anseia por verossimilhança, como destaca Lúcia Castello Branco no posfácio. Insere-se, sim, na perspectiva do romance pós-moderno, com suas ramificações, sua não-linearidade, suas microabordagens, sua fluidez permanente, seus jogos de montar, expedientes que vêm sendo trabalhados com maior ou menor talento por relevante parcela do que se pode denominar hoje de "nova literatura brasileira".

Oblíqua, como quis Clarice Lispector, é a vida de Zenóbia, esta filha de Zeus e da memória, cujos rabiscos marcam o "desencontro leve entre as coisas (...) e entre seres que se perdem uns aos outros, entre palavras que quase não dizem mais nada". Assim como em Água Viva, romance citado na epígrafe, esse "leve desencontro" é, para ela, "a única forma de suportar a vida em cheio".

A escritura de Clarice, aliás, permeia toda a obra, que contém ecos também de autores como Manoel de Barros e Italo Calvino - este, principalmente se lembramos da estrutura de As cidades invisíveis. Pois O livro de Zenóbia (novela? romance? coletânea de contos?) assemelha-se a uma colcha de retalhos urdida por partos e mortes sucessivas, aromas e súbitas iluminações, flores e pessoas, a quem observa e com quem convive no decorrer de toda a existência, e que no livro ganham uma segunda voz, a da narradora. É esta quem, por vezes, confessa que a obsessiva busca pela "palavra" capaz de exprimir torna-se infrutífera: "Era para ter aprendido que a imperfeição é nossa porção de paraíso possível e que há sempre um poema que não chega à palavra, por mais que delire", sublinha em certa passagem. A "palavra" que aqui falta é capaz, contudo, de ajudar a purgar o horror da imagem do corpo já decomposto do pai. "Não, ela não deseja dizer que aquele que ora foi um corpo agora é um cadáver que já não se dá a ver senão com palavra", e então escreve metáforas "para velar a realidade das larvas, os reveses das vísceras e das cartilagens. Falsas paisagens da alma, do nada inumerável".

 

A paixão pela "palavra" não se refere meramente ao aspecto poético que esta possa encerrar. Longe disso. Zenóbia interessa-se por plantas de "climas ríspidos" e nomes científicos - Alpinia sesilis, Ascanea sativa, Rosa canina -, que cultiva. As belas ilustrações de Elvira Vigna, baseadas em desenhos de plantas americanas feitos por botânicos ingleses do século 17, captam bem o traço exótico que o olhar deles lhes dispensou. E espelham um estranhamento que é também de Zenóbia. Ela se vê atraída pelo "esquisito", pelo "difícil", assinala a narradora. Seu gato, por exemplo, chamava-se Finnicius. Os (inusuais?) apreços da personagem aparecem listados no fim do livro, ao lado de seus contos, de suas cidades preferidas e de seus livros de cabeceira - entre eles, não por acaso, três de Clarice: A paixão segundo G.H., Laços de família e o já citado Água viva. Também estão no romance suas receitas culinárias - salada de melancia com hortelã e queijo de cabra, sopa de cenoura com maçã ao açafrão, pamonha com erva-doce -, listas de temperos, ervas de cheiro e aves raras, notas biográficas sobre a protagonista e até mesmo uma breve fortuna crítica a respeito do próprio livro.

 

Foi com as aves migratórias, aliás, que Zenóbia aprendeu a "inventar seu espaço" particular. Se espaço não há, ela o imagina; assim como se não há palavra, ela a cria, sempre liricamente. Pois "é a lírica, e não a crônica, que define seu pacto com a vida e o sonho" - substantivos cujas fronteiras no livro mostram-se quase invisíveis -, embora o "trágico constitua seu pathos, seu idioma subterrâneo". "Não é na dor que reluz o mundano?", indaga a narradora. Talvez, sim. E possivelmente dela Zenóbia retire sua delicadeza tão pouco óbvia, crendo firme e serenamente, como intuiu no funeral de um amigo, que "toda perda oculta uma controversa beleza".

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DIÁRIO CATARINENSE

 caderno de cultura  -  Florianópolis, 07 de agosto de 2004.      

 

 

Uma coleção de cidades raras

 

FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Cinco Marias e Caixa de Sapatos, entre outros livros

 

 

Maria Esther Maciel lança O Livro de Zenóbia, pequena ficção sobre a delicadeza de guardar a memória familiar

 

  

Guardar é diferente de esconder, consiste em proteger e zelar um bem da corrosão temporal para melhor partilhar. Esconder já acentua um egoísmo, a recusa de disponibilizar algo ao mundo. O Livro de Zenóbia (Lamparina, 157 páginas), estréia na ficção da poeta e ensaísta mineira Maria Esther Maciel, guarda, emoldurando recortes e depoimentos de uma vida. Uma vida mais dada para fora do que para dentro da escrita. Uma vida mais falada do que letra, mais ouvido do que boca, mais feita do que se ouviu do que aquilo que teria acontecido. Em breves capítulos, a fábula retrata o percurso de Zenóbia, personagem nascida na Fazenda Palmyra, em Patos de Minas (MG), em 1922. Bióloga de profissão e escritora nas horas vagas, teria legado contos, poemas e romances inéditos, conforme revela uma nota ao final da obra. Os dados objetivos também pouco acrescentam. O que a autora faz é iluminar e não explicar. São assobios litúrgicos a mostrar os interesses, as manias, as crenças de uma mulher recolhida em seu interior e na família. Não tem nada de assombroso, nenhuma briga, ação ou crise. O enredo poderia ser resumido simplesmente como a narração do que se passa no estômago, no coração e no pulmão de um corpo feminino. Fica-se em contato com os pesadelos, lembranças inacabadas, sensações, com o refinado artesanato de sua sensibilidade. E é a falta de acontecimento que gera uma tensão misteriosa, uma hesitação, com a cesura mágica dos parágrafos, tal segredo se revelando aos poucos. Prevalece um encantamento do círculo corriqueiro, de permitir o mundo correr sem interferir no curso.

Zenóbia é sobrenatural porque é comum demais. Não pede nada que não recebe. Não deixa de oferecer o que sobra. Essa normalidade de Zenóbia cativa pela fidelidade, pela devoção aos ensinamentos da mãe e da avó, por uma santidade leiga, que impõe essencialidade e pobreza e recusa o exagero dos milagres. A protagonista se esvazia para se preencher. Ao ajudar os vizinhos e se doar aos outros, multiplica a existência amorosa. Não vive à imagem de Deus, mas em suas "margens". Numa cidade onde não se é notícia, cultiva princípios e virtudes em uma estreita horta, nos dons culinários e nas leituras da cabeceira da cama. Fala de poesia como quem dá conselhos de saúde.




"O esquecimento é mesmo o único perdão? - perguntou Zenóbia à sua mãe, quando esta lhe contou o caso triste de uma irmã. Era sempre assim nessas manhãs possíveis: as duas falavam dos abismos da casa e dos senões do dia, sem resíduos de aflição. Ou cogitavam sobre as coisas que lhe poderiam advir a qualquer hora, ou não. Eram seus instantes de afinidade sem dissídio, de afeto sem ficção. Cada uma com seu vôo implícito, sua quase solidão."

O livro tem um perfil de diário, de um baú sem fundo, com listas de palavras prediletas, ervas daninhas, peixes perplexos, cidades raras, temperos e ervas de cheiro, aves em perigo, orquídeas e bromélias e obras favoritas.

Em primeiro lugar, Zenóbia expressa o que gosta, sem medo de se expor. Em segundo, sua dispersão é concentração. Não valoriza a vivência racional e cronologicamente, mas segundo a intensidade de seus desejos. A aparência descontínua do texto oculta - ao fundo - uma organização rígida de aforismos e saberes. Ela não classifica, ato da memória, porém coleciona, ato da imaginação. Colecionar é ceder a vida em troca, representando o caminho vivido e as escolhas a partir de um mostruário de pertences.

Classificar é manter um distanciamento crítico, uma independência pessoal e uma autonomia de análise. Enquanto a coleção busca a qualidade poética e a convivência, reconhecer uma ancestralidade anterior; a classificação pretende resultados práticos, científicos, imediatos, comprovando teses pela quantidade e dissecação. Para a coleção, a coisa já é um fim; para a classificação, ela é apenas um meio.

Saudáveis obsessões - As coleções de Maria Esther Maciel destoam ainda do recurso de "inventário" da poesia de Manoel de Barros, em Gramática Expositiva do Chão, ou das instalações do artista plástico Arthur Bispo do Rosário. Os objetos dela não trocam de função, permanecem do princípio ao fim com sua integridade espiritual e emocional. Barros e Rosário, pelo contrário, purificam os objetos da doença do consumo, alteram suas finalidades, renovando o sentido de banalidades e mistificando coisas vulgares e triviais em verdades libertadoras.

Maria Esther Maciel não parte para a transubstanciação, quer o delírio da coisa enquanto coisa. Mantém o sentido do que vê, separa para preservar, não despreza o consumo para favorecer o modo como cada coisa foi consumida. Ela se importa com a história do uso acima das necessidades materiais, com o valor da permanência e com o que lhe é caro e prazeroso acima do preço e da cotação. Encontra o êxtase na intimidade com o prosaico, não no estranhamento e distorção.

Um dos "olhos mágicos" de leitura está na frase de uma tia-avó: "Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas". Zenóbia, serenada na imutabilidade, não muda as amizades, os amores, a si mesma para assim permanecer mudando. Suas mudanças um tanto sutis se referem a compreender o lugar de nascimento e aproveitá-lo em seu tempo.

A prosa poética não oferece definições exatas, e sim estados de alma, vagas noções de lugar, pressentimentos que podem ter eclodido ou não. Às vezes, há coincidências entre a profecia e a vivência; outras, esquecimento do corpo de completar uma frase. "Tudo acontece em nós muito antes de ter acontecido". Zenóbia, adiantada de si porque não renega o passado, publica sua biografia em todos que a enxergam. Seus fatos, na verdade, são os casos que conta. Admira as sutilezas, os detalhes diáfanos, os hábitos herdados, como ruminar os dias de chuva, lustrar as fivelas dos sapatos, comprar palavras ainda que roubadas, batizar a filha que não nasceu, descobrir na crueldade da avó uma forma de amor, catar nomes capazes de espantar os pássaros nos catálogos telefônicos.

Os extremos no livro se convidam, se tocam, sem pressionar confidências. Tudo é um álbum de família com fotos arrancadas, cheio de conselhos no lugar das legendas. Arranca-se a foto para um dia achá-la no bolso de um paletó e de um casaco. Sabedoria que vai se completando de geração a geração. "Antes de começar a comer, não diga nenhuma palavra." Curiosidade caseira, doméstica, nunca reprimida, expansão cotidiana reconhecível nas vozes de outra escritora mineira, Adélia Prado.

Se das três mortes, Zenóbia conservou somente a lembrança da primeira, com certeza não deixou de viver todas as três. "Existir não é plágio", a personagem bem sabe o que diz, existindo além da escritura.

 

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  A Saga de Zenóbia

 

 

                                             Claudio Daniel

 

   

 O Livro de Zenóbia, de Maria Esther Maciel, é uma obra insólita que escapa às classificações habituais da crítica literária. Romance, novela ou prosa poética, esta estranha narrativa se desenvolve de maneira não-linear, como as seqüências melódicas de uma peça de jazz, ou como a combinação imprevista de nuances numa pintura. A saga doméstica de Zenóbia é contada a partir de mínimas recordações, que formam uma espécie de colcha de retalhos, iludindo o leitor com sua aparente simplicidade. Somos apresentados a sua família, seus livros, flores e receitas favoritas, a seus pensamentos e emoções, em pequenos capítulos ou fragmentos que nada têm em comum com as técnicas de construção do realismo. As imagens são recortadas, objetos de uso comum são associados a emoções ou estados de espírito, em linhas concisas, de alta precisão e beleza plástica (como, por exemplo, nesta passagem: “Foi em novembro que ele soube que iria morrer em poucos anos. Mas durou apenas até o primeiro outono, deixando para Zenóbia um ramo de folhas secas, um anjo indeciso de gesso e um livro laranja, quase vermelho”). Os movimentos são raros neste filme mental que recorda, por vezes, a delicadeza expressiva de obras do cinema asiático, como O cheiro da papaya verde, do diretor tailandês Tran Anh Hung.  Não há uma história linear a ser contada, com início, meio e fim; existe apenas o riocorrente fluindo, multiplicado em incontáveis episódios fractais.

 

     O tempo ficcional não evolui em linha reta, mas se expande em espiral, com avanços e recuos que recordam flashbacks; o espaço é o branco da página, povoado por palavras que fundam seus próprios territórios verbais, reinados do cetro poético. Cativando o leitor por sua capacidade de metamorfose, o Livro de Zenóbia vai aos poucos se revelando como aquilo que não é: nem romance social, nem psicológico, nem diário sentimental ou confissão, mas uma possível metáfora da literatura como a arte da representação do imaginário, criação de mundos verbais com sua própria lógica de espanto, com sua íntima crueldade, seu lirismo e seu discreto humor. Ao mesmo tempo, o livro de Maria Esther Maciel sinaliza a crise dos gêneros estanques e aponta para o diálogo com outras formas artísticas, e em especial com o cinema (a autora tem se dedicado ao tema, publicando notáveis estudos sobre o inglês Peter Greenaway, diretor de O Livro de Cabeceira). Essa arte refinada de fabulação abre novos caminhos criativos para a autora (que publicou o volume de poemas Triz e coletâneas de ensaios) e vem se somar ao reduzido elenco de prosadores que cultivam a alquimia do verbo, o meticuloso arranjo de mandalas verbais (autores como Wilson Bueno, Evandro Ferreira e agora Maria Esther Maciel). Este lançamento da Lamparina Editora é assim muito oportuno, pois coloca em circulação um livro que merece ser lido com o coração e o cérebro.

 

 

Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou o livro de poemas A Sombra do Leopardo (Azougue, 2001), entre outros títulos. É um dos editores de Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.officinadopensamento.com.br/zunai). 

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         JORNAL HOJE EM DIA

          Belo Horizonte, MG,  Quinta-Feira 24/06/2004

       

        Coluna de Ricardo Teixeira de Salles


"O Livro de Zenóbia"

Batemos na porta da imaginação maravilhosa de Maria Esther Maciel, e quem nos atendeu foi Zenóbia. Como estávamos a fim de sabermos as estórias de sua história, ela de pronto, ou para iniciarmos uma encantadora viagem através da sensibilidade, da delicadeza e da criatividade, nos apresentou, na abertura do livro, ao dizer do escritor sul-africano, J.M. Coetzee: 'Há pouquíssimas palavras verdadeiras, sólidas o bastante para que sobre elas se possa construir uma vida'. Não sei se são pouquíssimas, as palavras reveladas por Zenóbia. Acredito, piamente, que não. Só sei que as palavras de Zenóbia são verdadeiras, e que ela é um eixo em torno do qual as narrativas vão sendo luminosamente tecidas, talvez com as palavras de sua avó, que são 'sempre claridades'.

Pois bem! Zenóbia nos fala inicialmente de suas idades. Todas idades da brandura no desencadear do tempo. Todas, também, marcando fortemente de lirismo e candura sua existência. Ah, os olhos 'ilágrimes de Zenóbia'! Ela nos devolve a alegria da festa da linguagem, frente a um mundo desencantado pela ação predatória do homem contra a ordem social. Zenóbia nos redime da violência implacável e cruel que se instalou ostensivamente, nas grandes cidades brasileiras. A palavra absoluta é aquela que se identifica com a intenção do amor ao próximo. Esta é a palavra de Zenóbia, com sua profunda dicção poética: 'Ele era desses que queriam tornar possíveis no agora todas as quimeras'. O que nos propicia, do princípio ao fim da leitura, nesse livro de prosa, uma grande emoção resultante da sensibilidade de sua construção poética, como traço marcante do sujeito humano.


Existe um texto que parece de encomenda para 'O Livro de Zenóbia'. É do ensaísta italiano Roberto Calasso, em seu livro 'A Literatura e os Deuses'. Ele escreve: 'Como se a prosa quisesse conquistar os territórios da poesia sem submeter-se aos rigores da métrica. Mas nós sabemos que os discursos acerca da poética são, com freqüência, armadilhas amorosamente colocadas pelos escritores para pegar os seus leitores'.

Diante desse livro é mister assumirmos muita humildade para escutarmos (lermos) Zenóbia, pois assim estaremos agindo em favor de nós mesmos, para o enfrentamento e superação de nossas desavenças. Em favor de nossos obtusos desencontros, principalmente com a gente mesmo: nossas tantas mortes, desvendadas por Zenóbia, pelo cantar de um pequeno-grande instante e que são as nossas vidas. As vidas em que tantas vezes morremos, para muito mais vezes renascermos. E, finalmente, podermos descobrir que 'toda perda oculta uma controversa beleza' e, dela, nos fortalecermos, para a empreitada dos caminhos. As palavras são claridades, sim, para nos iluminar de paixão. Especialmente pela vida. Nossa e a dos outros. Sem que isto implique em 'nenhum desatino em seu olhar', dela Zenóbia, ou nosso, do leitor. Afinal, (...) 'qual o bem que não se pode esperar do destino?', nos ensina essa incrível heroína da simplicidade e pureza.

Forçoso, ainda, transcrever as palavras do professor da UERJ, e também psicanalista, Joel Birman, em recente ensaio sobre o livro do citado Calasso: ' ... a linguagem agora remete apenas para si mesma de maneira infinita, entreabrindo-se e sendo direcionada pela musicalidade das palavras a partir das sílabas, as temáticas da literatura absoluta ecoam pelas frestas da escrita, evocando traços que são tecidos pelos acordes dos sentidos oferecidos generosamente pela linguagem'.
Quem pode discutir e argumentar que o 'Adágio de Albinoni' é feio? Até isto, que aparentemente nada tem a ver com este contexto, Zenóbia nos ensina. No sentido de que, por incrível que pareça, existem coisas definitivas na vida. Por outro lado, (...) 'é no silêncio que as coisas se abandonam, livres'. Zenóbia trata, de maneira delicada, as coisas furiosas da vida. Por isso, ela é Zenóbia!, 'uma alegria sem impostura, límpida'.

 

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DIÁRIO CATARINENSE

A memória no ensaio

Escritora mineira Maria Esther Maciel explora os inventários do mundo em dois novos livros

SÉRGIO MEDEIROS E DIRCE WALTRICK DO AMARANTE *

A ensaísta e prosadora Maria Esther Maciel lançou recentemente, pela Editora Lamparina, do Rio de Janeiro, dois novos livros que revelam a inquietação e a consistência do seu trabalho nas duas áreas de sua atuação. Em A Memória das Coisas (154 páginas), cujo subtítulo é Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, constatamos, já no primeiro ensaio, o que dá título ao volume, uma amostra do evidente prazer de enumerar que certamente é uma das marcas registradas desses textos - "Buscava sua matéria-prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou." O trecho citado refere-se ao artista sergipano Arthur Bispo do Rosário, que viveu quase meio século de sua vida internado num hospital psiquiátrico e que nos legou obras construídas com objetos do cotidiano, fazendo um cuidadoso registro de sua passagem pela terra, segundo o próprio artista.

A curiosa relação entre a subjetividade e os objetos, revelada em obras oriundas da literatura, do cinema e das artes plásticas, como as de Borges, Greenaway e Duchamp, entre outros, obras que são catálogos, enumerações, assemblages pessoais e inconfundíveis, ganha esclarecedora avaliação nos ensaios de Maria Esther. Mas a ensaísta não se debruçou apenas sobre as "enciclopédias" alheias, não se limitou a discutir a produção de mestres da modernidade e da pós-modernidade, assim como trabalhos de artistas emergentes ou considerados marginais. Ela se lançou também numa aventura totalmente nova: a elaboração de inventários próprios, que deu origem ao seu primeiro livro de ficção, O Livro de Zenóbia (157 páginas). Lendo esse livro, damo-nos conta do modo criativo com que Maria Esther explora, já não mais como ensaísta, mas como prosadora, seu gosto pelas taxonomias, pelas enumerações, pelos inventários...

Herdeira de Zenóbia (filha de Zeus e da Memória, possibilidade sugerida por Donaldo Schüler, no posfácio), que deixou ao mundo "a memória das coisas", Maria Esther organiza no seu livro de ficção os bens da personagem, oferecendo ao leitor, por exemplo, uma coleção de receitas caseiras, sendo que cada uma é também uma pequena lista, uma mínima "enciclopédia" de ingredientes e sentimentos. O mais importante nesses textos talvez seja um ou outro pequeno gesto da cozinheira, gestos inscritos na receita, gestos que acrescentam uma pitada de "magia" (à falta de palavra melhor e menos comprometedora): "Sirva aos convidados com o prazer de quem alimenta um pássaro". Outros exemplos: "Agora, o segredo: pamonha boa é feita com desejo"; "E uma última dica: ao tomar uma xícara de café com cardamomo, deixe que sua boca delire".

Essas receitas - "Em dezessete minutos pode-se preparar um espaguete ao molho de três ervas. Prato que - como se sabe - condiz com os dias felizes e as horas ternas" - revelam o universo em que se move Zenóbia, mas também (não) disfarçam algo crucial, a sua solidão, o seu banquete ainda expectante ou vazio (o tempo parece ter destruído tudo, só restou uma memória das coisas e das pessoas): é uma mulher sem amigas (estas partiram, talvez em busca de um destino mais urbano do que o seu ou porque a vida assim o quis) e sem grandes amores (o erotismo surge tímido e quase anulado pela delicada cumplicidade com o outro), mas que, a julgar por suas receitas, possui, sim, o segredo da sedução. Zenóbia, mulher solitária, mas não, necessariamente, amargurada, busca seduzir o leitor, manuseando com destreza certas palavras, certas sílabas, com as quais compõe receitas e outros textos, crivados, muitas vezes, de aforismos, como os citados no final do parágrafo anterior. O uso dos adjetivos, em particular, ganha especial relevo, conferindo à sua frase, muitas vezes, uma informação imprevista, poética: "Plantas de raízes drásticas..."; "... todas as plantas de clima ríspido"; "Os olhos, sob as lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone."

Poderíamos citar também as aliterações, as assonâncias, a distribuição cuidadosa dos acentos... "Não tinha medo de ficar sozinha e sua sina era ser sóbria, de uma elegância quase tímida."

O livro começa com um cinematográfico álbum de retratos (coleção de diferentes momentos de uma vida transformada pelo tempo, tempo que se escoa acelerado e implacável diante de nós), mas, aos poucos, a memória familiar vai adquirindo outro tom, inclusive mais febril, às vezes até alucinatório, abrindo espaço a novas experiências (a loucura, a morte). Sob esse aspecto, são particularmente marcantes as avós de Zenóbia, avós falsas e verdadeiras (uma verdadeira coleção delas!), simpáticas, maldosas, companheiras, inimigas. Não há nada no livro que se lhes compare. As crianças, os bichos, os homens empalidecem ao lado das avós, que são fadas e bruxas, guiando ou assustando a jovem Zenóbia, que por elas ficará marcada para sempre. Parece-nos que Zenóbia não viveu intensamente a figura do pai, mas a da avó, ou avós - no seu livro, elas são múltiplas e variadas (a própria Zenóbia parece se desdobrar em várias avós, ou numa mesma avó em diferentes estágios de velhice, no álbum de retratos que inicia o livro). Não por acaso, uma delas "era quitandeira (sic) de mão-cheia" e introduziu Zenóbia nos segredos da sua arte: "Com ela Zenóbia aprendeu os mistérios da broa de milho sem farinha de trigo e do pudim de leite com rapadura; compartilhou cada instante de cada uma de todas as gostosuras".

Felizmente, as receitas de Zenóbia são também "composições" (talvez nisso ela tenha ido muito além da sua avó), pequenos textos eufônicos que dialogam, a seu modo, com os memoriais construídos por artistas como Bispo do Rosário ou Jorge Luis Borges, estudados em A Memória das Coisas. Encerremos esta nota, portanto, com uma receita, escolhida ao acaso em O Livro de Zenóbia: "Uma salada de melancia gelada com hortelã e queijo de cabra se faz às onze e vinte da manhã de um dia de muito sol e chuvas esparsas. Dos pedaços de fruta, tire as sementes com um garfo que não seja de plástico, corte-os em cubinhos de dois centímetros, fazendo o mesmo com o queijo fresco. Acomode tudo numa tigela amarela, acrescente treze folhas de erva, duas colheres de caldo de limão-galego e seis colheres de azeite, com pitadas de sal (e, se quiser, de noz-moscada)."

 

Cinco perguntas para Maria Esther Maciel:

 

Pergunta - Você publicou recentemente dois livros: um de ensaios, A Memória das Coisas, e outro de ficção, O Livro de Zenóbia. No primeiro, você discute alguns nomes centrais da modernidade e da pós-modernidade, como Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos e Peter Greenaway; no segundo, você mergulha no universo, por assim dizer, neo-regional, marginal, de uma personagem que optou pela periferia. Como você explicaria essas duas tendências aparentemente opostas?

Maria Esther Maciel -
Não vejo uma distância muito grande entre os dois livros no que tange às escolhas canônicas ou "periféricas". Em A Memória das Coisas abordo uma constelação muito variada de escritores e artistas, que inclui também autores "periféricos" ou "à margem", como o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário e o poeta mineiro, ainda pouco conhecido, Altino Caixeta de Castro. Meus interesses no campo do cinema, por exemplo, vão de Greenaway, passando por Wim Wenders e Jim Jarmursch, a Júlio Bressane e o mineiro Halvécio Ratton, num trânsito entre nacionalidades, localidades e tendências diversas. Meu intento é abordar questões comuns a todos, uni-los através das afinidades pouco óbvias que eles mantêm entre si. Já no que se refere a O Livro de Zenóbia, optei por mergulhar em um universo que não deixa de ser o meu. Resolvi, como diria Tolstoi, cantar minha aldeia e, dessa forma, cantar o mundo. Zenóbia é uma personagem do interior, que vive as miudezas de seu cotidiano mais prosaico e busca extrair disso pequenas epifanias e assombros. Mas o fato de viver em uma cidade "periférica" não a impede de freqüentar, através da leitura, autores universais, como Sófocles, Kierkegaard, Kafka, Dostoievski, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral, dentre outros. Basta dar uma olhada na lista de seus livros de cabeceira. Ela é uma mulher de gosto refinado, mas que não abre mão do legado provinciano que recebeu e que faz parte de sua formação. E talvez nesse legado esteja a sua maior solidez.

Pergunta - As lembranças da protagonista d'O Livro de Zenóbia encerram ensinamentos que parecem similares à tradicional e antiguíssima "moral da fábula": "descobriu que no óbvio estava o segredo da vida", "descobriu (...) que há coisas (e pessoas) que não se deixam nunca", ou, conforme se lê numa receita, que a melhor pamonha é " aquela feita com desejo". Zenóbia, filha de Zeus e de Memória, não seria também filha de Esopo?

Maria Esther -
Não sei se de Esopo. Talvez de Epicuro, Sêneca, Pascal, Cioran, enfim, os filósofos da tradição aforística. Sempre gostei de aforismos e quis aproveitar esse gênero "menor" no livro, mesclando-o a outros, como o da narrativa e o da poesia. Nesse meu gosto pelo pensamento-frase vejo também os influxos dos velhos chavões das avós sábias de minha terra natal. Quando criança, eu ficava fascinada com as frases de sabedoria dessas mulheres. Elas tinham algo daquele narrador benjaminiano que sabia extrair ensinamentos da experiência e passá-los a outras gerações. Suas frases eram verdadeiros insights poéticos. E achei que isso combinava com o universo de Zenóbia. Por outro lado, se lermos atentamente certos escritores modernos e contemporâneos, como Clarice, Drummond, J. M. Coetzee, Alberto Caeiro, Maria Gabriela Llansol, Guimarães Rosa e até mesmo o Borges poeta, encontraremos, fartamente, essas frases poéticas de sabedoria. Inspirei-me muito nesses autores para construir algumas das falas de minha personagem.

Pergunta - Uma miscelânea de formas literárias e não-literárias, que vão dos textos convencionais até os mais experimentais (como as enumerações), passando ainda pelo grau zero do estilo, compõe a memória de Zenóbia. Poderia falar um pouco dessas lembranças que também são exercícios de estilo?

Maria Esther -
Eu quis e não quis, ao mesmo tempo, escrever um romance em torno da vida de Zenóbia. Quis contar sua história, descrever cenas de seu dia-a-dia, construir retratos das pessoas com quem se relacionou, como todo romancista faz. Mas preferi fazer isso por vias transversas: ao invés de me valer do fluxo contínuo, da sucessividade temporal, procurei me ater aos ritmos e texturas da memória, com seus fragmentos de imagens, sensações, reminiscências, cortes e dizeres breves. Nesse sentido, tive que explorar os recursos da poesia e do cinema, que estão mais próximos dessa linguagem. E permitir-me, assim, uma certa experimentação. Fiquei muito atenta à sonoridade interna das palavras na construção de todas as frases de todos os "capítulos", além de procurar sempre explorar sinestesias e imagens concentradas, bem visuais. Mas ao contrário da prosa de invenção, tipo joyciana, não prescindi da clareza do dizer, da referencialidade. Já as listas e enumerações vêm a título de homenagem à escritora japonesa Sei Shonagon, a Borges e a Greenaway, autores afeitos ao uso das listas como forma alternativa de narratividade. Elas têm a ver também com o tecido precário, seletivo e insuficiente da memória. E contêm algo lúdico, infantil, até mesmo ingênuo. Aliás, a ingenuidade me fascina pelo que tem de desprendimento, de singeleza. As coisas singelas são, muitas vezes, desconcertantes. E aliadas a um certo experimentalismo, então, entram no espaço do insólito. Foi isso que persegui o tempo todo com minhas listas: aliar o ingênuo ao experimental, o lúdico ao rigor quase matemático. Acho que o livro todo é um pouco disso também.

Pergunta - Sua ficção parece apostar mais na força das minúcias do que da aventura. O que é a minúcia para você?

Maria Esther -
Borges, em um breve texto intitulado Del pudor de la historia, mostra que os acontecimentos secretos, que não tiveram espaço nos livros de história, foram aqueles que realmente incidiram nos rumos da história de um povo, de uma sociedade. Da mesma forma, penso que os eventos mais corriqueiros, as miudezas, as circunstâncias particulares delineiam muito mais a vida de uma pessoa do que as experiências estrondosas, as peripécias, os grandes acontecimentos. Daí eu ter optado, nesse livro, pelas minúcias, pelos detalhes da vida de Zenóbia. Gosto da falta de ênfase, do falar baixo, do quase cochicho. Meu livro é feito de cochichos. No duplo sentido: enquanto fala em voz baixa e enquanto fuxico, enredo, segredo.

Pergunta - Seus dois livros saíram pela Editora Lamparina, que é nova, mas já possui no catálogo nomes importantes da literatura brasileira mais atual. Você poderia comentar sua relação com o projeto dessa editora?

Maria Esther -
Digo que a Lamparina Editora chegou para iluminar as zonas de sombra do mercado editorial brasileiro, apostando, sobretudo, em autores mais alternativos, pouco conhecidos e, até mesmo, em certos casos, à margem. E busca aliar a isso a recuperação de obras e autores menos óbvios do passado, bem como traduções de livros instigantes da literatura estrangeira. A proposta da editora é estimular a imaginação e a lucidez crítica de seus leitores, sem se render aos chichês do mercado e do academicismo. Tenho a honra de fazer parte do conselho editorial da Lamparina e de acompanhar de perto a constituição de seu catálogo. Muita coisa boa está por vir por aí neste e no próximo ano.

*

*Sérgio Medeiros é autor de Mais ou Menos do que Dois (2001) e professor de Literatura na UFSC, onde atualmente ministra um curso sobre Beckett e Qorpo-Santo; Dirce Waltrick do Amarante é doutoranda na UFSC e estudiosa da obra de James Joyce e Edward Lear

  ­­­­­­­__________________________________________

PENSAR – Correio Braziliense (31/07/2004) / Estado de Minas (07/08/2004)


Caminhos da arte total

Professora de literatura da UFMG, escritora e especialista na obra de Peter Greenaway, Maria Esther Maciel lança livros de ficção e ensaios

 

SÉRGIO DE SÁ

 

 

 

Zenóbia não é personagem do filme Alta Fidelidade

mas adora listas. De "peixes perplexos", de "cidades

raras", de "ervas daninhas", de "livros de cabeceira". A

criadora de Zenóbia, Maria Esther Maciel, garante

não ser muito boa em ordenar coisas. "Listas são limitadas,

excludentes e insuficientes". Ainda assim, arrisca

dizer que os cinco artistas que mais admira são

Leonardo da Vinci, Vermeer, Arthur Bispo do Rosário,

Peter Greenaway e Keith Jarrett. Mas poderiam ser

também Paul Klee, J.S. Bach, M.C. Escher, Lygia Clark

e Élida Tessler. Isso, sem incluir os escritores.

É bem provável que Greenaway ficasse em primeiro

lugar numa classificação imaginária. Do contrário,

Maria Esther não teria feito pós-doutorado em Londres

sobre o diretor de A Barriga do Arquiteto e O Livro

de Cabeceira. Do contrário, também não teria organizado

livro de textos sobre o cineasta, O Cinema

Enciclopédico de Peter Greenaway, e tampouco teria

dedicado vários ensaios a ele em A Memória das Coisas,

ambos publicados há pouco.

Além desses dois títulos, a lista das obras de Maria Esther

Maciel, professora da Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) e poeta de mão-cheia, acaba de

ganhar a prosa tão enxuta quanto impactante de O

Livro de Zenóbia, aquela que gosta de elencar esquisitices.

Sobre ela, sobre saberes múltiplos e, em especial,

sobre Greenaway, gira o papo que se lê a seguir.

 

 

Três livros de uma tacada. Organização, ficção, ensaística. E a inevitável visibilidade midiática. É muita coisa de uma vez só para uma mineira?

 

Maria Esther Maciel – Dizem que os mineiros trabalham

em surdina. Vim elaborando esses livros ao longo dos

últimos três anos, sem alarde. O primeiro a ficar pronto

foi O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway, que

permaneceu na editora por mais de um ano. Fechei A

Memória das Coisas em agosto do ano passado, e O Livro

de Zenóbia, iniciado há dois anos, só ganhou impulso

a partir de janeiro. Por coincidência, os três saíram simultaneamente,

o que deu margem para se pensar que

preparei os três de uma vez só, em ritmo voraz. Mas,

não. Foi tudo construído aos poucos, de acordo com as

demandas internas e externas. Se, por um lado, publicar

os três juntos trouxe um certo desconforto, por outro,

creio que isso acabou por ser interessante, pois acho que

um livro completa, de certa forma, o outro. Eles compõem

uma tríade coerente com as minhas inquietações

dos últimos anos. Sei que agora entrarei em um momento

de elaboração silenciosa do que possivelmente

virá (ou não) nos próximos anos.

 

Zenóbia parece personagem de um romance clássico.

Tem força descomunal, mas é apresentada ao leitor em

fragmentos. A diluição do narrador é proposital?

 

MEM – Sempre considerei que o maior desafio para um

escritor que se aventura na escrita de um romance é

construir suas personagens, dar a elas não apenas um

nome, um rosto, uma identidade civil, mas também

uma vida que, por mais ficcional que seja, possa trazer

uma espécie de realidade intrínseca. Os autores clássicos

se esmeraram nesse trabalho e chegaram a criar personagens

maiores do que a própria trama que as envolve.

Isso sempre me fascinou. Por outro lado, não sou

muito afeita ao modelo realista de narrativa, pautado

nos princípios da sucessividade temporal. Eu queria

construir uma personagem convincente, mas que fosse

sendo constituída através de traços, reminiscências,

imagens, sensações do narrador e de outras personagens.

Zenóbia, ao contrário das personagens clássicas,

não se apresenta inteira, completa, bastante: ela vai surgindo

aos fragmentos, no ritmo esgarçado da memória

dos que conviveram com ela, dos que souberam (ou

imaginaram) algo de sua vida. Se tem alguma força, ela

se deve à soma de seus gestos, pensamentos, palavras,

atitudes, desejos. Seu cotidiano é feito de miudezas, de

coisas banais. E ela busca extrair disso pequenas epifanias

e assombros.

 

Há uma clara vontade de recuperação de lirismo, não?

Como se a realidade estivesse esgotada em vários sentidos, principalmente como norte da literatura brasileira...

 

MEM - Ando meio cansada do realismo exacerbado que

tomou conta da literatura brasileira contemporânea. E

avessa ao formalismo asséptico, desvitalizado, que ainda

predomina em boa parte da poesia que se faz hoje no

Brasil. Em O Livro de Zenóbia tentei, sim, recuperar um

certo lirismo, mas que não exclui, necessariamente, o

traço irônico, a dimensão trágica e o humor sutil. Tendo

cada vez mais ao exercício de uma escrita livre de coerções

temáticas e formais, busco me desvencilhar da tirania

da metalinguagem e da intertextualidade explícita

- práticas já exauridas, debilitadas - e buscar outras

possibilidades estéticas para o meu trabalho. Abrir-me

às impurezas da experiência, à força do trágico e ao êxtase

do sublime. Não renegar o prosaico nem sucumbir

ao realismo. Apostar na delicadeza como um antídoto

contra a truculência do mundo, da realidade.

 

Jorge Luis Borges é de fato a melhor conexão da literatura com o cinema de Peter Greenaway?

 

MEM – Costumo dizer que, para quem assiste a um filme

como O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante,

ou O Livro de Cabeceira, sem um prévio conhecimento

de outros trabalhos de Peter Greenaway, é quase impossível

aceitar uma associação entre ele e Borges. Onde

estariam, no escritor argentino, a escatologia, o erotismo

explícito, o transbordamento barroco, o delírio visual?

Mas se atentarmos para certas estratégias ficcionais

desses e outros filmes de Greenaway, veremos que

as afinidades são muitas: o apreço pelos embustes autorais

(sobretudo nos pseudodocumentários do diretor),

o olhar enciclopédico sobre o mundo, o exercício das taxonomias

insólitas, o gosto pelo artifício e pelas simetrias,

a profusão de referências eruditas, a concepção do

universo como uma biblioteca de babel. Talvez o filme

de Greenaway mais borgiano seja A Última Tempestade.

Trato disso com detalhes em um dos ensaios do livro

A Memória das Coisas. Mas além de Borges, outros

escritores são referências importantes para o cinema

greenawayno, como James Joyce, Lewis Carroll, Italo Calvino,

Georges Perec, Dante e Shakespeare. Mas menos

sob a perspectiva dos temas e dos enredos do que sob a

perspectiva da linguagem e dos procedimentos poéticos

e ficcionais.

 

O que você diria para convencer alguém de que vale a pena

ver e conhecer Greenaway?

 

MEM – Greenaway é um dos poucos cineastas contemporâneos

que ainda ousam na experimentação de novas

formas e linguagens, sem que isso signifique uma

recusa do passado. Ele leva o cinema a transbordar de

seus próprios limites, a expandir-se para além da tela.

Sua erudição criativa possibilita-lhe trazer para um mesmo

topos o legado cultural de diferentes tradições – entre

elas, a do renascimento e a do barrroco –, as experimentações

da vanguarda, as inovações tecnológicas e as

referências culturais do presente. Transita, com desenvoltura,

em vários campos do saber, sejam eles os da literatura

e das artes em geral, sejam os da culinária, da

arquitetura, da moda, da zoologia e da anatomia. E não

se furta a explorar o estranho, o escatológico e o insólito.

Além disso, não faz concessões aos imperativos da indústria

cinematográfica e assume uma postura extremamente

irônica perante o culto contemporâneo do chamado

"politicamente correto". É ainda um crítico dos sistemas

de organização e classificação do mundo e do conhecimento.

Um artista completo, que reedita, no contexto

do século XXI, a intrigante e instigante figura do artista/

intelectual transdisciplinar, de feição renascentista.

 

O intelectual não pode mais ficar parado no mundo contemporâneo?

 

MEM – Vivemos, hoje, sob o signo da multiplicidade, da

confluência entre as artes e os campos disciplinares. Cabe

ao intelectual contemporâneo estar atento a isso. A

especialização e a fixidez do conhecimento já não condizem

com as demandas do nosso tempo. O movimento,

o trânsito, a abertura à alteridade são as linhas de força

que nos definem. Greenaway é diretor de ópera, escritor,

pintor, curador. De alguma maneira, ele reedita

essa figura do artista renascentista. Algo que tem a ver

também com a idéia de Arte Total, de Wagner. Ele tenta

reconstituir essa figura para mostrar que o cinema tem

que se abrir para essas outras linguagens, que as artes e

os campos de saber estão aí também para serem mesclados,

conjugados. Além disso, aposta na idéia de que

uma das formas de se revitalizar o cinema é buscar os

recursos que as outras artes podem oferecer.

 

Qual filme dele é seu preferido e por quê?

 

MEM – É difícil dizer qual é o meu preferido. Talvez seja O

Livro de Cabeceira, por ser o mais poético. Nele, erotismo

e escrita se entrelaçam de forma magnífica. A tela se

transforma em várias ao mesmo tempo, graças aos inventivos

experimentos tecnológicos usados ao longo de

todo o filme. Sucessão e simultaneidade se mesclam na

narrativa. E o mais interessante é que a obra literária que

lhe serve de referência não é um livro com trama e enredo,

mas o diário de uma poeta japonesa do século X, Sei

Shonagon, cheio de listas e apontamentos sobre coisas

da natureza e trivialidades da corte. Greenaway inventa

um enredo para o filme e busca no livro de Shonagon a

atmosfera, a linguagem, as listas e as imagens. Compõe

um filme de grande poder de sedução visual, que inverte

os procedimentos tradicionais da adaptação.

 

Greenaway é um escritor legível?

 

MEM – Por incrível que pareça, não é um escritor barroco

ou experimental. Seus textos são límpidos e escorreitos.

A maioria é de narrativas curtas, que trazem

histórias prosaicas, mas o tempo todo assaltadas pelo

insólito, pelo nonsense. Têm humor e ironia. Inteiramente

legíveis e digeríveis. O mesmo se pode dizer de

seus ensaios.

 

 

___________________________________________

 

JORNAL O TEMPO

Belo Horizonte, 26 de fevereiro de 2005.

 

LUCIDEZ E VERTIGEM NA TEIA DE ZENÓBIA

Carlos Roberto da Silva*

 

        O livro de Zenóbia (Lamparina editora, 2004), de Maria Esther Maciel, se propõe a narrar a história de uma mulher chamada Zenóbia, que nasceu na fazenda Palmyra, nos arredores de Patos de Minas, em 1922, bióloga por profissão e escritora por vocação. E o faz, não por vias previsíveis, mas pela via da transversalidade. Ao fatiar (é esse mesmo o termo) como numa ressonância magnética, a realidade ficcional da personagem, Maria Esther permite, em mise-en-âbime, uma iluminação que perfura sutilmente a superficialidade e, como agulha ou flash, mergulha para extrair da memória, não mais de Zenóbia, mas da própria humanidade, as coisas, fatos, pessoas, sensações, emoções, perfumes, cores, sabores e formatos que nos salvam da corrosão do tempo e mantêm, como num álbum de retratos, o imortal soluço de vida. Assim, a obra se assemelha à fotografia, pois congela o movimento e, para lembrar Baudelaire, eterniza o contingencial do dia-a-dia de Zenóbia.

 

Essa sugestão de trânsito por manifestações artísticas diferentes se solidifica no processo de ilustração em que o desenho catalográfico de orquídeas separa cada crônica-foto-poema do livro para, paradoxalmente, ser a ponte entre a biologia e a escrita literária e, ao mesmo tempo,  o elemento que, no crisol da estética, funde vida e realidade, realidade e sonho; ou como disse a própria autora, em outro livro, para transformar lucidez em vertigem, instalando com rigor a realidade do delírio. Foi a mesma Zenóbia, que tanto nos inquieta, que disse que “a lírica e não a crônica, define seu pacto com a vida e o sonho. Mas o trágico é o seu pathos, o seu idioma subterrâneo.” Não bastasse, essa experimentação formal, esse trabalho de elaboração do fazer literário encontra ressonância na escolha do modo de dizer tudo isso. Se “Zenóbia pensa duas vezes antes de dizer a si mesma”, a autora elaborou e re-elaborou sua tessitura antes de dizer ao leitor. Por isso, Maria Esther Maciel mescla, alterna, funde e subverte gêneros consagrados da literatura. O que era para ser a crônica de uma existência se torna o poema de vida de Zenóbia – a linguagem é a sua maior comprovação. Todos os recursos da poesia preenchem um espaço criado por ela no ato de narrar. São rimas, ritmos, imagens, jogos sonoros que povoam a obra e provam a habilidade da autora em lidar com os recursos da língua, colocando a linguagem em plano de destaque. Se isso não consolida a ruptura, Maria Esther ainda transforma em arte literária receitas culinárias, isso mesmo, extrai a poesia de receitas de comida e bebida, e vai além, num processo taxonômico que inclui listas de coisas como ervas daninhas, peixes perplexos, aves raras, livros de cabeceira e outras.

 

Maria Esther faz da vida, não só a sua e nem mesmo só a de Zenóbia, mas da mulher, um exercício literário para transcendê-lo e chegar à reflexão acerca da própria existência humana. São as máximas e os aforismos que nos conduzem pelos caminhos da lucidez poético-filosófica da autora. São frestas aproveitadas da memória que permitem colar os fragmentos da vida contemporânea em que nós, como “aves migratórias (que) inventam o seu próprio espaço”, podemos inventar também o nosso doloroso espaço nesse processo descontínuo e migratório dos saberes. Desses saberes tão ambíguos em que nascer e morrer se conjugam, sonhos e pesadelos se entretecem, a crueldade é uma forma de amor e o silêncio, uma forma de dizer.

 

Dessa forma, no dizer consciente de Maria Esther Maciel, “a experiência e a memória têm como registro a exterioridade sensível de tudo que se define e consome, como se só as coisas pudessem perdurar para além de nosso esquecimento e nossa precariedade.” Por isso, O Livro de Zenóbia passa a ser o curador de um compósito feito de listas, sonhos, delírios, poesia, saberes, sensações e emoções, todos carreados da memória ou extirpados das vivências para tecerem, coisa a coisa, a nossa vulnerabilidade de seres racionais.

 

Creio que Maria Esther se lança na ficção com a mesma lucidez e intensidade da ensaísta e tece em suave som de roca um eco infinito de seu lirismo. Mnemonicamente, em voz divina, escreve um longo caminho.

 

 

 

__________________________________________

 

As dádivas de Zenóbia

 

 

 

Sabrina Sedlmayer

 

        

A primeira vez que li Zenóbia - na primavera de 2003, achei-a muito engraçada. De início conheci quatro dos seus sonhos (curiosamente os únicos em primeira pessoa), um pouco da sua linhagem, da sua torta genealogia, algumas das suas mortes e seu afeto desmedido por bichos e plantas. Havia, naquela escrita,  humor, uma essência de oficina e um rigor extremo.

 

Quando li Zenóbia de novo, achei que a sua graça não era assim tão horizontal e a sua leveza não era assim tão sustentável. Os seus olhos – ávidos, óbvios, sóbrios, sólidos, estóicos - eram, na verdade, ilágrimes, e pareciam ser milenarmente mais velhos que  todo o resto do corpo. Não se esquivavam em ponto de fuga como o seu sorriso, não eram reclusos como seus cabelos, nem miúdos como seu nariz, mas eram capazes de velar a culpa e se assombrarem, a um só tempo, com o sofrimento e com as delícias de um prato de comida.

Da terceira vez que li Zenóbia,  os seus textos já haviam se tornado livro. Lançado pela editora Lamparina, no outono de 2004, de autoria de Maria Esther Maciel, a sua vida em obra desembocava, obliquamente, bem do seu jeito, na conhecida experiência literária moderna, capaz de guardar tanto o inacabamento quanto a fragmentação. E era o livro, como tanto queriam Mallarmé, Flaubert, Cesário, Pessoa e  Borges.

 

Mas se O livro de Zenóbia assemelha-se,  no título, ao projeto de escrita moderna que tentava articular o inarticulável, o mundo na literatura, desenhar pela escrita a experiência ordinária, dele escapa, entretanto, pela incomensurável ternura. Zenóbia é dadivosa, e isso é muito. É capaz de reverter a crueldade em amor, descobrir malícia sem mal, inventar parentes, adotar madrinhas, encontrar no ontem as coisas que ama, e, principalmente, criar metáforas para esconder a realidade das larvas.

 

Se à primeira vista há, nessa alquimia, algo que já vimos em demasia na produção cultural pós-moderna, seja no mundo açucarado da fadinha parisiense, Amèlie Poulain, ou até mesmo antes nas desgastadas heroínas latinas do realismo fantástico, como a protagonista de “Como água para chocolate”, que responde à aspereza do mundo com receitas culinárias milagrosas e afrodisíacas,  Zenóbia diverge dessas Polianas contemporâneas não só pela maneira de ver as coisas, por estar ancorada em uma experiência estética do estranho e do difícil mas, principalmente, por acreditar na poética do inventário. Aí, sim, se afasta do gênero dos pequenos milagres cotidianos, e passa a integrar a  linhagem dos falsários, dos enciclopedistas absurdados, daqueles que desconfiaram do caminho reto entre dois pontos, dos que carregam uma cicatriz na testa, onde vivem, entre outros, Nietzsche, Cioran e Kierkegaard. O desassossego de Zenóbia vira literatura ao falar da textura, cor, fragrância e tamanho das orquídeas. Ou quando lista os peixes perplexos, as cidades raras e os pássaros em perigo, quando diz dos nomes infinitos.

Zenóbia podia, facilmente, se agregar ao coro dos que pediram dobrada à moda do Porto e o prato veio servido frio, como disse Álvaro de Campos: “Mas, se pedi amor, porque é que me trouxeram/ Dobrada à moda do Porto fria?/ Não é prato que se coma frio./ Mas trouxeram-mo frio./ Não me queixei, mas estava frio./ Nunca se pode comer frio, mas veio frio.”

 

 Ela não fala do desamor, principalmente o farpante e cruel desafeto quase sempre vindo das mulheres? Mas ela recusa a lamúria e a litania e não paralisa o desafeto. Prefere mostrar que comida é só outro nome dado ao amor, ou mais ainda:  que comida é só um outro nome que  às vezes se dá à poesia.

 

Espero continuar a ler Zenóbia e sentir, todas às vezes, os céus se misturando com a terra. Minha Teresa! Imaginar por quê Zenóbia não gosta de bordados. Das linhas de aranhas que legião de mulheres (ou homens como Bispo ou Leonilson, que  tanto se assemelham a ela) já nos falaram, tempos antes, visto que o ponto de certo bordado, às vezes, é só outro nome que se dá à poesia.

                                                        .

 

*

 

 

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*  Professor de Estudos Literários da UNIPAM e  mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Minas.