ANAIS DO SIMPÓSIO


O Romantismo na Espanha em diálogo com Victor Hugo

Karin Volobuef
Unesp

A demora em abraçar o Romantismo deve-se a vários fatores, merecendo destaque a situação política na figura do rei Fernando VII (1814-33), que empregou os maiores esforços para sufocar os anseios liberais do país. Seu reinado, erigido sobre os pilares da Restauração, teve como conseqüência a saída de todo um grupo de exilados (dentre eles o duque de Rivas) que foi buscar asilo na França. Para esses jovens liberais, não foi a polêmica sustentada por Böhl de Faber, mas o contato direto com a batalha de Hugo que lhes inflamou a chama romântica. Ao presenciarem a estréia de Hernani (1830), receberam o impulso definitivo rumo à nova estética. Quando voltaram para casa no início da regência da rainha-mãe, Maria Cristina (1834-1843), haviam aderido ao Romantismo que, por intermédio do contato com Hugo, tingira-se de novas cores e ganhara outro significado aos olhos dos espanhóis.

Estava demarcada, assim, a distinção entre o Romantismo propalado por Böhl de Faber e o defendido por Victor Hugo. Quanto a isso, Derek Flitter (1995: 122-130, em especial p. 130) aponta inclusive para uma diferença de nomenclatura: para muitos artistas e intelectuais na Espanha, "romântico" teria sido aplicado à tendência medievalizante de A. Schlegel, enquanto as obras do novo teatro francês, liderado por Hugo, eram referidas como "modernas". Essa bipartição manteve-se no movimento, que se apresenta dividido em duas vertentes (Lopez, 1966: 430): o Romantismo histórico, encabeçada por José Zorrilla (e afinada com Schlegel, Scott, Chateaubriand, Manzoni) e o Romantismo liberal e revolucionário, à cuja testa encontram-se José de Espronceda e Mariano José de Larra (na linha de Byron, Leopardi, Hugo). No entanto, aos olhos de Carpeaux, que se reporta a A. Farinelli, "O romantismo no mundo latino inteiro [...] é em grande parte um romantismo hugoniano" e seu pender seria essencialmente revolucionário (1987: 1312). Tal concepção – que nos parece algo radical – faz empalidecer quaisquer outros influxos (Scott e Byron, por exemplo) e transforma Victor Hugo na grande mola propulsora dos Romantismos em países como Espanha, Itália, Portugal, Brasil. (1) Essa perspectiva de certa forma encontra eco no texto de Ángel del Río (1998: 159), que faz um apanhado dos traços característicos do Romantismo espanhol, deduzindo-os da definição de Victor Hugo em Cromwell.

O curioso é que, quando olhamos para a obra de Hugo, vemos que também ele teve seus olhos voltados para a Espanha, seja porque foi convencido por August Schlegel de que esse era o país romântico por excelência (ver Silver, 1997: 4), seja porque a Espanha vinha sendo, já desde o século XVIII, o cenário "exótico" de diversas obras, dentre elas o romance gótico The monk (1796), de Matthew Lewis. Hugo recorre à Espanha em diversas ocasiões, conforme atestam, por exemplo, a fala espanhola dos ciganos em Notre-Dame de Paris ou ainda a ambientação do próprio Hernani. Diante disso, não é de espantar que Álvares de Azevedo tenha até se referido à "imaginação espanhola de V. Hugo" (1960: 23). A atração entre Hugo e a Espanha foi, portanto, recíproca.

Mas houve ainda outro ponto de ligação: tanto para os jovens espanhóis como para Hugo e os românticos franceses colocava-se a questão do posicionamento sócio-político. Tanto para uns como para os outros, tópicos como a oposição ao Absolutismo, fortalecimento da burguesia, enaltecimento das peculiaridades ou do passado nacional esbarram na aliança entre espírito revolucionário e conservadorismo estético. Contra isso, tanto Victor Hugo como José de Espronceda defendiam a associação entre Romantismo e liberalismo (Carlson, 1997: 202-203; Río, 1998: 132). Em outras palavras, de um lado, a renovação literária, de outro, a renovação econômica e social.

Para Victor Hugo, trata-se de fazer na França o que Lessing já fizera no século anterior na Alemanha (Braga, 1994: 148-149): trazer para o palco "pessoas de carne e osso" falando como se fala na vida real e agindo como se age na vida real diante de problemas reais e cotidianos. Mas tais personagens, temas e linguagem não cabiam no verso alexandrino, nem se coadunavam com a estrutura rígida ou as convenções de etiqueta do teatro clássico. Décio de Almeida Prado comenta o choque causado por duas frases do Hernani, respectivamente quando Don Carlos pergunta se já é meia-noite e Don Ricardo responde que em breve será:

Que o Rei de Espanha indagasse da hora, como qualquer mortal, já parecia escandaloso. Pior ainda era a resposta, seca, informativa, miseravelmente prosaica e cotidiana para um drama em verso. [Falavam] dessa forma os burgueses da platéia, não a humanidade privilegiada que habitava o palco. (Prado, 1988: 175)

O mesmo pesquisador ainda comenta as dificuldades enfrentadas pelo ator que desempenhou o papel e que não conseguia encontrar um tom adequado para o simples "Que horas são?" que, originalmente, constava no texto (sendo depois substituído pela indagação sobre a meia-noite, referida há pouco).

Ora, para aproximar-se da fala do cotidiano e, assim, fazer subir ao palco o burguês até então excluído dos textos dramáticos (exceto pela sua participação em textos cômicos), Victor Hugo propôs uma reformulação do teatro em termos formais e temáticos e que abolisse a separação entre tragédia e comédia. Sua concepção, expressa no prefácio ao Cromwell, de que a arte romântica abrisse os braços ao feio e ao heterogêneo ampara-se em Shakespeare:

A tragédia shakespeariana, derivada igualmente da grega, mas sem nunca ter cortado de todo as raízes medievais, sem jamais ter sofrido o desbaste, o bombardeio teórico a que foram submetidos Corneille e Racine, misturava livremente elementos trágicos e cômicos no bojo não só da mesma peça mas até da mesma personagem. Hamlet, se é capaz de chorar a morte de Ofélia, sabe também rir e fazer rir, ao sabor de seu caprichoso humor. (Prado, 1988: 170)

Tal como já fizera Lessing, Victor Hugo buscou amparo no teatro de Shakespeare para proclamar sua concepção de um novo teatro:

A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo é, pois, o drama; o caráter do drama é o real; o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se cruzam no drama, como se cruzam na vida e na criação. Porque a verdadeira poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrários. Depois, é tempo de dizê-lo em voz alta, e é aqui sobretudo que as exceções confirmariam a regra, tudo o que está na natureza está na arte. (Hugo, 1988: 42)

(1) Desconsiderando o grande número de traduções, Carpeaux chega mesmo a afirmar que "muitos byronianos não sabiam a língua inglesa, recebendo Byron através das poesias byronianas de Lamartine, Musset e do próprio Hugo na sua primeira fase." (1987: 1313)

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