ANAIS DO SIMPÓSIO


O Romantismo na Espanha em diálogo com Victor Hugo

Karin Volobuef
Unesp

Em oposição ao Belo universal da Antigüidade clássica e do Neoclassicismo, o Romantismo propôs uma noção de Belo pautada no particular em termos individuais e nacionais, em termos das especificidades de época e local, e em termos da experimentação de novos matizes temáticos e formais. Privilegiando o autor em detrimento da obra, a originalidade em lugar da tradição, a Natureza acima do artefato, o Belo romântico corresponde a uma arte múltipla e heterogênea, sempre em busca do inusitado e inesperado.

Tal proposta estética vinha contrapor-se a uma longa corrente de tonalidade clássica da literatura e da crítica, cuja força e prestígio formavam um forte obstáculo à inovação romântica. Essa resistência foi especialmente recrudescida em nações com marcada tradição clássica, conforme foi o caso, por exemplo, da França. Não obstante os impulsos provenientes de Rousseau ainda no século XVIII e as obras de Mme. de Staël, Chateaubriand, Benjamin Constant, etc. que se seguiram após o alvorecer do século XIX, as letras continuavam se norteando pelos preceitos antigos e neoclássicos. Coube a Victor Hugo providenciar uma cartada decisiva em favor do Romantismo com Cromwell (1827), aliás, mais precisamente com o prefácio da peça, que funcionou como verdadeiro manifesto da nova estética.

Na Espanha, nesse sentido, o cenário mostrou-se tão refratário ao Romantismo como o francês. O primeiro veículo de difusão das novas idéias foram as diversas obras de cunho romântico e pré-romântico que, desde 1800 até pela década de 30 adentro, foram chegando à Espanha em traduções: "Ossian", Werther (Goethe), Paul et Virginia (Saint-Pierre), La nouvelle Héloïse (Rousseau), Atala (Chateaubriand), e vários títulos de Byron, Scott, Dumas, Victor Hugo.

Outro impulso digno de nota veio em 1814, quando Juan Nicolás Böhl de Faber, o então cônsul alemão em Cádiz, publicou em El Mercurio Gaditano seu artigo Sobre el teatro español. Extratos traducidos del alemán de A. G. Schlegel por um apasionado de la nación española. Curiosamente, esse alemão, armado das idéias do romântico August Schlegel, defendia perante os espanhóis o teatro de Calderón de la Barca. Mais curiosamente ainda é que de imediato veio a resposta em artigo no mesmo jornal (assinado por Mirtilo Gaditano, na verdade José Joaquín de Mora) rechaçando o apelo de Böhl de Faber para que fossem abandonadas as regras clássicas e se valorizassem o Romancero e o teatro nacional espanhol, notadamente Lope de Vega e Calderón. O que explica essa rejeição é a postura tradicionalista de Böhl de Faber, que enaltecia a Idade Média e ligava o Romantismo ao Cristianismo e ao conservadorismo político, omitindo a repressão exercida pela Monarquia e pela Igreja (Templado, s.d.: 19-21; Silver, 1997: 4). A motivação de Böhl de Faber era, pois, antes político-religiosa, do que verdadeiramente voltada para questões estéticas.

Sobre esse ponto vale lembrar que, antes e independentemente da intervenção de Böhl de Faber, o Romantismo alemão (na voz dos irmãos Schlegel, Ludwig Tieck e outros), enquanto foco inicial do movimento na Europa, havia dedicado uma atenção especial à literatura espanhola, notadamente Cervantes e Calderón, realizando inclusive diversas traduções. Essa circunstância poderia, em si, ter estimulado os ânimos nacionalistas na Espanha e angariado simpatia para a causa romântica. Entretanto, deve-se considerar que o ideário da nova escola, em especial quando olhava com nostalgia para o período medieval, soava aos ouvidos espanhóis como uma mensagem extremamente conservadora que aparentemente propugnava o tradicionalismo feudal, o dogmatismo religioso, enfim, formas de opressão e supressão da liberdade. Essa aversão torna-se compreensível quando nos lembramos da pertinaz resistência de Fernando VII em submeter-se à Constituição de Cádiz de 1812 (abolida pelo decreto de Valência em 1814); da perseguição de opositores, inclusive no estrangeiro; da execução do general Rafael de Riego (que obrigara Fernando VII a submeter-se à Constituição) depois que o monarca teve devolvidos seus poderes absolutistas pelas tropas francesas da Santa Aliança, denominadas por Chateaubriand de "Cem mil filhos de São Luiz", nome com o qual se pretendia conferir à empresa um caráter de cruzada (Templado, s.d.: 7-9).

De qualquer forma, depois dessa investida em 1814, Böhl de Faber voltou à carga em 1817 e, a partir daí, teve início uma acirrada polêmica, conhecida como "querella calderoniana", que se prolongou até 1820. Contra as idéias românticas digladiavam-se o já citado José Joaquín de Mora, Antonio Alcalá Galiano e diversos outros jovens liberais. Angel del Río (1998: 150) sublinha inclusive o curioso paradoxo desse processo: embora Alcalá Galiano estivesse na mesma trincheira dos hostis oponentes de Böhl de Faber, vinte anos mais tarde ele seria o autor do maior manifesto romântico na Espanha ao assinar o prólogo ao "El moro expósito" (1834), do Duque de Rivas (ver também Lopez, 1966: 433).

Essas contradições e viradas paradoxais mostram quão acidentado foi o nascimento do Romantismo espanhol, cuja gestação ocupou cerca de duas décadas, sendo usualmente datado de 1835, ano da estréia de Don Alvaro o la fuerza del sino, de Don Ángel de Saavedra, mais conhecido na historiografia literária como Duque de Rivas (1791-1865). Essa data é aceita mesmo por historiadores literários como Ángel del Río (1998: 129), que aponta para 1808 como início de uma série de transformações que se foram operando na sociedade, nas idéias, na sensibilidade, etc. e que pavimentaram o caminho do Romantismo.

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