ANAIS DO SIMPÓSIO


Victor Hugo de frente para a ilha assombrada
de Shakespeare

Leda Tenório da Motta
PUC/SP

Acresça-se que o que Madame de Staël denuncia aí como atmosfera francesa constrangedora, o que ela propõe examinar à luz de um parâmetro exterior, nesse trecho suficientemente picante para ilustrar o seu problema com a censura do tio de Luís Napoleão, é tudo aquilo que, na seqüência, este outro excessivo que é Stendhal vai tornar objeto de seu próprio processo. Chamando, por sua vez, essa velha França literária atrapalhada por suas leis da unidade – e mais que isso reacionária, a admitir-se que realismo e classicismo andam juntos – a "sociéte des Bonnes Lettres".

De fato, os cultores dos representantes franceses da primeira vanguarda da história da literatura, a romântica, se lembrarão do escândalo que Stendhal leva a peito denunciar nessa pequena brochura revolucionária, por seu turno intitulada Racine e Shakespeare, que tem o efeito de uma bomba, como aconteceria mais tarde com coisas como Cromwell e Hernani. Vale dizer, o gênero de recepção que os franceses ainda reservavam, ainda, na altura dos anos 20 do século das máquinas a vapor, àquele que os do norte já tomavam por um verdadeiro deus, considerando-o como o horizonte além do qual não se pode ver. Ao inventor da vida interior, com tudo que isso comporta de fantasmas, tão mal vistos na dramaturgia francesa sobrevivente à corte de Luís XIV. A recepção que os franceses reservavam ainda, em síntese, ao gênio em si: Shakespeare.

Dado que – como conta Stendhal – os velhos preconceitos dos franceses tendo triunfado quando de uma encenação de Otelo, em Paris, em 1822, ocorreu que os correligionários racinianos lograram, aos gritos de "abaixo Shakespeare", afugentar para um pequeno auditório longe e como clandestino a trupe de atores ingleses que viera se produzir numa sala importante da capital. Só ali Otelo pôde, então, ser apreciado exclusivamente pela gente do metiê. (2) O panfleto de Stendhal – hoje uma obra clássica que nos permite rir do acadêmico que briga com um shakespeariano, numa espécie de dramatização feita para enterrar o passado – tendo sido escrito como gesto indignado contra tudo isso, precisamente.

E acresça-se ainda que o que Madame de Staël chama "escrúpulo" e Stendhal as "Bonnes Lettres", ambos clamando contra o imenso ridículo das idéias sobre Shakespeare difundidas na França por Voltaire – Baudelaire, a seguir, em seu famoso ensaio sobre o riso, vai chamar, pondo o dedo na ferida, "prudência" (sagesse). "O prudente só ri tremendo", escreve ele, escarnecendo da gravidade da nação francesa, e "o Verbo encarnado nunca riu", acentua, associando a vida na França ao tédio do paraíso. Dando, enfim, os nacionais por incapazes do que quer que seja convulsivo, vale dizer, considerando-os inaptos para tudo o que é grande.

E talvez não fosse demais dizer, ainda, a propósito, que também Baudelaire guarda na memória a lembrança de uma pantomima inglesa acolhida, em outra oportunidade, na mesma Paris, do mesmo modo. E que ele aproveita o acontecimento para indicar, ainda por cima, a pouca competência dos franceses – aí incluídos Molière e o próprio Rabelais, sempre dono de alguma sensatez! – para o que chama de "cômico absoluto". E não se distingue, a seu ver, do fantástico, do maravilhoso, do prodigioso. Coisas que tanto mais interessam a esse poeta capaz de intitular obras suas diretamente em inglês, a exemplo de O Spleen de Paris, quanto o homem baudelairiano é duplo, e é o fato de ser duplo que o torna absolutamente cômico. Toda a gama das extravagâncias shakespearianas – espectro do pai morto, feiticeiras, florestas que caminham, o negro que esgana a loira, Lady Macbeth que pára de falar assim que consegue seu golpe, um rei bufão, um herói que fala pelos cantos com os seus botões – prestando-se assim à descrição de um natural que nada teria a ver com as supostas unidades.

E valeria ainda a pena evocar, atingido o final do século, o Mallarmé autor de As palavras inglesas. Essa espantosa pesquisa filológica – como indica o título completo desse devaneio mimológico pouco conhecido: Pequena filologia para o uso das classes e do mundo: as palavras inglesas – escrita num momento em que Victor Hugo ainda vive, em que o poeta da modernidade avançada propõe considerar o anglo-saxão como idioma perfeito. Encontrando ele nas raízes mais antigas dessa língua percebida como adâmica ou edênica – apesar das teses evolucionistas das gramáticas históricas da época, que trabalham com a idéia de corrupção dos vocábulos, e em que pese o caráter tão francês do inglês desde Guillaume le Conquérant – a expressão exata dos objetos do mundo.

Cada sopro do velho anglo-saxão, segundo Mallarmé – defensor da tese cratiliana da justeza dos nomes no caso do gênio setentrional – harmoniza-se maravilhosamente com a coisa mesma que designa, graças ao arcabouço consonantal desse verbo divino. Ao passo que o francês – língua de Monsieur-Tout-le-Monde, como ele a vê no texto que faz pendant com este, o mais conhecido Crise de vers – lhe parece antes o resultado do labor de um nomóteta perverso. Com seus timbres que malogram em exprimir os objetos por toques que lhes correspondam em colorido e porte... Como no caso da dupla famosa – entre malarmeanos – jour/nuit, onde a palavra "nuit" reveste-se de claridade, enquanto que a palavra "jour" é lúgubre. (3)

(2) STHENDHAL, 1994: 3.
(3) MALLARME, 1945: 364.

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