ANAIS DO SIMPÓSIO


Victor Hugo de frente para a ilha assombrada
de Shakespeare

Leda Tenório da Motta
PUC/SP

"De repente, o filho levantou a voz e perguntou ao pai:
– O que pensa desse exílio?
– Que será longo.
– Como pretende preenchê-lo?
O pai respondeu:
– Vou contemplar o Oceano.
Fez-se silêncio. O pai retomou:
– E você?
– Eu – disse o filho – vou traduzir Shakespeare."
Victor Hugo, William Shakespeare.

Nesta mesa sobre as relações de Victor Hugo com a realidade não simbólica ou com o mundo exterior – e os muitos trabalhos principalmente biográficos lançados por ocasião do bicentenário não cessam de indicar o compromisso do escritor com tudo o que o cerca, em que pese o fato de ele não parar de escrever e de inscrever-se assim infinitamente numa espécie de logosfera, demonstrando, como apesar de si mesmo, que o mundo é um livro – as considerações que se seguem tratam – literalmente – da vida deste gênio sem fronteiras nesta fronteira entre a França e a Inglaterra que é a Mancha. Entrelugar tão normando quanto saxão em pleno meio do mar no interior do qual o poeta põe-se a escrever, certamente não por acaso, a melhor parte de sua obra.

Aqui estão, pois, algumas notas sobre o caráter providencial da proscrição de Victor Hugo – por quase vinte anos como é sabido – nessas ilhas de frente para o país ensombrecido de Shakespeareque, de que ele chega a pensar seriam seu túmulo, como lemos na abertura de Os trabalhadores do mar. Essas ilhas que lhe teriam valido, de fato, uma bela sepultura – não fosse o poeta ser levado, finalmente, para o Panteon, como uma glória da República – digna de um romântico devorado pela força dos elementos. Como acontece, de resto, ao herói dos Trabalhadores do mar, que se deixa tragar, no último capítulo, pelas águas, repetindo a morte nunca esquecida de Léopoldine.

O que se segue quer ser uma colaboração às reflexões sobre o impacto do arquipélago inglês colosso sobre Victor Hugo subtraído a sua gentil vida parisiense. Espetáculo que ele soube descrever, aliás, como um expressionista "avant la lettre", nos desenhos já modernamente macabros que nos deixou. Cenário gótico em que ele se deixou fotografar todo de negro vestido, à beira dos pescanhos abissais, acorrentado ao seu rochedo como um Prometeu. Paisagem feita para o seu desabrochar – numa palavra – apesar não apenas de toda a bela produção anterior mas da ferida moral do exílio.

Nesse sentido, eu gostaria de lembrar o que já pensava das brumas fantasmagóricas desse norte no seio do qual Victor Hugo se acomoda para escrever cada vez melhor – já que todas as obras-primas são do período – esta outra exilada da tirania de um outro Napoleão e pioneira da defesa das larguezas da perspectiva poética inglesa que é Madame de Staël. Ironista das regras da literatura francesa que ela era, eis o que dizia, preparando todos os excessos do gênio transbordante que nos ocupa, essa dama cosmopolita tão inimiga do primeiro imperador quanto amiga de Goethe e dos irmãos Schelegel, num capítulo particularmente delicioso de seu De l’Allemagne. Obra de significativo título que data da abertura do mesmo século que será de ponta a ponta hugoliano.

"Na Alemanha – nos diz Madame de Staël – não há gosto fixo para nada, tudo é independente, tudo é individual. Julga-se uma obra pela impressão que se recebe dela, nunca pelas regras, já que não as há de modo geralmente admitido: cada autor é livre para criar para si mesmo uma nova atmosfera. Na França – continua – a grande parte dos leitores não quer de modo algum se deixar comover, nem sequer divertir-se às custas de sua consciência literária: o escrúpulo fez ali sua morada." (1)


(1) STAËL, 1968: 159-160.

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