ANAIS DO SIMPÓSIO


Algumas estratégias de persuasão e de sedução do
sujeito-comunicante Victor Hugo
 

Ida Lucia Machado
UFMG

Introdução

Para melhor elucidar o leitor ou o ouvinte pouco habituado às bases da semiolingüística, teoria discursiva criada e proposta pelo teórico na citada obra, propomos, a seguir, uma rápida exposição de seu esquema enunciativo, no qual aparece o sujeito em questão.

Segundo a teoria de Charaudeau, os sujeito enunciativos são quatro e se distribuem em dois circuitos: (i) o circuito da palavra configurada, onde estão os "seres de palavra" e (ii) o circuito externo à palavra configurada, onde se situam os seres empíricos, ou seja, os sujeitos da ação, capazes de organizar o mundo real em mundo linguageiro.

EUc                                   EUe   <--------------->   TUd                                   TUi
Ele*                               Ele

Os quatro sujeitos, distribuídos dois a dois, ocupam dois espaços distintos: de um lado, vemos um sujeito-comunicante (EUc) e um Tu-interpretante (TUi) que estão em um espaço ou circuito externo: é o espaço do fazer, onde os seres do mundo real vão acionar a palavra segundo a situação psicosóciocomunicativa em que estão envolvidos. EUc e TUi são então considerados como atores sociais, parceiros do ato de linguagem da palavra enunciada. Do outro lado, temos a dupla Eu-enunciador (EUe) / Tu destinatário (TUd), que ocupa um espaço interno ou, em outros termos, o espaço do dizer; são seres de palavra que personificam os protagonistas da enunciação. Assim, para produzir um enunciado ou um texto, o EUc organiza o mundo real (Ele) em mundo de palavras (Ele*). Para fazê-lo deve, pois, acionar um EUe e um TUd. Cabe ao TU-interpretante, ou leitor/ouvinte real, aceitar ou não esse enunciado ou texto.

Nesse ponto de vista, Victor Hugo ocuparia a posição de um sujeito-comunicante "dublado" por um sujeito-enunciador-narrador. O sujeito-comunicante refere-se a um homem que viveu no século XIX, com sua biografia. Tal sujeito viveu diferentes papéis, como todos já o sabem, mas principalmente os papéis de grande escritor e "chef de file" do movimento romântico na França e o de político que defendia a liberdade e a democracia... Sintetizando, Victor Hugo, como sujeito-comunicante, é um homem que realmente existiu e que marcou seu século. Mas ele deve também ser visto "associado" a um sujeito-escritor-enunciador. Sempre seguindo os critérios da semiolingüística, diríamos então que, para compor sua obra escrita, Victor Hugo fez apelo a um sujeito-narrador ou a um EUe.

Devemos enfatizar que, assim agindo, este duplo sujeito não conservou uma certa "neutralidade" face aos acontecimentos de seu quotidiano. Como o diz Maingueneau (1993: 28) "l’écrivain nourrit son oeuvre du caractère radicalement problématique de sa propre appartenance au champ littéraire et à la société". Para o teórico em questão, o escritor não deve ser visto como uma espécie centauro, um ser mítico, dividido entre a terra e as estrelas ou entre o real e o imaginário. Será melhor vê-lo como "quelqu’um dont l’énonciation se constitue à travers l’impossibilité même de s’assigner une véritable place."

Assim, para escrever, o sujeito-comunicante Victor Hugo "criou" um sujeito-narrador e o "influenciou", transmitindo ao seu "duplo" ou ao seu "desdobramento" seus gostos e crenças. Nem completamente independente, nem completamente dependente do EUc: é assim que vemos esse narrador ou esse EUe.

Acreditamos que Victor Hugo tinha um projeto de palavra mantido por duas intenções básicas: a de divertir o leitor e a de "despertá-lo", fazendo com que ele tomasse consciência dos problemas políticos e sociais de seu tempo. Para colocar em prática seu "projeto de palavra" Victor Hugo legou ao seu sujeito-enunciador-narrador inúmeras estratégias discursivas.

Vamos examinar algumas delas, antecipando que, para nós, todas são escoradas em dois fatores: a sedução e a persuasão.

O processo de captação do leitor: algumas ilustrações

A AD não deve ser confundida com uma simples análise de textos ou o que seria pior, com uma análise de trechos de textos: um texto, no âmbito da AD, deve ser considerado com e dentro de seu contexto. No entanto, não nos é possível, por razões evidentes, transcrever aqui, por exemplo, os seis mil versos que constituem o "edifício" chamado Les châtiments (1853) de Victor Hugo. Teremos que limitar nossa observação à apenas uma parte dessa "catedral": escolhemos então, para ilustrar nossa apresentação, o poema intitulado "Souvenir de la nuit du quatre". Ao fazer esta escolha ou este "corte" estaremos adotando uma hipótese já levantada por Charaudeau (1983: 154) segundo a qual o projeto de palavra de um escritor dá lugar à "une mise en scène qui couvre l’ensemble de son ouvrage et, à la fois, se retrouve dans la moindre de ses parties." Iremos, pois, considerar o poema escolhido como uma espécie de subconjunto representativo da totalidade de Les châtiments.

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