ANAIS DO SIMPÓSIO


Aspectos da modernidade em Notre Dame de Paris
de Victor Hugo

Sidney Barbosa
Unesp

Notre Dame de Paris, publicado pela primeira vez em 1831, apresenta aspectos muito interessantes no que se refere à sua criação e à sua constituição. Isso pode caracterizá-lo como uma expressão contraditória de seu tempo, um defeito, portanto, mas na realidade irá fazer dele uma obra-prima do fazer literário da primeira metade do século XIX. De um lado, sua origem naturalmente moderna, uma vez que escrito numa forma literária ainda em processo de valorização pela burguesia do início da década de 1830, o romance. Victor Hugo não desconhecia o trabalho que o contemporâneo seu, Honoré de Balzac, fazia com o gênero literário: lançava as bases do romance realista, ou romance burguês. Além disso, Notre Dame foi publicado na França de Luís Felipe, da "Monarquia de Julho" herdeira da Revolução de 1830, conhecido pela alcunha de "o rei burguês".

Sua temática, todavia, é voltada para a última fase da Idade Média, uma vez que a história se passa em 1482, dez anos antes da descoberta da América. No universo do romance, o casamento entre essas duas épocas bem distintas, a da dominação burguesa e a de fundamento temático medieval, realiza-se tão perfeitamente que o leitor, notadamente o contemporâneo da primeira metade do século XIX, não tem nenhum estranhamento. Ele não registra mistura de tons ou sente alguma defasagem.

Isso se deve em parte ao fato de que a cidade de Paris que o romance suscita, por meio de suas descrições, não ser muito distante daquela que os olhares dos leitores contemporâneos vêem todos os dias. Em 1830, época da escritura do romance, havia uma Paris arquitetonicamente muito mais próxima da Idade Média do que da Paris burguesa, traçada vinte anos mais tarde, no Segundo Império, racional e pragmaticamente pelo Barão Haussmann, o todo poderoso urbanista de Napoleão III, a partir de 1851. A cidade seria então quase totalmente reconstruída sobre os escombros, não só das casas antigas, das ruelas e dos monumentos postos literalmente abaixo, mas de um estado de espírito, de uma maneira de se viver a cidade num certo ritmo que, no entanto, ainda estavam bem presentes na década de 30. A nova Paris disciplinada que nasceria da prancheta do planejador urbano e do poder autoritário, cicatrizou-se e, em que pese a memória arquitetônica perdida sob as picaretas dos operários, guarda sua personalidade e nos encanta até os dias de hoje.

É como se o autor de Notre Dame de Paris, profeticamente, pressentisse a destruição da Paris medieval e, no último instante histórico que antecedesse ao desastre, colocasse em circulação, por meio da criação literária, seu romance romanesco, um panfleto pungente em defesa do patrimônio histórico e arquitetônico. Todo se passa num instante antes que a ganância dos empreendedores imobiliários de então e a astúcia de um poder político interessado muito mais em proteger-se, evitando objetivamente a construção de eventuais barricadas nas ruas, do que na qualidade de vida da população na urbe, tudo destruísse. Os burgueses só pensavam em proteger-se da turba de excluídos, pouco ligando para a paisagem urbana construída pela História durante séculos. Está fora de dúvida que o pouco que sobrou da Idade Média, na Paris de Haussmann, em especial a própria basílica de Notre Dame, deva ser creditado à sensibilização da população que havia sido provocada pela publicação do romance de Victor Hugo. O fato nos autoriza a pensar que há, no caso, uma relação entre a criação literária e uma atuação em prol do patrimônio histórico e arquitetônico.

Ou seja, há presentes na cultura, no cenário e, sobretudo, nas atitudes das personagens desse romance, tematicamente inserido na Idade Média, aspectos que estão contaminados por questões prementes dos tempos modernos. Esses questionamentos, embora sutilmente apresentados no universo do romance, traem ou colocam intencionalmente uma problemática e uma aclimatação contemporâneas de Victor Hugo, típicas da primeira metade do século XIX.

Dentre eles, distingue-se como verdadeira protagonista do romance a igreja de Notre Dame de Paris, visível e destacada já no próprio título, como o espaço sagrado e ao mesmo tempo humano, um lugar de espiritualidade, mas também de acontecimentos, de sentimentos e de asilo. A sua salvaguarda e a preocupação com o seu estado de conservação são visíveis logo no frontispício da obra, denominado "Prefácio", no qual está bem clara a relação do autor com a conservação do monumento e até mesmo a justificativa da própria existência do romance que estamos estudando:

Há anos o autor deste livro, visitando, ou melhor, esquadrinhando a igreja de Notre Dame, encontrou (...) estes caracteres já negros de velhos, e profundamente gravados na pedra (...) rebocaram ou rasparam (...). Há duzentos anos que é costume fazer isso nos maravilhosos templos da Idade Média. As mutilações procedem de toda parte (...) Foi desta palavra que nasceu este livro. 1 de março de 1831." (p. 7) (3)

(3) Todas as notações de número de páginas, sem outras indicações, referem-se a HUGO, Victor. Nossa Senhora de Paris (O corcunda de Notre Dame). Trad. Uliano Tevoniuk, Rio de Janeiro: Ediouro Tecnoprint, s.d.

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