ANAIS DO SIMPÓSIO


Aspectos da modernidade em Notre Dame de Paris
de Victor Hugo

Sidney Barbosa
Unesp

"Ave Maria!
Protège-moi
De la misère, du mal et des fous
Qui règnent sur la terre."
(1)

A questão da definição do que seja a modernidade é complexa e extensa. Em vista disso, e para os fins a que nos propomos neste trabalho, tomaremos a "modernidade" como sendo um conjunto de fatores sociais, políticos e culturais que são marcados pela hegemonia econômica, social, política e estético-ideológica da burguesia, num espaço – o mundo ocidental – e num tempo determinado, os últimos quatro séculos. Portanto, a trajetória desse sucesso burguês remonta à época do Renascimento, marcada pelo mercantilismo, a expansão mundial do comércio, sobretudo italiano e pela ascensão econômica e política dessa classe social no cenário europeu. Isso ocorreu primeiramente em Portugal, depois se estendeu à Espanha, mais tarde atingiu a Holanda e, num último estágio, dominou as relações econômicas na Inglaterra e na Alemanha.

Contudo, foi especialmente na França do século XVIII que os efeitos das ações da classe burguesa tornaram-se muito visíveis e provocaram reviravoltas políticas que, culminadas com a Revolução Francesa de 1789, repercutiram em todo o mundo europeu e chegaram até mesmo ao Novo Mundo, principalmente nas Américas espanhola e portuguesa.

C’est une histoire qui a pour lieu / Paris la belle en l’an de Dieu / Mille-quatre-cent-quatre-vingt-deux / Il est venu le temps des cathédrales / Le monde est entré / Dans un nouveau millénaire / L’homme a voulu monter vers les étoiles / Écrire son histoire / Dans le verre ou dans la pierre. (2)

O império dessa nova classe social sobre as outras ganharia ares de permanência e duração com o exclusivo domínio ideológico que a burguesia européia teve no século XIX e, especialmente, com a expansão colonialista levada a efeito na África e na Ásia no período. Os ganhos econômicos decorrentes dessa apropriação extraordinária de espaço e de riquezas proporcionaram as condições materiais para que a Europa vivesse uma verdadeira belle époque econômico-financeira e política. Essa trajetória ascendente e bem sucedida nos seus propósitos da classe burguesa repercutiu, para além dos aspectos propriamente materiais, e atingiu a vida social, as Artes, as Letras, o gosto estético e garantiu a hegemonia da sua ideologia, em toda a Europa.

A França, a partir da fulminante ascensão da burguesia durante todo o século XVIII e a conseqüente tomada do poder político na Revolução iniciada em 1789, exportou, manu militari, por meio da figura de Napoleão Bonaparte, para todo o mundo os novos modos de vida materiais e espirituais determinados pela burguesia. Nesse sentido, o codex jurídico napoleônico apresenta-se como a atualização do aparato jurídico romano destinado a regular, segundo o diapasão burguês, as novas relações entre os indivíduos e entre os povos e o patrimônio filosófico iluminista, amealhado no século anterior, tornou-se o paradigma universalizado dos tempos modernos.

Victor Hugo, de quem ora festejamos o bicentenário de nascimento, foi, praticamente em todo o século XIX, o arauto, o defensor e o escritor por excelência das idéias do Progresso e da Ciência, que marcaram a ação da burguesia francesa no mundo e constitui o que chamamos de "modernidade". Seu apego perene a esses ideais, sua admiração intransigente à figura histórica de Napoleão e sua adesão consciente aos valores republicanos constituem bons exemplos desse compromisso.

Embora tenha se mantido coerente com suas idéias de classe toda a sua vida e sua prática política sustentasse sempre uma ação defensora dos interesses burgueses, do monarquismo da juventude, ao "mandarinato" moral em política da maturidade, seu discurso literário foi muitas vezes dirigido em prol dos excluídos dessa caminhada histórica da burguesia, que se contavam aos milhões em toda a Europa. Nesse sentido, podemos lembrar-nos especialmente dos romances Le dernier jour d’un condamné (1827), do próprio Notre Dame de Paris (1831), de Claude Gueux (1834), além de Os trabalhadores do mar (1866), considerado pela crítica o melhor romance proletário do século XIX.

Dieu que le monde est injuste! / Notre lot n’est pas le leur / Nous n’avons pas de fortune / Mais eux, ont-ils un coeur?

(1) PLAMONDON, Luc; COCCIANTE, Richard. Notre Dame de Paris. Paris: Poome Music, 1997. 1 CD.
(2) COCCIANTE & PLAMONDON, 1977.

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