ANAIS DO SIMPÓSIO


Deter a leitura, despertar as imagens do Tormentum belli e
Vis et Vir
de Hugo

José Maurício Saldanha Álvarez
UFF

Subitamente, um homem saltou do convés principal para a ponte inferior. Era o canhoneiro responsável por ter deixado o canhão mal amarrado. Aos que tentaram demovê-lo da loucura replicou: "Se minha negligência libertou o canhão, eu vou capturá-lo". Numa das mãos conduzia uma barra de ferro, na outra, uma corda resistente. Ia travar-se a batalha da máquina contra o homem, a batalha entre a matéria contra a inteligência, o duelo entre a coisa e o homem que a produziu. O canhoneiro conhecia o canhão por quem zelava. Atirava com ele, limpava-o e o lubrificava quando estava sossegado e amarrado. Podia-se dizer que lhe dava de comer. Agora, o canhão solto estava pronto para matá-lo. Saindo das trevas, deslizou sorrateiro, ganhou impulso e arremeteu veloz contra o canhoneiro. Livrou-se da morte por esmagamento com um salto, ágil. Resfolegando, o canhão fez uma finta e deslizou de costas, girando, fazendo avançar sua boca sangrenta. O canhoneiro sentiu o hálito da fera, respingou-se-lhe o sangue dos mortos nos pés. O canhão rolou para as sombras e ficou, lá rosnando. E ia para a frente e para trás. Depois, girava, pulava para girar e tornar a correr sobre o homem que, ágil e atento, escapulia, corda na mão, barra na outra.

O canhoneiro empurrou com o pé um saco repleto de papel, e aguardou. O canhão, sorrateiro, arremeteu pelas costas. O homem saltou, mas uma enorme lasca foi arrancada ao mastro principal que, abalado, gemeu. O pé do canhoneiro ficou embaraçado num rolo de cordas. Tentou desvencilhar-se, mas não conseguiu. Para o canhão, era a oportunidade esperada. Rolou veloz, com a boca apontada, aberta. Num derradeiro instante, o canhoneiro conseguiu pular e jogar o saco contra as rodas imobilizando-as. O canhão sentiu-se preso. Já não girava livre como antes. O canhoneiro, agilmente, travou-lhe as rodas com a barra de ferro. Depois o cavalgou e sujeitou-o com a corda. Com o corpo suarento, manietou-o com novos nós. Estrangulara o monstro que, sem fôlego, jazia imóvel. Era a vitória, porque o canhão imobilizado, suado, besuntado de sangue e detritos, amassado, e já inútil, reconheceu sua derrota sendo colocado de volta na bateria de onde se soltara.

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