ANAIS DO SIMPÓSIO


Deter a leitura, despertar as imagens do Tormentum belli e
Vis et Vir
de Hugo

José Maurício Saldanha Álvarez
UFF

Europa, 1793, entre a costa da Inglaterra e o litoral da França revolucionária.

Uma sólida nave de guerra fez-se ao mar de um porto secreto na costa sul da Grã – Bretanha, singrando rumo a um ponto ignorado do litoral francês. Sua tarefa é fazer desembarcar um misterioso passageiro que viaja incógnito. Ele tem a seu cargo uma importante missão política e de guerra nesse tempo turbulento de revoluções.

Essa corveta transporta trinta poderosos canhões ocultados no ventre de sua ponte inferior. Aproveitando o tempo e o vento favoráveis, o navio veleja velozmente. A tripulação e seu passageiro incógnito estão despreocupados: nenhum inimigo ou perigo à vista ameaçam o cumprimento de sua missão. A viagem até o local determinado deverá ocorrer sem incidentes. No entanto, o destino ia pregar-lhes uma surpresa mortal. Repentinamente, da ponte inferior ouvem-se gritos de alerta: um dos grandes canhões soltou-se das frouxas amarras que o prendiam à bateria.

Imediatamente, cinco bravos desceram para dominá-lo, antes que fosse tarde demais.

Um canhão libertado e rolando sem controle é um dos mais terríveis acidentes que pode suceder a um navio de guerra a vela em alto mar. Esse monstro, dotado de uma enorme força destrutiva, é capaz de sozinho demolir e afundar um navio. A cólera implacável que anima os objetos inanimados faz o canhão ter saltos de pantera, o peso de um elefante, a agilidade do rato, a teimosia do machado, o inesperado da onda, a rapidez do relâmpago. Livre da servidão humana torna-se uma máquina que pensa, e seus desejos guardam a essência da crueldade humana. Ele foi produzido para quebrar, romper, esmagar, dilacerar.

Logo que se desprendeu, o canhão iniciou sua jornada de destruição.

Num golpe súbito, emergindo das sombras e com todo o seu peso esmagou cinco artilheiros. Com suas rodas poderosas retalhou-os, espalhando seus restos. Ao deslizar de um lado para o outro, deixava um rastro de carnagem, com suas rodas embebidas de sangue. Oscilava devagar, tateando, experimentando sua força aqui e ali. A enorme peça deu-se conta de que a nave de guerra lhe pertencia.

A tripulação composta de homens habituados aos perigos da guerra, informada de que um monstro rodava descontrolado sob seus pés, acovardou-se. Temiam a potência descontrolada do canhão, um Apocalipse de rodas que arremetia de um lado para o outro. Ele deixava um rastro de destruição enquanto ia e vinha. Imprevisível como o mar, surgia à luz baça das lanternas, para logo se sumir na escuridão.

Afastava-se para retornar novamente, cada vez mais terrível e destruidor. Encolerizado pela docilidade dos outros canhões, investiu contra eles, desmantelado-os. Arremeteu contra as paredes da nave, atingindo as cavernas (porões?), abrindo rombos por onde a água entraria se houvesse tempestade. Ia para cá e para lá exercendo sua furiosa vontade de destruir. Passou e repassou pelos corpos dos mortos. Após uma acalmia, retomou fôlego prosseguindo em sua implacável paixão destrutiva. Abateu-se sobre a base dos mastros, fendeu o mastro principal e abalou seriamente os demais. Com raiva redobrada, decidiu arremeter novamente contra o casco, abrindo novas brechas por onde já entrava água. Do lado de fora, o mar despertou para o que ocorria e fez com que as vagas respondessem ao estrondo das pancadas desferidas por dentro. Era certo o naufrágio, os golpes do canhão desmantelavam o casco da nave.

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