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Pós-Colonialismo


Encontrando Paraíso Perdido numa conversação Pós-Colonial

Luiz Fernando Ferreira Sá.


Numa leitura padrão, Paraíso Perdido é a história da queda de um terço dos anjos, da queda de Adão e Eva e da expulsão do casal do paraíso. E ao menos aí parece haver um consenso da crítica: o épico narra pelo menos duas quedas e algumas perdas. A partir daí vemos que esse texto de Milton atua de uma maneira definitiva na organização de sua obra: pode-se dizer que é o último testamento de um querer político e de um dizer espiritual provenientes de um autor de gênio. Para mim, então, há uma pergunta a ser feita quanto aos fins de Paraíso Perdido, já que pelo menos a um fim a história serve como que expressando uma vontade do autor ou sua intenção última. Quase no fim da carreira literária de Milton, Paraíso Perdido parece adquirir uma autoridade metalingüística para conceder uma certa finalidade e inteligibilidade a tudo que o precede. Esse sentido particular de finalidade é estritamente extra-textual: ele se encontra fora do texto.

Do mesmo modo, não há nenhum ponto definitivo dentro do texto no qual a história chega a um fim. Uma vez que o texto contém vários fins (como também contém vários inícios), a questão dos fins de Paraíso Perdido não pode ser relegada a um lugar subordinado fora do texto. Primeiro, a história termina com o exílio de Satã no inferno juntamente com seus pares. Mas essa queda não é suficiente e então o épico prossegue para mais uma queda e tem um outro fim na queda de Adão e Eva. Segundo, o épico não encerra, a história continua com as várias lições arcangélicas, advertências e ensinamentos. Seria esse um fim? Não. O texto caminha para uma seqüência em que leitores, anjo, Adão e Eva dão um passo para fora do paraíso e para fora do poema. Seria esse um fim?

Na minha des-leitura de Paraíso Perdido venho mostrando a dificuldade de decidir onde o texto de Milton inicia e onde esse texto finaliza. Mais genericamente, isso problematiza o próprio conceito de “texto” (esse em questão ou outros). O exato fim desse texto deve continuar numa interrogação porque nenhum dos quatro possíveis fins internos é finalmente conclusivo; mas esse texto também deve continuar numa interrogação em relação aos fins e finais de Milton, do autor. E especular sobre os vários possíveis fins desse texto é também especular sobre a herança crítica de seu autor; as diferenças críticas no decorrer dos anos mostram que não há um último e conclusivo fim em discussões e debates sobre Paraíso Perdido. Na minha des-leitura da crítica colonialista em Paraíso Perdido e na minha des-leitura (pós-)colonial de Paraíso Perdido venho mostrando que os conflitos e crises de leitura desse texto não estão indubitavelmente exteriores a ele: conflito e crise são parte fundamental na composição desse texto. As diferenças críticas no texto estão numa relação direta com as diferenças críticas sobre o texto. A articulação contraditória dos modos de significação dentro do texto corresponde às várias possibilidades de des-leituras do paraíso de Milton. Presumindo que a diferença textual de Paraíso Perdido e outros textos constrói para o primeiro uma identidade que é totalmente segura, muitos leitores também supõem que a questão da origem do mal e a questão da razão imperialista são respondidas dentro do texto. Como se o texto ele mesmo fosse a autoridade última, já e sempre tendo que ter a última palavra sobre qualquer julgamento. Paraíso Perdido não é uma explicação “OF MAN’s first disobedience”, como também não pode ser uma justificação de “the ways of God to men” (Milton 1957: 232-233). Paraíso Perdido é literatura; ele é texto, e em conseqüência disso não pode fixar, decidir conclusivamente, colonizar nenhum ponto.

Dizer que não há um “vanishing-point” textual é também dizer que não há um “vanishing-point” para a literatura, ou seja, nenhum ponto no qual textualidade ou literatura venha a se fixar, parar definitivamente, decidir conclusivamente ou colonizar um sentido referencial. Isso também é dizer que literatura não tem uma identidade fundamental e, daí, que ela não pode se opor a alguma coisa fundamentalmente outra que ela mesma. Ao afirmar tudo isso, eu estou me referindo não somente à literatura, mas também aos espaços in-findos fora e dentro do texto (política, justiça, ética).

De volta a Paraíso Perdido e Milton, e ao segundo, mais especialmente, é muito difícil identificar qualquer “intenção autoral” ou “verdade” aparente no texto, uma vez que seu estilo, sua escrita e erudição encorajam tanto a especulação interpretativa quanto o conflito; em conseqüência disso, sua escrita é dissociada de sua “filosofia” ou “política” estrito senso e não pode ser lida como se fosse um meio transparente através do qual suas “intenções” seriam re-veladas. Defender Milton ao proclamar que os modernos Eliot e Pound ou que, de Leavis a Evans, a crítica literária des-leu Paraíso Perdido no sentido de equívoco, engano ou abuso, seria cometer outra des-leitura e negligenciar a premissa de que todo conhecimento pressupõe uma dose de re-conhecimento e des-conhecimento. Em outras palavras, minha des-leitura de Paraíso Perdido passa necessariamente por uma des-leitura da referida crítica literária sem com isso repudiar ou acusar de erro coisa alguma. É muito mais eficaz sabotar os textos que temos em mãos do que “querer dizer” de uma ética ou política pretendendo esconder ou retirar de cena o “querer jogar” da palavra e com a palavra. O “estilo” de Milton em Paraíso Perdido não pode ser negligenciado porque é de fundamental importância e o autor, poeta, tratadista, diplomata e outros tantos em “Milton” não podem ser defendidos porque: primeiro, eu não trato do autor, mas me fixo ao texto de Paraíso Perdido numa estratégia de des-leitura ou des-construção; segundo, eu não creio que o autor, Milton, deva ser acusado ou defendido porque sua intenção e verdade são formas bastardas no texto e do texto, menos transparentes e mais a-parentes; e terceiro, se já é um lugar-comum dizer que política estrito senso não se encontra no texto, uma des-leitura que leve em conta política, lato senso, no texto, já é singular. Para se montar uma defesa do autor, por outro lado, teríamos de acreditar que (efeitos da) Verdade ou (clamores de) verdade e retórica são separáveis em Milton. Em suma, se a filosofia e a política no texto em questão forem “reduzidas” à escrita, então não poderá haver (des-)leituras certas ou erradas de Paraíso Perdido ou de “Milton”, mas apenas uma multiplicidade de leituras.

Não há dúvidas de que há várias e diferentes leituras do paraíso de Milton e de que não há nenhuma leitura “certa” acima de todas as outras. Mas não é suficiente dizer que há uma variedade e uma multiplicidade de leituras do paraíso de Milton, uma vez que há também a possibilidade de uma hierarquia de (des-)leituras. Daí, não há somente diferenças horizontais (multiplicidade) como também diferenças verticais (hierarquia). O cancelamento de qualquer um desses eixos pode resultar numa certa perversão, numa banalização ou mesmo numa fria “desinfelicidade”.

O caso de (des-)leituras do paraíso de Milton, então, é uma singularidade: as diferenças extremadas de (des-)leitura do épico são um efeito da diferença, às vezes extrema, dentro do próprio épico, ou seja, sua escrita. Não podemos sugerir que há uma intenção autoral ou verdade pro-clamada inscrita nessa escrita, como também não podemos supor que esse texto esteja aberto a todo e qualquer jogo de sentido ou interpretação. Então, como o paraíso de Milton é (des-)lido não pode ser dissociado da escrita do paraíso, ou do quê Milton escreveu, mas também não pode ser reduzido a tão somente isso. Posso dizer que, ao des-ler o paraíso de Milton, eu sou obrigado a emprestar a minha atenção à sua escrita no sentido mais literal possível—às palavras nas linhas do épico, como estão escritas—, mas não para encontrar “um” “sentido” unitário ou coerente atrás/sob cada palavra. Em vez disso, noto como alguns interesses “fora” do paraíso de Milton podem se atar (atracar com?) a certos mecanismos retóricos no mesmo texto, tentando levar o último a se prostrar perante esses mesmos interesses.

Parece-me que o objetivo de todos esses interesses é determinar o sentido de Paraíso Perdido de Milton—ter poder sobre o texto. E ainda assim, posso dizer que, dada a afirmação da vontade de poder e desejo de (des)conhecimento nesse texto de Milton, esses interesses podem dificilmente ser vistos como “externos” ao texto. A questão não é, no entanto, que (des-)leituras “interessadas” estão fora do texto ou que uma certa “verdade desinteressada” está dentro do texto, mas antes que Paraíso Perdido joga com o problema das relações dentro e fora do texto de modo que a diferença entre o que Milton escreveu, o que Milton quis dizer e o que nós, seus leitores, (des-)lemos continua uma grande in-decisão (de poder). Minha des-leitura do paraíso de Milton des-conhece, tanto quanto possível, os imperialismos de leitura de uma obra desse autor, reconhece não só as dificuldades, mas também as diferenças que podem vir a se passar como desculpas de colonização desse texto e conhece que a diferença do paraíso de Milton com ele mesmo não é absolutamente interna ou externa, como também não é horizontal (associativa) ou vertical (seletiva), mas está, antes de tudo, em conflito e crise permanentes. E crise, e conflito, e luta de leituras e des-leituras é uma seqüência in-fame de fundamental ligação entre Paraíso Perdido e estudos (momento, espaço, teoria e prática) pós-coloniais. Desconheçamos assim um jardim para lá de ocupado e e(n)dên(m)ico da palavra, “milton” e seu “paraíso”.

RESUMO

Ao usar o circuito pós-colonial de teoria e de prática textual de Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha este ensaio introduz a possibilidade de uma des-leitura contrapontista de um texto de Milton: Paraíso Perdido poderá finalmente libertar-se de seu conteúdo colonial e liberar seu conteúdo pós-colonial.
Palavras Chaves: John Milton; poesia; pós-colonialismo

Referência Bibliográfica

Milton, John. John Milton: Complete Poems and Major Prose. Hughes, Merritt Y. (Ed.).
New York: 1957.


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