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Pós-Colonialismo


Encontrando Paraíso Perdido numa conversação Pós-Colonial

Luiz Fernando Ferreira Sá


ABSTRACT

By using Edward Said's, Gayatri Spivak's, and Homi Bhabha's circuit of post-colonial theory and practice, this paper introduces the possibility of a counterpointal (mis)reading of Milton's text: Paradise Lost may at last free its (post-) colonial (dis)content.

Key-words: John Milton; poetry; post-colonialism.

Em oposição ao início Dantesco, a descida ao inferno de Milton, no início de Paraíso Perdido, não é peripatética, nem gradual e muito menos suave. Começa-se a leitura do épico no meio do inferno do mesmo modo que no meio das coisas; e apesar de tal início não ser sem precedente, um dos efeitos de se começar a ação épica a partir do inferno—e talvez num dos pontos mais cruciais de sua narrativa—é desconcertar os leitores de tal forma, que eles se sintam obrigados a suspender, pelo menos parcialmente, suas simpatias e seus julgamentos. No decorrer do texto, a teodicéia miltoniana não nos capacita necessariamente a resolver o problema do mal e do imperialismo e sim a dar um passo junto a Adão e Eva para fora do poema e para dentro de um mundo que se encontra num por-vir e em crise.

Essa crise inaugural que o poema solicita à tradição literária também solicita aos seus leitores uma devida atenção. O dentro e o fora do épico se tornam espaços escorregadios, superfícies textuais. Não há nenhum mecanismo ou origem anterior, seja estrutural ou autoral, que possa controlar os circuitos de significação entre épico e leitores, entre texto e recipiente . Há tão somente um jogo “de” e “entre” superfícies textuais: ora a tradição literária clássica, ora a tradição literária renascentista européia, ora a tradição cristã, ora a tra(d)ição exegética e cristã, ora a tra(d)ição de recepção deste texto. No lugar de querer dizer(meaning-to-say), temos, nós leitores do épico, um querer jogar(meaning-as-play). Não é difícil ver como um texto na linha de Paraíso Perdido pode se tornar canônico em conseqüência de uma versão de leitura que normalmente circula como se fosse verdade ou mesmo, como se fosse toda a verdade. A falta de qualquer evidência inequívoca para decidir se Satã é um sujeito colonizador ou colonizado, ou se Adão é um sujeito colonizador ou colonizado, ou mesmo se Deus é um arquétipo do colonizador ou do criador, pode fazer Paraíso Perdido parecer um texto em curto circuito. Ou seja, um texto cujas diversas “tradições” são traições delas mesmas (não há nada debaixo da superfície do texto) e cuja ambivalência se torna cada vez mais aparente retrospectivamente (depois de leituras, re-leituras e des-leituras).

Mas antes que “Milton” (como metonímia de uma performance textual distintamente diferente) se tornasse sinônimo de tantos conceitos “canônicos” (puritano, cristão, europeu, colonizador) sua reputação como autor difícil (portanto elitista) e ambíguo já havia se estabelecido. “Milton”, do centro do cânone inglês e mesmo no ápice de uma literatura mundial, já e sempre é considerado como que merecendo atenção crítica séria muito antes do termo pós-colonialismo se tornar popular (no meio da década de 90) no meio acadêmico. O termo pós-colonialismo, caso fosse aplicado ao nome “Milton”, o seria apenas de maneira angular, na forma de destituição e repúdio. Na minha conversação pós-colonial com Paraíso Perdido, resgato o texto do paraíso de Milton como uma topografia esp(e)acial de performance textual de escrita e leitura e como uma geografia esp(e)acial de escrita e leitura de diferença; ou seja, resgato pequena parte daquilo que a crítica e a historiografia literária recalcaram de Paraíso Perdido e do nome “Milton”.

A leitura “correta” do nome “Milton” ou do texto do paraíso é baseada numa repressão de leituras possíveis ou in-corretas do mesmo modo que nossa “verdadeira” identidade depende do momento em que vemos uma imagem de nós mesmos refletida no espelho e que a re-conhecemos como alteridade, um outro de nós mesmos. Esse re-conhecimento então tem como base um des-conhecimento, do mesmo modo que uma leitura se baseia numa des-leitura. Uma vez que todo e qualquer ato de re-conhecimento e toda e qualquer ação de leitura se dão no simbólico, podemos inferir que todo re-conhecimento é des-conhecimento e que toda leitura é uma des-leitura. Ou seja, todo querer dizer é um efeito estrutural des-controlado de um querer jogar com a palavra. A importância radical de tal constatação é que o paraíso de Milton, na minha des-leitura, se torna uma pedra angular do termo pós-colonial: espaço de negociação, lugar de resgate do que foi recalcado, local de conflito e crise.

Em outras palavras, a diferença dentro da escrita do paraíso de Milton abre espaço para uma maior diferença entre escrita e crítica desse mesmo texto. É a partir dessa diferença consigo mesmo (da escrita do paraíso de Milton e da leitura de Paraíso Perdido, por exemplo), sua indecisão textual, que nós leitores podemos decidir por uma diferença e ler de que maneira ela ocorre no texto. Eu decidi por uma conversação e uma contracena pós-colonial para o paraíso de Milton. Ademais, essa indecisão textual do paraíso está mais do lado de heterogeneidade, alteridade e imaginação do que contra bom-senso, pensamento crítico ou racionalidade. Indecisão textual não está nem a favor de uma des-leitura radical e nem oposta a uma re-leitura conservadora. De novo, o que essa indecisão textual propicia é que decisões de leitura sejam feitas entre alternativas aparentemente opostas. A minha des-leitura do paraíso de Milton não poderia nunca ambicionar resolver a indecisão desse texto ou destruir as outras decisões de leitura porque é impossível esvaziar a inesgotável performatividade do querer jogar textual (meaning-as-play) que define, sem nunca chegar a definir totalmente, a natureza mesma do que é procurado, mas que sempre se coloca fora de alcance. A partir daí posso afirmar que Paraíso Perdido encontra uma cena pós-colonial, ou conversa num momento pós-colonial, sem com isso afirmar que Paraíso Perdido é pós-colonial em detrimento de renascentista, cristão, imperialista, etc.

Não há diferença real, em outras palavras, entre decidir se Satã é um colonizador ou se ele é um colonizado e, a partir da evidência de que o texto tem sua própria autoridade, decidir que isso faz parte de uma indecisão. Nesse caso, a indecisão textual funcionaria como tema, como substância dialética e temática de Paraíso Perdido cujo nível retórico seria lido como que contendo ou exprimindo. E isso não seria então diferente de decidir que o tema de Paraíso Perdido seria imperialismo nas suas variadas formas: ora porque Satã é um colonizador e então perpetra os males do imperialismo, ora porque Satã é um colonizado e então sofre dos males do imperialismo. Quaisquer escolhas que sejam feitas, devemos supor que elas foram feitas pelo texto mesmo: isso seria menos uma leitura de superfícies textuais e mais uma des-leitura entre elas. Como diz o narrador épico num dos inícios do texto: sua “adventurous song” irá voar alto para além de um vôo médio “while it pursues / Things unattempted yet in prose or rhyme” (Milton 1957: 233). O épico é uma música bem-aventurada que contará uma história/estória até então jamais relatada em prosa ou verso. De um lado, se Satã é lido como um colonizador, isso pode ser verificado em evidências textuais des-lidas a partir do nível retórico que suporta tal sentido. Do outro lado, se Satã é lido como um colonizado, isso também pode ser verificado em evidências textuais. Daí, o texto, ele mesmo, será lido como que em controle de seu conteúdo temático. Mas, e se o que o épico diz é que não há meio de dizer se Satã é um colonizador ou se ele é um colonizado, e que exatamente isso é o que significa uma diferença dentro do texto, então tal ordem de diferença não seria diferente da diferença entre “Satã é um colonizador” e “Satã é um colonizado”, porque essa também é uma diferença que teria de ser entendida como que ocorrendo dentro do texto. A despeito de qualquer decisão, devemos reconhecer que a questão—é Satã um colonizador ou é ele um colonizado?—está contida no texto. De onde poderia tal questão vir? Se a resposta a tal questão é que não há resposta, então de onde poderia tudo isso vir senão de dentro do texto?
A ordem de diferença crítica a que estou me referindo é fundamentalmente distinta daquela que atribui ao texto uma autoridade e controle próprios. A diferença crítica aqui se refere e se define como os des-caminhos pelos quais o texto difere dele mesmo. Então não é autocontrole, mas auto-diferença que está em questão na minha des-leitura do paraíso de Milton. A estrutura de auto-diferença é comum a todo e qualquer texto e não somente ou particularmente às versões “difíceis” ou ambivalentes de uma dita alta literatura.


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