Campos de guerra com mulher ao fundo:
romance Ventos do Apocalipse

Maria Nazareth Soares Fonseca*

Que avezinha posso ser eu
agora que me cortaram as asas
Que mulherzinha posso ser eu
agora que me cortaram as tranças
Que mão grande mãe posso ser eu
agora que me levaram os filhos.
(Paula Tavares)

Trabalhar numa atmosfera de morte é a minha forma de resistir.
(Paulina Chiziane)

 

Paulina Chiziane é autora do primeiro romance publicado em Moçambique no pós-independência. Por sua vez, Balada de amor ao vento, o primeiro livro da escritora, publicado pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), em 1990, é, efetivamente, o primeiro romance escrito por uma mulher moçambicana. O livro tem, portanto, um valor iniciático: primeiro romance de autoria feminina, em Moçambique, e, como declara a própria escritora a Michel Laban, em 1994, “é o primeiro livro feminista que sai em Moçambique” (LABAM, 1994, p. 299), talvez querendo afirmar o fato de o romance ser narrado a partir de um ponto de vista feminino. Sarnau, a protagonista, refere-se a tabus e interdições do mundo tradicional do Sul de Moçambique, expondo a dominância masculina do contexto onde se passam os conflitos, sem deixar de considerar seus próprios sentimentos.

Em 1999, Paulina Chiziane publica Ventos do apocalipse e, em 2000, O sétimo juramento. Nos dois romances está presente o tom memorialístico que já se anunciara no primeiro. Mesclando ficção e experiência, os romances resgatam lembranças e fatos da realidade histórica de Moçambique. Ao viés factual, misturam-se invenções permitidas pelo olhar lançado sobre os fatos rememorados e pela experiência vivida pela escritora desde sua infância, quando observava a mãe nas lidas embaladas por cantos que “umas vezes eram suspiros e outras murmúrios e angústias” (CHIZIANE, 1994, p. 14).

Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze, na província de Gaza, passando a viver em Maputo, com a família, desde os seis anos. A experiência de mundos diferentes possibilita-lhe o convívio com as línguas chope, ronga e português, com as severas leis da tradição ancestral e com a cultura levada pelos colonizadores. A visão crítica com que avalia a colonização herda do pai que “nunca quis trabalhar para um branco” e que sempre resistiu à assimilação, nunca permitindo que, em casa, se falasse o português ((LABAN, 1994, 293). O pai foi preso, tendo sido condenado a fazer trabalho forçado, punição característica de uma época em que, como informa a escritora, “as pessoas eram presas e levadas para o trabalho forçado” (LABAN, 1994, p. 292).

Essa tendência de trazer para os seus romances fatos da realidade social e cultural do seu país, e, principalmente, o espaço cultural e social da mulher faz com Paulina Chiziane seja destacada pela escrita voltada a descrever, e por vezes denunciar, a condição feminina em seu país. Com uma dicção singular, Paulina ausculta o mundo das mulheres, atenta às “constantes fusões entre tradição e modernidade, que proporcionam um encontro criativo entre ficção, realidades históricas e conceptualizações antropológicas” (XAVIER, 2013, p. 179), levadas ao público moçambicano e ao estrangeiro que foram aos poucos descobrindo essa escritora tão admirada.

O primeiro romance de Paulina Chiziane já anuncia um olhar direcionado ao universo da mulher: Balada de amor ao vento (1990), como já dito, resgata os conflitos da condição feminina através da heroína Sarnau. Escolhida do futuro rei, vive conflitos no espaço tradicional comandado pela vigilância severa das oito sogras do rei. Um ponto de vista marcadamente feminino elabora, numa contemplação interior, a atenção à “condição da mulher numa sociedade em que os limites da mulher estão traçados com as margens das proibições.” (MATA, 2000, p. 136). Ventos do apocalipse (1999), a ser destacado neste artigo, compõe-se de um mosaico de cenas e de lembranças resgatadas por um narrador de perfil coletivo, envolvido com o ritual de contação de histórias. Os mitos que abrem a narração – “O marido cruel”, “Mata, que amanhã faremos outro” e “A ambição da Massupai” – antecipam os sentidos a serem construídos pela macro-narrativa e, ao mesmo tempo, convocam a participação do leitor que, ativado pelas histórias, se coloca em interação com o texto.

A voz narrativa conclama a atenção dos leitores/ouvintes e define o lugar de onde a fala se anuncia:

Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão-de-nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura, é época de vindima, escutai os lamentos que me saem da alma, KARINGANA WA KARINGANA1. (CRAVEIRINHA, 1995, p. 15)

A fórmula de abertura do ritual da contação,“karingana wa karingana” constitui um recurso metalingüístico que visa acentuar as inserções de micro-narrativas na estrutura do romance. As estórias valem-se de deduções extraídas da experiência que devem ser consideradas. A história do marido cruel condena a ambição e o desamor e o ditado “mata, que amanhã faremos outro” atualiza a experiência a seguir em tempos de guerra. Já “A ambição da Massupai” recupera dados presentes nas duas histórias, explorando uma prática típica da narrativa oral. A repetição tem uma função importante para a memorização. As histórias oralmente contadas se valem de estratégias que facilitam guardar o que se ensina. O leitor é convidado a se inteirar de recursos que fazem parte das histórias orais: repete-se para possibilitar a recuperação e a guarda do que foi contado. Nessa abertura do romance Ventos do Apocalipse, o leitor se transforma no ouvinte atento das histórias contadas; ele sabe que precisa reter alguns dados que o habilitam a entrar no universo da narrativa.

No ritual de abertura do romance, instala-se um narrador-contador que, seguindo a tradição dos griots2, utiliza estratégias para prender a atenção dos leitores que “escutam”, através da escrita, as tonalidades da voz e os preceitos que ela encaminha. A legitimidade dessa voz está assegurada por uma tradição que considera as vibrações da palavra e o contexto em que ela se manifesta. As três narrativas curtas, colocadas como abertura do que vai ser contado por um narrador que recupera acontecimentos passados, assumem estratégias que asseguram a veracidade do que será contado, destacando sua importância.

A história que se conta, no romance Ventos do Apocalipse, estrutura-se em três partes. No prólogo, como já acentuado, invocam-se mitos experiências pautadas na sabedoria que antecipam, simbolicamente, os acontecimentos a serem narrados. As relações entre os mitos e a história a ser narrada no decorrer do relato organizam-se em retomadas sucessivas. A primeira parte, “Nasceste tarde! Verás o que não vi”, relata acontecimentos que se passam nos territórios de Mananga, Macuácua e aldeia do Monte, dominados pela seca, pela fome e pelas lutas de grupos. Na voz narrativa, cujas marcas enunciativas resgatam, como já se acentuou, a figura de um narrador-contador, inserem-se as reflexões e falas de Minosse, a última esposa do régulo Sianga. Este, apesar de subjugado pelas agruras do tempo inóspito, exerce sobre a mulher um poder expresso por palavras duras e atitudes ofensivas. Através da fala do narrador tem-se acesso às agruras de uma sociedade que vê no lobolo, o dote, o preço que garante a submissão da mulher e o direito do homem de ser obedecido por ela. Mas é também pela voz do narrador-contador que o leitor é levado a perceber como o poder do homem se enfraquece diante das mudanças terríveis trazidas pela seca, pelas lutas tribais e pelas alterações que se vão inscrevendo na terra ressequida. Tais mudanças ficam claras nas palavras que o narrador resgata de Sianga: “Fui árvore, fui flor e régulo desta terra. Agora não sou mais do que um ramo seco ou fruta podre. Já não sou nada nem ninguém...” (p. 31)

É importante observar, no romance, a técnica de contraponto instalada já na primeira parte com cenas da convivência entre Minosse e o régulo Sianga. Nestas cenas ficam pontuadas a dureza do homem e a submissão da mulher, mas também se registram situações em que a brutalidade - “Ah, maldita. Gastei as minhas vacas comprando-te, mulher preguiçosa e sem respeito” (p. 28) - cede lugar a lembranças de gestos mais gentis. Minosse é chamada de “esposa minha” ou referida como mãe do filho mais querido (p. 32). Através desses jogos de linguagem o leitor pode perceber a presença sempre observadora do autor empírico que, pela voz das personagens, deixa que seus pontos de vista perpassem o texto. Nos embates entre Minosse e Sianga, por exemplo, aparecem expressões com que a representação autoral indica ao leitor como os mandamentos da tradição se alteram diante das transformações inevitáveis geradas pelos conflitos de ordem étnica, social e climática. Neste aspecto, a relação entre os jovens Dambuza e Wusheni funciona como mais um contraponto entre a tradição e os afrontamentos dos novos que a ela se interpõem para rasurar as leis dos clãs. Tanto Dambuza quanto Wusheni contrariam as ordens estabelecidas quando determinam que a escolha da esposa se faça por um acordo entre os familiares dos jovens em idade de casamento e não por escolhas dos mesmos jovens. Tal preceito fica claro na passagem em que Sianga comunica a Wusheni que aceitou o pedido de casamento feito pelo velho Muianga. A reação contrária da jovem – vista como sinal dos maus tempos – insufla o ódio do pai e do irmão Manuna que resolve vingar a honra da família.

Todavia, se a ligação entre Dambuza e Wushemi, contrariando as normas de grupos étnicos, revela a ultrapassagem, ainda que trágica, dos preceitos da tradição, outros rituais, como o mbelele, indicam que antigos costumes ainda permanecem vigentes no meio rural. O mbelele, segundo a tradição, é um ritual em que as mulheres, dirigidas por um régulo ou por um sacerdote, participam de uma representação lasciva e sedutora para conclamar os “chicuembos” ou almas perversas” causadoras da falta de chuva (Cipire, 1992, p. 20). A nudez do corpo feminino é o preço na pagar pelas chuvas, reza a tradição e é essa condição que obriga as mulheres cumprirem a ordem imposta, ainda que isso contrarie o recato imposto pela tradição. As informações dadas por Felizardo Cipire (1992) sobre o ritual do mbelele, nos permitem observar as transgressões que o romance valoriza. Na visão de Cipire, o mbelele consiste em uma tradição de ofertas feitas aos antepassados em períodos de grande calamidade: secas prolongadas, nuvens de gafanhotos. De certo modo, o mbelele é um ritual de fertilidade, pois seu poder é atrair as chuvas que propiciarão a germinação das sementes, a renovação da terra, a explosão de vida.

No romance Ventos do apocalipse, o insucesso do ritual será interpretado como causa das desgraças advindas da guerra contra a qual as oferendas aos antepassados mostraram-se impotentes. Visto como mais uma ameaça às mulheres, o ritual também é interpretado como um engodo, já que nem as condições são favoráveis à celebração nem a época legitima a sua permanência. Daí que, como acentua a narrativa, o ritual se transforma em festa selvagem que consome as últimas reservas de alimento do povo. (p. 105):

Esse imbelele foi uma farsa vergonhosa e nojenta. Mungoni, o célebre adivinho, disse a verdade desde a primeira hora e não o quisemos escutar. Estamos a definhar, estamos a morrer, fomos aldrabados pelos capangas do Sianga, minha gente, ah. Cegueira humana! (CHIZIANE, 1999, p. 108)

O ritual acirrou as contradições entre o povo faminto que passa a desobedecer às tradições de acolhimento e de atenção aos necessitados. As poucas reservas de alimento foram consumidas e a sede de guerra e de vingança rapidamente aguça a revolta do povo. Em novo ritual de sangue morrem os irmãos Manuna e Wusheni simbolizando a selvageria de guerras entre irmãos que passa a ter um significado que extrapola o meramente ficcional uma vez que alcança a realidade concreta de Moçambique.

Em Ventos do apocalipse, a roda dos acontecimentos dá mais uma volta: a seca instigou a fome e essa a guerra fratricida. As consequências desses atos estão previstas pelas profecias. Os rumos da narrativa são ditados pelas palavras que saem da boca de Simonhane que, assumindo o lugar do contador, relata as histórias “dos bons e velhos tempos” (p. 134). De certo modo, a narrativa de Simonhane, quando resgata os feitos do povo que salvaram a fortaleza Khokhole, funciona como um impulso para a roda da vida continuar seu curso. A dizimação da família de Minosse determina uma nova ação que nascerá de sua força. Minosse retém em si mesma a força da terra que a protegeu quando a desgraça se abateu sobre os seus, em Mananga. Novamente, Minosse surge como condutora dos salvados da guerra em busca de um outro lugar em que a vida seja possível.

Um novo contraponto pode ser estabelecido a partir da figura de Minosse. Sua história é diferente da de Sianga, o antigo régulo que é deposto, novamente entronizado no poder de chefe e outra vez deposto, acabando por sucumbir às atrocidades da guerra e aos mandamentos da tradição. Minosse, por sua vez, ainda que abandonada pelo povo de Mananga, assume as forças que a terra lhe fornece e, como um fantasma “caminha leve e livre mesmo sem saber para onde vai” (p. 155). O impulso dado pela terra sustenta sua força de mulher acostumada às agruras da vida, imersa num universo cultural que também vê a mulher como força que, como acentua a canção changane que introduz a segunda parte do romance, indica que “cada dia tem a sua história” (p. 143). Paciência, perseverança e coragem são atributos que o texto atribui a Minosse, fazendo-a reaparecer em vários campos de guerra.

A segunda parte da narrativa se faz travessia entre os escombros deixados pela guerra e a busca de novo lugar onde a vida possa ser replantada. De algum modo, reforça-se uma estrutura em círculo que recupera o sentido da vida. Da devastação de Mananga brota o impulso para a fuga, ainda que os sobreviventes da guerra sejam vistos como cadáveres em movimento, como observa a personagem Sixpence, transformado em guia do grupo (p. 154).

É importante relembrar que na primeira parte o narrador acompanha a vida de Minosse, suas angústias de mulher submissa ao poder do marido e aos costumes que regem os seus deveres, e diagnostica os acontecimentos que se dão tanto no espaço da casa de Sianga e Minosse, quanto no dia a dia de Mananga. Na segunda parte, o olhar do narrador se volta à marcha dos que sobreviveram aos horrores que se abateram sobre o povo de Mananga. A narrativa abre planos mais amplos para acompanhar a marcha do grupo de deserdados em busca da aldeia do Monte. As peripécias vividas pelo grupo são partes de uma aventura pontuada de horrores, de morte e de incertezas. O narrador apreende a feição da massa e faz sobressair o coletivo. Acompanha o sofrimento do grupo e se detém, algumas vezes, para refletir sobre as cenas de horror que se apresentam a cada passo aos olhos dos fugitivos da guerra:

As imagens de horror testemunhadas por aquele povo naquela tarde reduziram ainda mais o moral dos viajantes. Ninguém as comenta porque o comentar é um reviver. O sofrimento é o fermento da alma, dizem. É sal, é piripiri, é vinagre, é pimenta, é levedura que se coloca nas chagas sangrentas para manter a alma sempre desperta. (CHIZIANE, 1999, p. 171)

Interessante destacar o modo como a narrativa se desenvolve nesta segunda parte. Embora as cenas descritas, no decorrer da marcha dos sobreviventes, ressaltem as cenas de guerra que destroem o resto de vida que insiste em resistir aos assaltos, estupros, e violações, a esperança brota, principalmente, na organização disciplinada do grupo que se orienta pelos ensinamentos deixados pelos antepassados. A organização proposta pelo comandante Sixpence tem a grandeza que diferencia os atos do grupo do vandalismo selvagem que mesmo distante de Mananga os caminhantes têm de enfrentar.

A degradação que se abate sobre os sobreviventes nos longos vinte e um dias de difícil caminhada fica explicitada pela descrição da chegada à aldeia do Monte:

Perderam a família, os amigos e todos os haveres. Perderam o sonho, a esperança, e mesmo a realidade não lhes pertence. Até a roupa que lhes confortava o corpo, os ramos e os arbustos roeram. A pele que protege os ossos os espinhos rasgaram, sangraram. (CHIZIANE, 1999, p. 184)

A aldeia do Monte recebe o grupo com a fraternidade e a compaixão ensinadas pelos antepassados, ainda que esquecidas por eles quando, ainda em Mananga, receberam muito mal os sobreviventes de Macuácua, sem saber que “um dia passariam pelo mesmo caminho” (p. 190). A aldeia do Monte, um último paraíso, como observa o narrador, é o lugar propício à ressurreição. É “um pedaço do céu. Um paraíso acabado” (p. 202). Suas águas “lavam todas as dores e mágoas” (p. 207). Em contraposição, quando o narrador se detém a observar o amontoado de gente desvalida, esquálida e doente que chega ao Monte, muda-se a perspectiva do lugar: “...cresce uma aldeia moribunda, disforme, sem estética nem geometria. A aldeia do Monte é um monumento macabro” (p. 201). A oposição entre os aspectos da natureza e os da degeneração humana têm, entretanto, uma dupla significação. Ao mesmo tempo em que se destaca a visão do Monte como um útero, propício à gestação de uma nova vida propiciada pela terra fértil e fresca, pela verdura da vegetação, são também salientados os estragos causados pela belicosidade da guerra fratricida. Se por um lado o narrador acompanha os atos daqueles que procuram construir uma nova vida, “transferindo os pesadelos da mente para a madeira” (p. 205) ou semeando as sementes que propiciarão o alimento farto, ainda pairam sobre todos as lembranças das catástrofes vividas.

A narrativa volta a focalizar Minosse, agora solitária, perscrutando no azul do céu o percurso do sol e ou em longos debates com as lembranças de Sianga e das tragédias que se abateram sobre Mananga, motivadas pela falta de chuva que chega forte no Monte, destruindo a maioria das palhoças. Ao acompanhar as divagações de Minosse, o narrador apreende o modo como a gente igual a ela procura explicar as coisas do mundo. Os provérbios – uma das marcas da oralidade no romance – tecem a rede de explicações que colocam as coisas em seu devido lugar. Por outro lado, esses ditos nascidos da experiência asseguram que a vida renasça na aldeia do Monte com suas esperanças e conflitos. São os mandamentos das leis de grupo que determinam o que é certo e o que é errado, quem é do grupo e quem dele deve ser afastado. Mas são também os provérbios que possibilitam compreender as transgressões. São essas transgressões que aproximam Minosse do rapazinho que o grupo diz “ter espírito maligno” (p. 219) e possibilita a ela reconstruir o ambiente de família perdido em Mananga com a morte de todos os seus parentes. Minosse, solitária, sustenta-se com as recordações de suas perdas. Mas na secura de seu corpo e de suas emoções ainda restam expressões de carinhos que ela divide com as crianças que tudo perderam. A sua história é o impulso que a motiva a acolher o órfãozinho rejeitado pelo grupo, mas que tem muitas histórias de perdas para contar. O mesmo motivo a faz acolher Sara, contadora de histórias tristes e única zeladora dos irmãos, todos órfãos, como muitas das crianças abandonadas. As várias histórias registram as lembranças de perdas e mutilações vividas pelos novos habitantes do Monte, e, nesse sentido, compõem um reservatório de tradições de perdas e mutilações causadas pela guerra.

Há no relato que acompanha o renascimento de Minosse marcas da cumplicidade com que o narrador observa as mulheres, detalhando para o leitor aspectos de sua condição. Se, na grande marcha dos sobreviventes em direção ao Monte, o narrador focaliza o grupo, fazendo sobressair as qualidades do chefe Sixpence, principalmente a sua solidariedade com os que sofrem as agruras da guerra, ao resgatar Minosse da turba de miseráveis, serão ressaltados os atributos mais comumente descritos como próprios da mulher: as manifestações de carinho, dedicação, de cuidado com a prole, com a casa, com o sustento da família. Nesse sentido, é importante destacar que Minosse só pode resgatar a sua lucidez e deixar que a esperança desmanchasse a sua mudez, quando se torna avó das crianças sofredoras levadas para o Monte.

Destaque-se, entretanto, que algumas dessas qualidades estão também registradas na atitude de Sixpence, sem que se enfraqueçam nele a firmeza do mando, a astúcia para deliberar o que é melhor para o grupo. Das várias funções consideradas femininas que também estão presentes no grande chefe, a principal, talvez, seja a capacidade de cuidar, demonstrada nas relações com os doentes, com os moribundos e com as crianças asquerosas que resgatadas de mães assassinadas pelos rebeldes, em ações que exigiam dos homens mãos fortes para o manejo das armas. O narrador, ressaltando essas características em Sixpence, acolhe os costumes típicos da cultura, ainda que muitos deles sejam conhec idos como próprios de figuras femininas.

Paulina Chiziane nos revela, em alguns depoimentos seus, a importância que teve para a produção de seus livros a observação do trabalho das mulheres moçambicanas pertencentes às camadas mais pobres e dos rituais que se desenvolvem em torno das funções exercidas por elas. Um desses rituais, o da contação de histórias, esteve presente em sua infância desde cedo, como a tradição de o trabalho ser acompanhado por cantigas. Cantigas acompanham os trabalhos exercidos pela mulher, como lavar roupa, pilar milho, amendoim, plantar a terra, em muitas partes da África. A escritora também declara observar junto a mulheres os cuidados relacionados com a educação dos filhos, com o cumprimento das tradições e mesmo com os compromissos ditados pelos novos tempos. Todas essas funções estão reverenciados na narrativa, principalmente nos cenários de que faz parte Minosse, porque se sente que neles o narrador se aproxima do universo feminino.

Na descrição da vida na aldeia do Monte o leitor tem contato mais direto com a guerra insana que se abateu sobre Moçambique, passadas as lutas pela independência. Uma visão bastante crítica do narrador acentua as deformações causadas pelos constantes massacres e pela presença estrangeira no país, ainda que sob a efígie da filantropia. É interessante observar a descrição irônica da ação de dar e receber, mandamento cristão por excelência, que informa sobre a presença das ações humanitárias na aldeia do Monte: “Os filantropos, do seu pedestal, dão a mão desinteressada. As vítimas no abismo, de joelhos, recebem o auxílio de mãos erguidas no ar. Como na prece.” (p. 238)

Pode-se dizer que a aldeia do Monte é um espaço plurissignificado. Nele algumas das tradições de grupo lutam por revigorar e delas, por certo, as mais fortes estão relacionadas com a solidariedade, com o compartilhamento e também com a manutenção de mitos que sustentam crenças e fantasias. Por outro lado, a miséria provocada pelas guerras obriga a aceitação de costumes ultrajantes impostos pela fome e pela penúria que se espalha. Nesse cenário, a presença dos filantropos quebra a unidade de grupo que se vinha restaurando, quando se procura preservar o que resta das tradições herdadas dos antepassados. A presença dos grupos de ações humanitárias cria outros vícios e mazelas que desarticulam os ganhos propiciados pela caminhada pela mata. Os laços de solidariedade fortalecidos novamente se esgarçam porque as mudanças terríveis causadas pela guerra desarticularam os gestos de compartilhamento e de cuidados com os necessitados.

A história de Ermelinda contada à enfermeira Danila marca um tempo em que “os contos já não se fazem ao calor da fogueira” e as histórias não mais se iniciam com “sorrisos nem aplausos, mas com suspiros e lágrimas” (p. 247). Contadas nesse novo tempo, as histórias perdem o calor da roda, o brilho do fogo, pois só podem resgatar a memória de tempos loucos marcados pela morte e pelo odor dos corpos putrefatos que a guerra deixa insepultos. A história de Ermelinda, igual à de tantas mulheres transformadas pela guerra, retoma, de algum modo, os mitos “Mata que amanhã faremos outro” e “A ambição de Massupai” que iniciam o romance. No momento em que Ermelinda conta para Danila, “atordoada pela narração fantástica” (p. 252) a sua história, cenas presentes nessas histórias misturam-se ao relato de modo que o leitor por vezes não percebe onde se situam as fronteiras entre os relatos. Aliás, se se considerar o sentido do parágrafo que se segue à história de Ermelinda (p. 252), é possível perceber que o assassinato dos próprios filhos pela mãe possa ser entendida como uma escolha típica de tempos de guerra e, por isso, não seja mais terrível que os relatos de crueldade exibidos em jornal e pelas notícias dadas pelo rádio que, conforme acentua o narrador, tomaram o lugar dos contadores que ressaltam os grandes heróis dos antepassados.

Deve-se considerar o modo como, na história de Ermelinda, misturam-se diferentes relatos e diferentes tradições. Embora o narrador, assumindo a visão de Danila, antecipe para o leitor que a história que ele vai ouvir/ler “é igual a de todos os tempos” e instale a cerimônia de contação com a fórmula “Karingana wa karingana” (p. 247), há significativa alteração no ato de contar. A alegria da cerimônia da contação está interditada nos relatos de tempos de guerra. O narrador acentua a morte da tradição ancestral e condena as modificações trazidas pelos novos tempos. Ao mesmo tempo, como nos relatos de sabedoria, mostra que, numa mesma pessoa, podem habitar a grande bondade e a ambição desmedida, a paciência e a indignação. Nesse novo contexto, Ermelinda mostra-se como outra versão das lendas de “papões e dragões” (p. 256) e dos bichos domésticos, cujas histórias Minosse conta para os netos à volta da fogueira, procurando entender “os mistérios da vida” (p. 257) e as leis de sua cultura que determinam o lugar do homem e o da mulher. Minosse, ciente das mudanças trazidas pela guerra, sabe que elas alcançarão os netos, órfãos. Sabe que, após sua morte, as crianças não contarão com a presença necessária dos mais-velhos para os instruir para o mundo, segundo as leis ditadas pelos antepassados que garantem a continuidade da vida e a certeza na imortalidade do homem (p. 265). Segundo as tradições, os ensinamentos passados pelos antigos conduzem os jovens por caminhos que fortalecem os laços dos grupos e ensinam o respeito aos mais velhos. Minosse sabe que os novos tempos trazem outras crenças, outras tradições. Sabe que as mudanças irão alterar a vida dos netos quando ela partir. Por outro lado, pai Mungoni, com o poder que a idade lhe confere, resiste ao apagamento das tradições:

O novo tem a sua origem no velho. Ninguém pode olhar para a posteridade sem olhar para o passado, para a história. A vida é uma linha contínua que se prolonga por gerações e gerações. Aquele que respeita a morte respeita também a vida. (CHIZIANE, 1999, p. 265)

Os novos não concordam com as palavras sábias do velho. A experiência malograda do mbelele, em Mananga, é tomada como reforço das palavras dos jovens que acreditam estar morto o culto aos antepassados com a chegada dos novos tempos. Os novos veem os novos tempos como um sinal de que os ensinamentos do mais-velhos nem sempre são os mais sábios. Em contraposição, o velho Mungoni insiste em ensinar aos novos as tradições que lhe foram passadas pelos antepassados:

Fazer uma cerimônia dedicada aos defuntos da família, da tribo ou do clã é render uma homenagem à tradição, à história, à cultura. (...) A vida é uma linha contínua que se prolonga por gerações e gerações. Aquele que respeita a morte respeita também a vida (CHIZIANE, 1999, p. 265).

Felizmente, a fartura chega ao Monte com a colheita, simbolicamente, considerada “o fim dos tormentos” (p. 262), como destaca a voz narrativa ao enumerar as ações que precisam ser realizadas, desde a semeadura, para garantir o alimento. Explica-se o sentido negativo dado à colheita porque cada etapa fora realizada sempre com medo de que alguma desgraça interrompesse o ciclo natural das coisas. Todavia, vencidos todos os pavores, a colheita farta espantou o medo da fome.

Na preparação da grande festa, os defuntos são venerados com devoção e com oferendas que são deixadas ao pé de qualquer árvore, porque “as árvores dos deuses da família ficaram na aldeia de origem” (p. 269). Na aldeia do Monte, no lugar sagrado da tradição, organiza-se o altar do novo culto e o padre branco, loiro, de olhos azuis é confundido, pelo povo maravilhado, com o próprio Deus que parece ter descido dos céus para ser venerado no Monte. A tradição cede lugar aos apelos do novo culto. O padre, no alto do púlpito, fala ao povo na “linguagem dos vivos”. Mungoni reza aos mortos para, como o padre, pedir a paz.

Entretanto, vários sinais anunciam a chegada dos destruidores que o ritual da missa não consegue afastar. Pela boca de Mungoni, os antepassados falam do grande fogo que desce dos céus e do estranho tremor que sacode a terra. O padre, sem entender os sinais, só consegue perceber que Ermelinda surge, andrajosa, no ponto mais alto do Monte, debatendo-se em meio às secreções mal cheirosas que saem do seu corpo. Os sinais de morte, explicitados pelos excrementos que escorrem do corpo de Ermelinda, reforçam o grito aflitivo dos habitantes do Monte que, não podendo interpretar no céu os prenúncios em forma de fogo e de morte, tornam-se presa fácil dos homens “trajados de verde camuflado” e do violento estrondo que acompanha a “saraivada de balas” voltada para o povo (p. 274). Simbolicamente, os deuses da morte, insatisfeitos com a degradação do mbelele, provocada pela farsa de Sianga, em Mananga, cobram da aldeia do Monte os compromissos com o passado, com as tradições dos ancestrais. As palavras de Mungoni e as preces do padre louro pouco significam para aplacar o fogo que lambe a aldeia do Monte.

Rezam os textos sagrados judaicos e cristãos que o fim do mundo será encaminhado por tormentas de fogo e excrementos, por expressões de mortes a indicarem que o mal se sobrepôs ao bem. O romance de Paulina Chiziane, ao deslocar para o simbolismo do apocalipse a permanência do horror causado pela guerra que ceifa vidas indefesas e mina os esforços de corpos combalidos para gerar vida, assume as hibridações características dos novos tempos, mas acentua uma acepção que aproxima as degradações do corpo físico – como o da Ermelinda – do desgaste das estruturas que sustentam o corpo social. Os cenários de guerra são construídos, no romance Ventos do Apocalipse, por um ponto de vista que ressalta as tensões entre as concepções próprias da tradição ancestral e outras advindas das transformações inevitáveis trazidas pela guerra e pelas novas crenças seguidas pelo povo. É, portanto, no interior dessas tensões que deve ser entendida a aproximação possível entre a mãe que mata os próprios filhos, como a louca Ermelinda, ela mesma tornada símbolo da terra ensandecida, e os cavaleiros do Apocalipse, que pairam sobre a indefesa aldeia do Monte, cobrindo-a com um batismo de fogo.

É interessante observar que, ao fugir, o padre, conspurcado pela sujeira expelida pelo corpo de Ermelinda adentra um espaço em que estão abolidas as distinções entre sagrado e profano, entre sanidade e loucura. É neste espaço que o padre pronuncia a palavra Armagedon que ressignifica os sentidos alocados no Monte por seus habitantes. A palavra remete às mudanças que se instalaram no monte e tanto pode significar um novo lugar que nascerá da hecatombe, como a propagação de novas guerras que continuarão o ciclo de desgraças que acompanharam a travessia.

Considere-se que o romance se fecha com as previsões que os mitos anteciparam, na abertura da narrativa, e com as inter-relações entre rituais da tradição ancestral e a força da palavra sagrada dos testamentos cristãos. A última frase do romance, “E a aldeia do Monte recebe o seu batismo de fogo” (p. 275) permite que se infira que, ao serem aproximadas hecatombes, guerras e horrores, a voz narrativa parece ressaltar que o destino dos homens indefesos é ser atacado por conflitos e desgraças. Venham eles de onde vierem.

Notas

A versão original deste texto está publicada na revista Scripta, n. 13, 2003. A versão atual insere algumas modificações para tornar o artigo mais coerente com a sua proposta.

2 Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”. Cf. Craveirinha (1995).

3 Este termo, de origem francesa, assume os sentidos de uma série de funções características de sociedades africanas em que os conhecimentos são tradicionalmente transmitidos pela palavra oral. O griot era o cronista, o genealogista, o arauto, mas, principalmente, aquele que dominava a palavra. Por isso, era o poeta, o músico, o contador que percorria grandes distâncias para contar ao povo os acontecimentos do passado. O griot ou dieli está próximo do doma, o grande conhecedor das coisas. Cf. História Geral da África (1982).

Referências

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*Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Co-organizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afro-diaspóricos(as).