Apontamentos sobre algumas imagens traumáticas no conto “Agonia”, de Raymundo de Souza Dantas

 

Marina Luiza Horta 1

 

As próximas páginas que se seguem pretendem apresentar uma breve crítica sobre o conto “Agonia”, do escritor Raymundo de Souza Dantas, e tomam como pontos essenciais à análise questões que envolvem a memória, o esquecimento e o trauma, esta questão será tratada mais adiante. Para dar início a discussão, falo de um primeiro esquecimento, aquele produzido a partir do momento em que se definem, sob o nome de cânone literário, as obras e os escritores que devem ser lembrados e, consequentemente, lidos e estudados. Souza Dantas completa um grupo de escritores que tiveram sua obra fadada ao silenciamento e ao ostracismo por não se enquadrarem, de alguma forma, no circuito literário. Esse é o caso, por exemplo, dos escritores negros, grupo ao qual Dantas faz parte, e de algumas escritoras que, por uma série de fatores históricos complicadores, tiveram suas obras marginalizadas das grandes antologias da chamada Literatura Brasileira, constituída, em uma parte quase totalizante, por homens, de certa elite econômica e intelectual, e brancos. O cânone literário brasileiro é, por isso, marcado por esse lugar de apagamento e essas obras esquecidas se comportariam, se assim for possível essa analogia, como lugares de memória, na concepção de Pierre Nora. Isso porque essas minorias citadas acima, mulheres e negros, foram praticamente excluídas do processo de construção da historiografia literária brasileira, uma história, para lembrarmos Walter Benjamin, que narra a história dos vencedores.

Em contrapartida, os lugares de memória cobram a essa historiografia oficial a narrativa dos vencidos, que exigem para si a recuperação de uma memória coletiva. Ainda nessa mesma lógica, ocuparia também um lugar de memória a literatura dita Afro-brasileira ou Negra, já que seria ela o espaço resguardado para essas vozes autorais dos excluídos, os restos ou vestígios, de uma literatura também dita como oficial. Sobre os lugares de memória, Nora afirma que eles:

 

nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos (...). É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do eu levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. (...) É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. (NORA, 1993, p.13)

 

Essa devolução à história pode ainda ser associada à noção de suplemento do filósofo Derrida. Para ele “o suplemento acrescenta-se, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma outra plenitude” (DERRIDA, 2006, p.177) e a sua necessidade se dá em virtude de preencher um vazio, ou, por que não falar, um esquecimento, a constituição mais subterrânea da memória. Dessa forma, a Literatura Afro-brasileira se comportaria como um suplemento à Literatura Brasileira, de forma a completar, mas como um excesso, as lacunas deixadas pela última, enriquecendo-a da mesma forma que os lugares de memória enriquecem a história.

Diante disso, a primeira parte deste trabalho se dispõe, ainda que apressadamente, a apresentar o escritor com a pretensão de, assim, instituir um arquivo de um autor que representa um lugar de memória, não só na Literatura Brasileira, como também na Literatura Afro-brasileira.

 

Raymundo de Souza Dantas: a imagem (im)possível de um escritor

O escritor nasceu em Estância, interior de Sergipe, em 11 de janeiro de 1923. Como a maioria da população do interior nordestino, a família de Souza Dantas atravessava uma situação de muita pobreza e, dentre os direitos negados, estava a educação acadêmica. Dantas é filho de uma família marcada pelo analfabetismo. O próprio escritor permaneceu na escola por poucos meses devido às dificuldades financeiras que a família, criada pela mãe e composta por mais dois irmãos, enfrentava. Essas experiências biográficas permeiam a obra do autor, metaforizadas por personagens que tiveram uma experiência traumática na passagem pela escola.

Ainda menino, dos dez aos doze anos de idade, o escritor exercia vários ofícios para ajudar a mãe, dentre eles aprendiz de ferreiro e de marceneiro. Foi na adolescência, com então 16 anos, que começou a atuar como tipógrafo, em Aracaju, no Jornal de Sergipe, época em que seu penoso processo de alfabetização tardio começaria a se concretizar. Essa trajetória seria narrada mais tarde em sua obra, especialmente no livro Um começo de vida, um depoimento biográfico, publicado em 1949 para a Campanha de Educação de Adultos do Ministério da Educação e Saúde:

 

Primeiro aprendi os ofícios, muito depois o alfabeto (...). Paralelamente a isso, embrutecia-me. O meu analfabetismo continuava cada vez mais trágico, dadas suas características. Estava eu em idade escolar, sem qualquer ideia do que era escola, pois o tempo que passei por elas, há anos e anos passados, não deixara absolutamente qualquer marca, era como se não existisse. (DANTAS, 1949, p. 5 - 6).

 

Aos dezoito anos, Raymundo de Souza Dantas mudou-se para o Rio de Janeiro, onde iria trabalhar em uma banca de frutas, mas, como não sabia fazer contas, foi despedido. É graças a essa demissão que Souza Dantas pôde se aproximar da Literatura. Em 1942, passou a colaborar com as revistas Vamos Ler e Carioca e também como revisor de uma editora de livros infantis e no Diário Carioca. Em 1944, o revisor, que dois anos antes ainda não completara seu processo de alfabetização, publicou o seu primeiro livro, escrito em um período de três meses, Sete Palmos de Terra. O romance, escrito em uma linguagem simples, traz recordações de sua terra natal – Estância. O menino, recém-alfabetizado com ajuda de alguns amigos feitos nas redações em que trabalhava, começa a construir a sua imagem, quase impensável, de escritor. Souza Dantas daria início não só à trajetória intelectual, como também política, estreitando laços com membros do Partido Comunista, colegas do jornal. Sobre o difícil ingresso na vida literária, Melo Lima escreve em sua resenha escrita sobre Sete palmos de terra, citada por Gilfrancisco Santos, em uma breve biografia do escritor, publicada na antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil, o seguinte comentário:

 

Conheço-o de muito tempo, quando, nele, a necessidade de comer era maior ainda que a de escrever; quando o medo da própria cor, agravado pelas constantes negativas dos que não acreditam no valor de um moço, e muito menos negro, se transforma numa chaga que a minha rispidez consciente tudo fazia para transformar em revolta, em desejo de superação, de provar que ele, Raimundo de Souza Dantas, romancista por vocação, negro e pobre, seria capaz de escrever um romance superior. Quando se sentia só e desprezado no meio de tantos, e mais sozinho ainda na sua triste vida interior reprimida; quando, enfim, para não morrer de fome, se sujeitava à convivência de pessoas detestáveis, o autor de Sete palmos de terra procurava-me para desabafar – a mim, que também precisava desabafar todos os frutos podres dos complexos de um passado demasiado presente para ser ainda passado. (MELO LIMA, 1944 apud SANTOS, 2011, p. 518.)

 

Como jornalista, Raymundo integrou ainda as redações dos jornais A noite, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Dom Casmurro, Leitura, Brasil Açucareiro, dentre outros. Assim como foi membro da Secretaria de Departamento de Radiojornalismo da Rádio Nacional, Fundação Centro Brasileiro de TV – Educativa, como assessor especial, atuando também como debatedor do programa de entrevistas “Sem Censura”.

Dantas assina também os títulos Solidão nos Campos (romance de 1949), das novelas Vigília da noite (1949) e Lado da Sombra, além do diário África Difícil: missão condenada (1965). Este último é fruto de sua experiência como embaixador do Brasil (o primeiro embaixador negro do país) em Gana, país africano que acabava de conquistar a sua independência, nomeação que recebe, em 1961, do ex-presidente Jânio Quadros. O relato revela muito da cultura africana e sua influência na sociedade brasileira. Nele encontra-se o registro de suas pesquisas e contato com os descendentes de escravos repatriados no Brasil, bem como há uma descrição das dificuldades na carreira diplomática, principalmente aquelas relacionadas às questões étnicas. Chegando em Gana, o embaixador se deparou com sua primeira barreira, morou durante oito meses num quarto de hotel minúsculo porque seu subordinado Sérgio Corrêa do Lago, branco, se recusou a vagar a casa que lhe estava reservada quando viu que o diplomata era negro.2 Essa obra ainda foi responsável por divulgar os estudos sobre uma comunidade fundada por brasileiros em Acra, viabilizando um importante trabalho de documentação sobre aspectos de história afro-brasileira.

Além de diplomata, foi Assistente de Educação e Técnico de Assuntos Educacionais, organizando, em 1968, o Setor de Relações Públicas, do Ministério da Educação e Cultura, onde chefiou os setores de Imprensa e Divulgação. No mesmo ano, foi membro do Conselho Nacional do Cinema, e compôs, na década seguinte, o Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Dantas integrou em 1966 o I Festival de Artes Negras, em Dakar, representando o Brasil e, em 1967, participou do II Congresso das Comunidades Negras de Cultura Portuguesa realizado em Moçambique.

O escritor, jornalista e diplomata faleceu em oito de março de 2002, no Rio de Janeiro, aos 79 anos e foi condecorado com a Medalha do Pacificador, Oficial da Ordem Nacional do Senegal, Medalha Silvio Romero e Medalha Santos Dumont.3

  

“Agonia”: um conto entre quatro paredes

 

“Agonia” é um conto expandido e integra o livro de mesmo nome juntamente com outros três contos mais curtos. A obra, publicada em 1945, pela Editora Guaíra, é uma compilação de textos que fazem da tuberculose seu mote principal. A princípio, pretendo dar um foco na leitura da doença, que se apresenta no texto como elemento fundamental para desencadear o processo de recuperação da memória. Um breve panorama histórico é capaz de justificar tal hipótese se pensarmos que nesta época eclode pelo mundo uma onda de políticas discriminatórias contra diversas etnias, incluindo a negra. Os exemplos disso abrangem desde as medidas segregacionistas nos Estados Unidos, com as Leis de Jim Crow ou as Leis anti-miscigenação, que culminariam em movimentos extremistas como o surgimento da Ku Klux Kan, até a postulação de uma ciência (século XIX) que, construída por parâmetros racistas, propunha a teoria de que os negros formavam uma raça inferior às demais, pois possuíam limitações intelectuais. Todo esse quadro gera consequências ainda mais graves, como as políticas pautadas na “higiene racial”, que foram abraçadas pelos nazistas em da defesa da edificação de uma raça pura – a ariana.

No Brasil, a maioria da população negra ocupava subempregos, resultado do descaso e da falta de uma política pós-abolição que integrasse ao mercado de trabalho os ex-escravos, o que, consequentemente, implicava a falta de moradia e o surgimento das favelas, o preconceito racial, e miséria, dentre inúmeros outros problemas que atingem, ainda hoje, os negros. Além disso, a Frente Negra Brasileira, um dos primeiros movimentos de resistência afro-brasileira no Brasil, que mais tarde tomou corpo de partido político, foi declarada ilegal e dissolvida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas.

É nesse contexto que se insere Agonia, texto escrito por um jovem escritor, Dantas contava 22 anos na data de publicação, oriundo de uma família pobre e que completava, quatro anos antes da escrita do livro, seu processo tardio de alfabetização. Sobre essa obra e em tom confessional, Raymundo de Souza Dantas comenta em seu livro autobiográfico Um começo de vida que:

 

Fala um negro, em Agonia, tomado de ciúmes e desconfianças. Um negro enfermo, enclausurado, preso entre quatro paredes. Tem muito de autobiográfico, contos que são reminiscências de minha infância dolorosa e recordações da vida de pessoas que conheci (...) (DANTAS, 1945, p. 4).

 

O negro, narrador de primeira pessoa do conto “Agonia”, é Luiz e a clausura entre as quatro paredes do quarto é justificada por um possível diagnóstico de tuberculose. O título do conto parece anunciar o destino do enfermo. Agon, a origem grega da palavra, pode ser entendido como luta, a agonia seria a luta contra a morte, ou ainda, agonia seriam os fenômenos que anunciam a morte. Esses momentos que antecipariam a morte são marcados geralmente pela perturbação dos sentidos, fraqueza, respiração quase imperceptível, agitação e delírio, este, o sintoma mais interessante para análise que se segue para o narrador-personagem: tuberculoso, desconfiado do diagnóstico dado pelo médico, suspeitoso de que a esposa vive um caso amoroso com esse médico, o que atestaria o “possível” diagnóstico falso da doença, e envolto por lembranças atormentadoras do passado. O delírio é um “disparador” de memórias que se misturam com o presente do enfermo.

 

A tuberculose, a alucinação e a rememoração.

 

Como mencionado acima, “Agonia” é um conto habitado no presente e no passado. O presente, marcado pela doença, é ambientado no quarto de Luiz e a narrativa ganha continuidade a partir da relação que este mantém com a sua esposa Teresa, o médico, Doutor Bittencourt, quem descobre a doença, e D. Margarida, uma espécie de cuidadora que ajuda Teresa enquanto esta trabalha como costureira para sustentar a casa, já que o marido foi proibido de se levantar da cama. Já o passado é habitado pelos “fantasmas” do pai, da mãe, do Tio Zeca, que morreu vítima da tuberculose, e pela imagem da primeira namorada – Neide. A relação entre os dois tempos da narrativa se dá sempre de forma conflituosa – quando Luiz sofre crises decorrentes da doença se lembra do passado, já o presente é marcado pela desconfiança de uma traição conjugal e ao mesmo tempo pela culpa que ele sente por pensar que sua mulher, que se mostra “tão atenciosa” ao lhe oferecer cuidados, possa estar interessada no médico.

Em seu ensaio “Sobre as metáforas da recordação”, Aleida Assmann relembra o modelo de memória como um palimpsesto, de Thomas De Quincey. Para o romântico inglês, o cérebro humano, tal como um palimpsesto, seria formado de inúmeras camadas que soterram sob si mesmas todas as que a antecedem e nenhuma delas é extinta. Ainda nessa lógica, a lembrança não seria um ato voluntário, viria de forma espontânea e sob condições especiais. Para De Quincey:

 

(...) seja na hora da morte, seja por meio de uma febre ou no turbilhão do ópio, todas essas (imagens) podem recuperar sua força. Não estão mortas, mas adormecidas. (...) Em um abalo poderoso do sistema, tudo torna a seu estágio mais primevo e elementar. (...). Não existe alquimia da paixão ou da doença que possa apagar essas impressões imortais. (DE QUINCEY apud ASSMANN, 2011, p. 167.)

 

No caso de “Agonia”, a febre e a doença são justamente os facilitadores dessas “impressões imortais”, que trazem para a narrativa a infância do narrador. Em Doença como metáfora, Susan Sontag faz uma leitura sobre a tuberculose e suas metáforas na literatura, aproprio-me aqui de algumas delas para dar continuidade à análise. A enfermidade, tão cara aos românticos, reforça a ideia de individualidade, o que colabora para que o sujeito se torne mais consciente quando enfrenta a própria morte, consciência enunciada também por De Quincey. Ainda que de forma paradoxal, o narrador de “Agonia” encontra essa lucidez justamente quando as alucinações causadas pela febre e o isolamento no quarto permitem-no o exílio para o passado, o que é ilustrado em:

 

Os acontecimentos do passado tomam um aspecto de coisa viva, e os fatos que constituem o presente perdem inteiramente a verossimilhança, como se fossem coisa inventada. A sensação que tenho é de que estou dono de todas as minhas faculdades, com bastante lucidez, mas uma força estranha domina tudo, tudo. O estado febril não é lá tão grande, no momento, para me levar a dizer e pensar em coisas que não quero. Nisso é que está o esquisito, não querer, empregar todos os esforços e ser em vão. Para o diabo aquela infância envenenada e cheia de injustiças. (DANTAS, 1945, p.22)

 

Dentre as lembranças que mais angustiam Luiz está a imagem do pai. O narrador confessa ser o pai “a figura mais antipática que de seu mundo”. Isso porque o pai esconde o real motivo pelo qual fora demitido de seu emprego público. Ao ser indagado, desconversa. A apatia do pai seria a causa pela qual o filho teria visto sua vida e sua relação familiar arruinadas, o que pode ser evidenciado por este trecho do conto:

 

Meu pai, de um dia para outro, tornou-se a figura mais antipática do meu mundo, porque o via sem ânimo, sem um gesto de protesto diante de uma injustiça que sofrera. E D. Júlia, estranhando tanto quanto eu a sua atitude, fazia-lhe perguntas mais perguntas, alarmada naturalmente com a situação a que nos vimos jogados. Ele, aniquilado, não parecia ter nenhuma iniciativa – ou não queria ter. Suas palavras eram mais as de um resignado. Reconheci nisso, como reconheceria minha mãe e todos os nossos possíveis parentes, um sinal de fraqueza.

- E afinal, qual foi a causa de tudo isso? – perguntara um daqueles nossos parentes.

Meu pai teria lhe gritado um palavrão, tenho certeza, se naquele momento não estivéssemos presentes eu e minha mãe. (DANTAS, 1945, p. 10).

 

A razão secreta da demissão se tratava de uma cena de preconceito racial – um mulato não poderia mais continuar a ocupar o serviço público. O silêncio do pai se transforma numa espécie de trauma para o filho, que só começa a refletir de forma diferente sobre a situação com os delírios causados pela doença, o que, novamente, confirma a ideia de que é nesse momento em que o indivíduo vê com maior clareza, ainda que haja certa névoa no processo de rememoração, a sua própria vida. A partir daí, Luiz compreende que o pai foi vítima de uma injustiça e que não havia nada a ser feito que compensasse a possível represália dos colegas e trabalho e dos chefes aos quais ele era subordinado.

Considerando o sistema de armazenamento de mnemônico de Freud, pode-se associar que essas lembranças relativas ao pai constituem-se como um tipo de recalque, que deixa os seus reflexos no filho em forma de sintoma. Para o psicanalista:

 

Agora sabemos em que ponto devemos localizar a ação da força que presumimos. Uma violenta oposição deve ter-se iniciado contra o acesso à consciência do processo mental censurável e, por esse motivo, ele permaneceu inconsciente. Por constituir algo inconsciente, teve o poder de construir um sintoma. Esta mesma oposição, durante o tratamento psicanalítico, se insurge, mais uma vez, contra nosso esforço de tornar consciente aquilo que é inconsciente. É isto o que percebemos como resistência. Propusemos dar ao processo patogênico, que é demonstrado pela resistência, o nome de recalque. (FREUD, 1917 [1916-17]/1987, p. 300).

 

Tais reflexos se comportariam como repetições da cena vivida pelo pai. Luiz, ainda menino, abandona a escola porque também foi vítima de uma atitude discriminatória não só dos colegas, mas também do professor, que, ao questionar a turma algo referente à disciplina ministrada, e diante da resposta correta que apenas o narrador soube dar, dispara: “- É preciso que todos os dias os senhores (os demais alunos) sejam humilhados – sim, humilhados, por este, este mulatinho?” (DANTAS, 1945, p.24). O narrador, que nunca mais voltou à escola dado o episódio, confessa ser sufocado por tal recordação, que lhe custa grande esforço e o abate ainda mais, por isso, esse movimento da memória seria algo semelhante ao que Freud chamaria de o retorno do recalcado. Entende-se por esse retorno um trauma que se manifesta por repetições, atitudes desencadeadas como reflexo desse trauma, que retornam de diferentes maneiras, sem que o sujeito seja consciente dessas repetições O processo de terapia seria a cura para tratar essa lembrança traumática, em “Agonia”, o processo terapêutico é iniciado pelo próprio narrador, que se autoanalisa durante o período em que se encontra trancado no quarto. Esse recalque seria ainda somatizado na tuberculose, que, retomando o texto de Sontag, seria uma doença típica de uma pessoa reprimida.

A desconfiança que Luiz nutre pela mulher pode também ser interpretada como mais um dos reflexos citados acima. O narrador se sente ameaçado pela presença do médico porque, além de se julgar inferior a este, não entende como Teresa pode ter se casado um homem pobre e negro, como pode ser visto na seguinte passagem:

 

Parecem vir de longe, os passos miúdos que ressoam do outro lado, no corredor em silêncio. Fico a esperar, escutando. Sem fazer ruído, as duas figuras irrompem no quarto e é Teresa quem fala:

- Lá está o nosso doente, doutor.

Se esse homem vivesse em minha terra já teria sido surrado e de certo que posto fora de circulação. Sujeito ruim, em que não se deve ter confiança, e que não tem peias para abusar da boa fé de minha mulher. Com suas invencionices conseguiu prostar-me neste quarto sufocante sem direito a sair e nem de olhar o céu e a paisagem. Esse seu sorriso me deixa tão irritado, que não tenho outra alternativa senão voltar-lhe o rosto. Ele se aproxima, seus dedos nojentos tocam em mim, tateiam o meu pulso. Pousam em minhas fontes. Murmura para Teresa:

- Está febril, Teresinha.

Como me dói vê-lo pronunciar o nome de minha mulher com essa familiaridade. Teresinha. Amigos da infância, que estudaram juntos e hoje...hoje... Oh, não devo pensar semelhante coisa de minha mulher. E por que não? Branca. De certo que não se sente satisfeita e, ter casado com um pelado como eu, ainda mais de cor. Mulato, irremediavelmente mulato. Coisa ignominiosa essa de mim para com Teresa. (DANTAS, 1945, p.12).

 

O narrador parece denunciar ao leitor outro tipo de enfermidade, esta, sem tratamento: a “doença” da cor, também herdada pelo pai. Tal excerto ainda permite outro tipo de associação – Dr. Bittencourt seria uma alegoria da sociedade branca, formada por homens bem sucedidos, reafirmada pela figura de um médico, e opressora, da qual Luiz não se sente pertencido – um mulato, “irremediavelmente mulato”, preso entre as quatro paredes de um quarto graças à ordem do doutor, acusado pelo narrador de inventar a doença (em uma das passagens do livro, Luiz afirma que é o médico quem “dá” a doença a ele) apenas para se aproveitar de Teresa, e pobre, sustentado com a costura da esposa. Esta seria o último elo entre o protagonista e a sociedade – não é Luiz quem fala com o médico, mas sim a esposa, que se apresenta como uma mediadora entre o doente e a sociedade externa ao quarto. Vale ressaltar que se trata também de uma mediação que tende ao fracasso, já que Luiz não consegue se comunicar bem com Teresa e a esperança que o casal nutria para melhorar esse relacionamento, representada pela gravidez da esposa anos antes do surgimento da doença, nasce morta. Depois de ter sido exilado no quarto, e no passado, Luiz não sente nenhum tipo de desejo sexual pela esposa, o que encerra, de vez, a possibilidade de um futuro. O medo de ser enganado pela mulher faz com que o narrador transfira a sua libido para Neide, a primeira namorada, que aparece no conto como lembrança - algum dos únicos sinais de vitalidade que o narrador apresenta é desviado para um tempo pretérito. Mais uma vez, é a figura do médico, ou sociedade, que impede que o personagem possa viver em harmonia com sua esposa. Sobre Dr. Bittencourt o narrador ainda revela:

 

O médico me desconsidera, como na repartição me evitavam; passaram sempre por cima de mim, desde a infância. Todos me ignoram. Paciência. Ora, paciência... Uma criatura poderia lá ter paciência com uma coisa dessas? Tudo se acumulando, injustiça por cima de injustiça. Perseguido por preconceitos, por tudo e por todos, e ainda teria que me resignar? O Dr. Bittencourt faz isso conscientemente, como se estivesse a me apontar a realidade da minha situação. É como se eu fosse um traste ruim. (DANTAS, 1945, p. 13).

 

O resultado de tal constatação é uma prostração ainda maior, o médico, ao invés de curar, piora a doença e Luiz se vê como vítima das circunstâncias, sem, contudo, fazer algo a respeito, o que faz alusão à postura mesma apresentada por seu pai, confirmando o processo de recalque. O narrador seria, nessa interpretação alegórica, o porta voz de uma coletividade, o que nos remete ao conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs (2006). Para este autor, mesmo que aparentemente particular, a memória pertence a um grupo, já que o indivíduo que carrega a lembrança é produto de uma interação com a sociedade, por isso não há possibilidade de que ele se recorde de lembranças de um grupo com o qual as suas lembranças não se identificam. Dessa forma, o personagem-narrador de “Agonia” seria portador dessas lembranças da comunidade negra de sua época, reprimida pelas ideologias discriminatórias, citadas na segunda parte deste trabalho.

O enclausuramento do negro já foi tema de escritores como Cruz e Souza, exemplo disso é o seu conto “Emparedado”. O texto de Cruz e Souza traz à tona o emparedamento mental, provocado pela mentalidade científica racista do final do século XIX, ao qual o eu enunciador do texto é impelido. Essa crítica pode ser percebida em:

 

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto!... (Souza, 2000, p. 673)

 

A passagem revela a encruzilhada à qual foi submetido, a sociedade de um lado, com seu discurso preconceituoso e, do outro, a ciência e muitos intelectuais, que legitimam tal discurso. De maneira análoga ao texto de Dantas, Cruz e Souza também se utiliza de um eu enunciador para dar voz a coletividade a que o conto representa.

O emparedamento em Raymundo de Souza Dantas transborda o espaço mental metafórico e ganha paredes físicas, isolando o narrador dentro de um quarto. Além disso, o constrangimento moral, causado pelo racismo de uma cultura escravocrata, e por uma arte marcada pelos parâmetros estéticos da branquitude, com o qual trabalha o texto de Cruz e Souza, é radicalizado em Dantas como doença.

Os esforços empreendidos nessa análise pretendem entender, por fim, “Agonia” como um reflexo, um sintoma da realidade do final do século XIX e início do século XX, marcados pelas tentativas de enclausuramento do sujeito negro, da marginalização e do silenciamento. Assim como seu pai, Luiz não deixa que os outros personagens ouçam sua voz e tomem conhecimento dos preconceitos que viveu e das suas angústias. Esses retornam como alucinações e só são revelados ao leitor a partir de uma técnica narrativa que permite acessar os pensamentos do narrador e as suas memórias, confirmando, dessa maneira, uma voz, diante da sociedade presente no conto, representada pelos personagens do presente narrativo, silenciada de um sujeito, por fim, “emparedado”.

 

REFERÊNCIAS

 

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 2011.

CRUZ E SOUZA, João da. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1995.

DANTAS, Raimundo de Souza. Agonia. Curitiba: Editora Guairá, 1945.

_____. Um começo de vida. Rio de Janeiro: Campanha de Educação de Adultos, Ministério da Educação e Saudade, 1949.

DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

FREUD, S. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916–1917 [1915-17]) – Parte III – Teoria geral das neuroses (1917 [1916-17]): Conferência XIX: Resistência e repressão. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. XVI, p.293-308.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. trad. de Beatriz Sidou, São Paulo: Centauro, 2006.

NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Projeto História n° 10, dez. 1993. São Paulo: Educ.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al]. Campinas; Editora Unicamp, 2007.

SANTOS, Gilfrancisco. Raimundo Souza Dantas. In: DUARTE, Eduardo de Assis (org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 1, Precursores. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

SONTAG, Susan. A doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. trad. de Lya Luft, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

 

 

1 Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, UFMG.

2 Tal fato foi relembrado no livro Hotel Tropico: Brazil and the Challenge of African Decolonization, 1950–1980, de Jerry Dávila, publicado em 2010.

3 Grande parte dos dados biográficos apresentados nessa primeira parte foi retirada do site http://www.letras.ufmg.br/literafro/, do qual sou colaboradora e redatora. Os dados encontrados no site fizeram parte de uma primeira pesquisa minha feita pelo autor.

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