A maldição de Canaan 

(excertos) 

Romeu Crusoé

Explicação

 Não sei se devo começar minhas memórias pelo princípio ou pelo fim. Pelo princípio será melhor por mera questão de ordem, mas creio que pelo fim ficará mais atraente. Minha meninice poucos fatos dignos de menção apresenta; servem apenas para esclarecer e justificar uma ou outra atitude assumida no transcurso da existência. Normalmente, foi a infância de quase todo menino pobre: fiz estrepolias, tive sarampo, tosse braba e algumas surras.

Antes de mais nada, uma declaração importante: contarei toda a verdade. Ainda que mordendo os lábios de vergonha.

Dirão alguns que escrevi sob o domínio de meus recalques. Que me importa! Quem não os tem? Recalques é palavra agora em moda, e os literatos gostam de empregar palavra em voga com a mesma ardente alegria com que as mulheres usam vestido novo. Além disto, cada qual escreve o que entende e como quer. Pronto: sou existencialista.

Não vou tecer o enredo de um drama nem de grosseira novela engendrada pela imaginação de um cérebro anormal, porém retraçar a cópia fiel de minha atribulada existência. Não invento nem fantasio; não me move a vaidade ao escrever estas linhas. O fito deste livro é ceder a outros minhas experiências e sofrimentos, para que tirem deles algum ensino em proveito das relações sociais.

É minha contribuição para a humanidade. Uns legam-lhe a vida em campos de batalha, lutando por uma liberdade sonhada e jamais atingida; outros, os cientistas, deixam-lhe remédios que lhe mitigam as dores e curam as doenças, eu oferto-lhe minha história, a tragicomédia de minha vida, obscura, não resta dúvida, mas sincera, ressaltando as injustiças de que fui vítima neste mundo cristão. Poderá ela agir como medicamento social, para males morais. 

Quis transfazer minhas dores e misérias na bandeira dum ideal, assim como o choro e aflição da ostra produz a pérola encantadora.

Esta é a minha história.

Não declinarei os logares em que a vivi. Para que? Ela seria idêntica em qualquer parte do Brasil ou do mundo, pois o que fabrica os acontecimentos são as circunstâncias são as pessoas e, com o voar dos anos, aprendi a crer que a humanidade é igual a si mesma em todos os quadrantes da terra. O homem não muda; apega-se desgraçadamente a si próprio, fiel a seus erros e virtudes. Só as feições, o exterior varia, e muito pouco; a alma é sempre a mesma, chamuscada pelo facho flamejante das paixões. Seja no equador ou nos polos, na Terra do Fogo ou na Groenlândia, na China ou no Amazonas, o homem é um só.

Por isso, basta pormenorizar que minha história se inicia numa cidadezinha do interior.

Porém, eis-me chegado ao fim da explicação, sem ter resolvido por onde começar o relato das memórias. Pensando bem, acho que vou principiar pelo meio. Sim: pelo meio.

(A maldição de Canaan, 2. ed., p. 19-20).

****

 Capítulo I

Tencionava matar os dois e, com este propósito, deixei a repartição naquela tarde, correndo para casa, como louco, a fim de me armar. Na esquina, porém, encontrei-o. Cego de raiva, possesso, lancei-me sobre ele, gritando:

─ Desgraçado! Vou te matar, velho descarado! Eu bem te avisei!

Recuou, espantado, mas num momento o agarrei, jogando-o por terra e, em cima, apartava-lhe a garganta. Ele gesticulava, desesperado, para livrar-se, mas eu já sentia suas forças o abandonarem. Tentava gritar e não podia, os olhos esbugalhados, minhas mãos cada vez mais o apertando.

Nisto começou a chegar gente. Só me lembro das vozes de: “O que é isso?!” “Não faça isto!” “Me atenda!” De nada mais me recordo e só no dia seguinte soube quem nos apartara. Quando dei por mim, estava na cadeia, com um companheiro desconhecido que me olhava de través.

Na penumbra da prisão, rememorava os últimos acontecimentos da minha vida. Ora, minha irmã Luzia, em que me metera ela! Como a odiava naquele instante!  Bem que a avisara no começo do namoro com aquele velho descarado:

─ Luzia, tome juízo, olhe que seu Francisco é casado...

Fez um gesto de desagrado com a cabeça. Insisti:

─ É pai de duas filhas moças, mãos velhas que você.

Ela então mentiu descaradamente:

─ Mas quem foi que disse que eu estou namorando com ele?! Ora que coisa!

Eu estava calmo.

─ Todo mundo sabe, Luzia. É só no que se fala.

─ E o que tenho eu com a língua do povo?! Ninguém tem nada com a minha vida! Se eu namoro ou não namoro não é da conta de ninguém!

─ O mal-feito é da conta de todo mundo.

─ Ora, Ricardo, você agora deu para me aperriar! ─ replicou chorando. ─ Fica escutando essas mentiras que os outros dizem, para vir me aperriar!

─ Está bem, Luzia, está bem. Não precisa chorar. Você não é criança, veja lá o que está fazendo.

Prosseguiram as discussões com maior ou menor intensidade. Constrangia-me seu namoro pelos escuros, com um homem casado, cuja fama de sedutor era das piores.

Grande responsabilidade pesava sobre mim, em ter que cuidar da minha irmã. Órfãos de pai e mãe, vivêramos harmonizados até ali, ela obedecendo-me sempre, por ser eu mais velho. Quando nossa mãe morrera, havia três anos, me fizera prometer tomar conta da Luzia. Nunca pensara me seria tão difícil desempenhar a tarefa.

Tudo correra bem até surgir o Francisco. Antes mesmo do namoro, eu lhe tinha aversão (parecia adivinhar). Dobrou depois, com as brigas em que minha irmã e eu nos empenhávamos por causa dele. Na penúltima, quase eu batera nela.

Descobrira que, apesar de minhas admoestações, continuavam encontrando-se no fundo do quintal e decidi falar com ele. Pois Francisco negou. Velho descarado! Não, senhor, absolutamente não era ele, eu estava enganado.

─ Pois, se houver alguma coisa com minha irmã, ─ retruquei, ameaçador ─ eu mato o desgraçado! Seja quem for!

Ao chegar a casa, contei-lhe o sucedido. Luzia exasperou-se:

─ Mas onde é que você estava com a cabeça, Ricardo? Ir falar uma coisa desta com seu Francisco, uma pessoa tão direita!

Percebendo o disfarce através de suas palavras, enraiveci-me:

─ Então, você ainda me censura, porque fui falar com aquele sujeito?!

─ Você não devia ter feito isso! Não devia! Estou envergonhada!

─ Ah! eu é que ainda a envergonho! Tome juízo e acabe com isso! Você veja que nós somos pobres, mas fomos criados com capricho. Nossa mãe quando morreu me entregou você, e eu me sacrifico para trazer você direitinha, não falta nada em casa...

─ É! Pode alegar o que tem me dado! Era só o que estava faltando...

─ Não estou alegando, não; estou só é dizendo para ver se você...

─ Está alegando, sim. Se você quiser, eu saio de dentro de casa! É melhor passar fome do que comer um bocado de feijão alegado.

─ Luzia, cala essa boca! ─ rugi, levantando-me. ─ Eu não estou alegando nada! Se falei foi pro seu bem e, como irmã mais nova, você tem de me obedecer. Esse namoro tem que acabar!

─ Não acabo! Pronto! Não acabo! ─ retrucou, chorando, batendo os pés no chão e a mão fechada na mesa.

Avancei para ela com os braços erguidos.

─ O que? cachorra?! Repita! Repita o que você estava dizendo! Repita, que eu quero te arrebentar já! Malcriada!

Recuou, temerosa; não repetiu, só fazia chorar e lamentar-se. Saí desvairado para a rua e, desse dia em diante, não toquei mais no assunto. Conclusão: deixei-os à vontade. Eu sabia que se encontravam a miúde, porém fingia ignorá-lo para evitar aborrecimentos. Correram os meses.

Meditava agora, no xadrez, sentindo-me culpado do acontecimento. Quando soube, por insinuações de terceiros, da gravidez de Luzia, perdi a calma e a medida das coisas. Aquilo, em cidade pequena e atrasada, era o diabo! Estava desonrado para o resto da vida. “Ainda mais esta!” ─ exclamei, ao ler a carta anônima recebida sobre o assunto. E, como louco, parti em busca dos dois. Foi aí que esbarrei com Francisco, gerando o incidente que me levou à prisão.

A carta, escrita num papel de embrulho cor de rosa, sujo e amarrotado, perguntava-me se era cego, que não enxergava a barriga de Luzia crescer; se me estava fazendo de desentendido, fingindo ignorar o que toda gente sabia. Era um veneno terrível. Quem a teria escrito? Naturalmente, o miserável autor estava rindo, vendo que sua peçonha produzira o feito desejado: eu preso, minha irmã, desonrada, e Francisco, doente.

Acuado, como onça na toca, eu ruminava planos de vingança, blasfemando contra Deus e o mundo. O companheiro saiu de seu mutismo para aconselhar-me: Que me calasse, tivesse calma e paciência. Olhasse ele, que ali estava, tinha muito maiores motivos de desespero do que eu, e conformara-se. Contou-me uma série de desgraças acontecidas a ele, culminando com a prisão injusta. Aquelas e o motivo desta, já esqueci.

As autoridades não eram rigorosas em questões de agressão. Afinal de contas, todos me conheciam, Soltaram-me daí a uma semana. Só me prenderam o tempo suficiente para os dois fugirem: minha irmã, para outro Estado; Francisco, para a capital.

Daí em diante, a família dele passou a hostilizar-me. A mulher e as filhas, umas amarelas empambadas, quando na rua me encontravam, torciam a cara para um lado, ou escarravam com desprezo. Negócio mesmo de gente baixa. Em minha solidão, tinha ainda que aturar a estupidez daquela gente. Eu estava certo de ter razão, um homem casado seduzira minha irmã, a justiça não tomara providência; fora assim desrespeitado e de quebra adquiri o ódio dos entes de meu algoz. Desde essa ocasião, comecei a analisar o mundo e a acha-lo estranho e incompreensível.

Desorientei-me com o caso e abandono de Luzia. Perdi o sono e o apetite. Perambulava pelas ruas, sentindo o coração opresso.

Tudo conspirava para tornar-me ruim. Depois do incidente, até no emprego me olhavam com maus olhos, procurando os colegas fugir-me da presença, espavoridos ou enojados de minha suja popularidade e, na rua, poucas pessoas me cumprimentavam. Cidade pequena é uma miséria! Avaliei, por isso, o trabalho medonho que devem ter os criminosos para, uma vez libertos, romper as muralhas de aço da vaidade, orgulho e preconceito humano. Ora, meu caso fora banal, sem maiores consequências físicas do que ligeiras escoriações em Francisco. Pelo lado moral, sim, fora grande; mas a vítima tinha sido eu.

Decidi insular-me, porém não podia fazê-lo completamente. Minha carne moça, ardorosa, queria contacto, meio, vivacidade e, naquela noite, Isidro convidou-me para um baile. Mentiria se dissesse que não gostava de festas; ao contrário, adorava dançar, mas a presença nesses locais constituía-me verdadeiro suplício. Ansiava por não perder uma só contradança, mas tinha que escolher as damas, não me aventurando a tirar a mais bonita, como desejava, pois temia recusas, porém a mais modesta em plástica e condição social. Devia contentar-me com o pior, apesar de ter consciência de que não dançava mal. Por isso, ao comparecimento precedia um bando de indecisões e angústias.

Tímido? Inibido? Eu tinha que ser tudo isto e mais alguma coisa. Já naquela época, as decepções avolumavam-se em minha vida, formando um montão enorme. Intransponível. Era através delas que eu contemplava o mundo.

Mas olhava também para as moças, e a que se achava perto, na sala, parecia não desagradar-se de mim. Se eu não me iludia, algumas vezes lhe surpreendera, misturados na mensagem do olhar, uns nadinhas de sorriso condescendente. Assim raciocinando, arrisquei-me:

─ Vamos dançar, senhorita?

─ Não, senhor, estou cansada ─ respondeu com enfado, como se meu convite a ofendera.

Desnorteou-me o contra. Escabriado, fui-me esgueirando, empurrado pelos pares sorridentes, que rodopiavam, e murcho quedei-me num canto. No mesmo instante, Isidro passou alegre, agarrado na cintura de uma gorda, e piscou-me os olhos. Fui obrigado a fingir um sorriso. Abri-lhe apenas os dentes, pois no coração a raiva crescia. Mais indignado fiquei, quando daí a pouco, a moça passou por mim, prazenteira, sem mais leve amostra de cansaço, rebolando os quadris ao ritmo quente do samba enfezado que crepitava na sala. Subiu-me o sangue à cabeça, tive ímpetos de agarrá-la desfazer o par, acabar o baile. Ela me passara uma taboca e não devia suportá-la assim. Era desfeita. Lembrei-me de que, em tempos recuados, uma taboca motivara tamanha rixa entre duas famílias, que quase liquidava com seus membros, entrematando-se. “Moça quando vai a baile é para dançar até com cachorro” ─ dizia-se ali. Eu era, pelo menos me supunha, superior a cachorro. Devia, portanto, tomar providência. Mas não tomei. O rapaz com quem ela dançava, meu conhecido, não tivera culpa; não vira o fato; não soubera dele. Além disso, qualquer conflito que eu provocasse, lá me viria fatalmente em cima o célebre apodo: “Negro quando não suja na entrada”... Com essas amargas reflexões, fui saindo de fininho, envergonhado, e dei o fora.

Não dormi essa noite; passei-a em convulsões de corpo e espírito, planejando vinganças, querendo incendiar o mundo, descompondo pessoas, injuriando, matando. Tudo porque uma moça se recusara a dançar comigo!

Quando a vida me empurrou ao encontro de desenganos cruéis, compreendi que fatos como esse não passavam de ninharias desprezíveis. O grosso ainda estava por vir. Por isso, lamentei o ódio gasto com eles e transformei-o em compaixão. Senti depois muita pena daquela criatura a quem odiava nesse instante.

Porém, essas coisas tomam o caráter de calamidade, quando temos apenas vinte anos.

 (A maldição de Canaan, 2. ed., p. 21-25).

****

Capítulo II

Mesmo assim, namorava muito. Não sei por que eu tinha tanta sorte, ao ponto de causar inveja aos companheiros. Talvez porque, nesse tempo, não era desgracioso; ao contrário, de formas esbeltas, alto, espadaúdo, notava que me notavam. Muitas pequenas me desfilaram na existência, entre elas, Idalina. De olhos negros e tez cor de jambo mineiro, corpo miúdo, monopolizou-me algum tempo as atenções. Bonita, choviam-lhe candidatos sem cessar. Num baile, Everaldo perseguiu-a quanto pôde. Esvaidecia-me, vendo-a recusar pretendentes por minha causa. Era o dono de seu coraçãozinho em botão e como a apertava na dança!

─ Ai, eu já estou cansada ─ queixou-se nos volteios de u’a marcha.

─ Mentira!

─ Estou, sim. Assim eu não posso nem ir para casa.

─ Eu a levo nos braços, meu amor.

─ Hum... fiteiro!

Nesse instante, passamos perto de Everaldo que, não conseguindo par, se sentara, enfarruscado, Ao ver-nos sorridentes, seguindo par, se sentara, enfarruscado. Ao ver-nos sorridentes, nãos e conteve e, dirigindo-se a Idalina, numa censura branda:

─ Mas você me recusar por um rapaz tão... tão... escuro!...

Esquentei-me com a piada, porém ela, sem dar tempo a manifestar-me, retrucou com uma rabanada:

─ Ôxe, não me amole!

Satisfez-me a exclamação instintiva, aplacando-me a ira, nascente. Que torpe argumento buscara Everaldo em sua derrota! Meu velho conhecido, saíra-se com aquela. Por esses incidentes, que se repetiam com frequência, fui analisando a alma humana, sondando-lhe os recônditos, e com pesar confesso que ali o material mais encontradiço era a baixeza. Para um grama de bondade, achei sempre dez quilos de maldade; para um centímetro de tolerância, cem quilômetros de intransigência. As viagens, que, a esse tempo, comecei a empreender no coração humano, rugaram-me o rosto e a alma. Quantas vezes recuei de horror! Quantas, quantas, voltei para o lado a face contrafeita!

Essas pequeninas coisas acabrunhavam-me. Minha cor era pretexto para me rebaixarem e eu teria que suportar humilhações durante a existência, pagar pelo crime involuntário e impraticado de ter nascido negro.

É verdade que, no caos discriminativo, encontrei felizmente criaturas para quem a pele não influía nas relações e me viam com os olhos da alma. Idalina foi uma delas, Laura foi outra.

Conheci esta pouco tempo depois, Era mulher de vida livre e, como nos entendíamos bem, nos amigamos. Na época, eu sofria imensamente a solidão. Creio que me apeguei a Laura como me apegaria a qualquer outra. Compreende-se: precisava de alguém que me desse, pelo menos, a ilusão de considerar-me, e ela considerava-me realmente. Por isto, cheguei a gostar dela com sinceridade. Ela cativava tanto pelo corpo moço, de formas volutuosas e agressivas, como pela bondade do coração. Constituía bum conjunto apetecido de qualidades morais e físicas. Sua única falha: o ciúme intenso. Era um ciúme calado, remoído. Compreendi pertencer ela não à categoria dos assassinos por amor, mas à dos suicidas. Tive, portanto, que diminuir os namoros.

Por um escrúpulo besta, que nem agora consigo compreender, não desaluguei o quarto para onde me mudara após a viagem de Luzia. Desejava conservar uma residência oficial, solteira, com o fito de, acatando a moral alheia, iludir as aparências. Até hoje me arrependo dessa concessão à bisbilhotice, vaidade e preconceito da tribo. Mesmo porque, foi tolo propósito. Em cidade pequena, os outros se ocupam tanto ou mais da vida alheia que da própria, e assim, o povo dali, hipocritamente puritano, com especialidade as beatas senis, entrou a falar de mim de maneira violenta:

─ Aquele negro não se assunta! Agora amigado!

─ Eu logo vi! Já estava demorando êle botar as unhas de fora!

─ Que senvergonhice!

A solidão ao calor da mocidade, as restrições que o meio me impunha, meu sossego de espírito ─ nada contava no rol das difamações gratuitas, não diminuindo o ímpeto das línguas. A sociedade excluía-me, negava-me as belezas e excelências do convívio, e as velhas achavam que eu não tinha direito ao único recurso conseguido para tornar a segregação menos cruel. Ora bolas!

Como Laura era alva, dentro em pouco os debochados inventaram que eu estava ficando com a barriga branca. Só a barriga.

Eu sabia de tudo aquilo. Vinham andando as conversas de boca a boca e chegavam a meus ouvidos, já disfarçadas, é verdade, mas não tanto que não lhes compreendesse perfeitamente o sentido. Às vezes, revoltava-me; outras não: recebia os insultos com uma displicência de espantar a mim próprio. Que poderia eu contra o mundo? Vários brancos havia morando com mulheres e ninguém se lembrava de xingá-los por isso. Só em mim, tudo era reparado.

Contudo, minha vida com Laura decorria feliz. Todas as tardes, ela esperava-me voltar do trabalho, e jamais um sorriso claro, da cor de sua pele, deixou de aflorar-lhe os lábios carnudos. Banhava-se àquela hora, deixando soltos, para enxugar, os cabelos castanho-claros, quase louros, usados à Nazareno, nos quais eu gostava de mergulhar as mãos para sentir-lhes a maciez. Não sei o que ela achava de mim; além de preto, eu era pobre, obscuro e, às vezes, áspero com ela. Mas o fato é que me amava. Nada podia esperar de mim aquela criatura admirável.

Almas bondosas como a sua rasgaram nesgas de luz na tênebra de meus dias, fazendo-me antever esse mundo bom por mim ideado e do qual sempre andei em busca, na ânsia malograda de encontra-lo e nele ingressar inteiramente.

Quando de mau humor, não acreditava que ela me amasse. “Não, não pode ser ─ dizia comigo. ─ Eu sou preto, ela é branca, ela está fingindo”. Desandava então a provocá-la, maltratando-a. Leve rusga do passado, relembrava-a com as tintas do excesso, até com mentiras e requintes de maldade, só com fito de aperriá-la. Como eu era mau, nesse tempo! Depois, a razão entremeava-se, dando-me um pouco de senso. “Mas não pode ser! Fingindo, por que?! Não sou rico, nada tenho de mau. Por que iria ela fingir? Ora! mulher tem o diabo no couro!” Lá me punha de novo a azucriná-la, a fazê-la sofrer. Pobre Laura! Tudo suportava com resignação e paciência extraordinárias. Eu era cego, senão teria visto a superioridade de sua atitude. Pouco discutia; ao notar que me possuíra a pletora de insultos, trancava-se num mutismo altaneiro, enobrecente; em seguida, pouco a pouco lhe deslisavam lágrimas dos olhos castanhos. Se ainda me restava decência e bondade, enternecia-me, adulava-a, e tudo terminava bem. Dentro em breve, Laura ria, despreocupada, tal uma criança, como se nada tivesse acontecido; mas se o demo me tomara completamente o corpo, seu pranto, longe de aplacar-me o rancor infundado, me enfurecia mais.

Eu era assim; não pinto o retrato de outra pessoa, não invento; este era eu.

(A maldição de Canaan, 2. ed., p. 25-28).

  

Texto para download.