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 Resenhas do livro A MEMÓRIA DAS COISAS, de Maria Esther Maciel

 

João Paulo

Jorge Pieiro

Luís André Nepomuceno

Sérgio Medeiros/Dirce Waltrick do Amarante

Sérgio de Sá (entrevista)

 

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          JORNAL ESTADO DE MINAS

         Belo Horizonte, 20/04/2004

       

        Ensaios de sabedoria
 
                                                 João Paulo

 

 

Há um traço de unidade nos dois belos livros A Memória das Coisas e Don Juan, Fausto e o Judeu Errante em Kierkegaard. Além de terem sido escritos por duas das mais competentes intelectuais mineiras, Guiomar de Grammont e Maria Esther Maciel, os livros mostram como erudição e paixão podem estar juntas no mesmo projeto. As autoras fizeram confluir em seus ensaios a reflexão sobre a filosofia e a arte, mas sempre amparadas numa relação com a vida.

De estrutura e estilo mais acadêmico, em Don Juan, Fausto e o Judeu Errante, Guiomar de Grammont refaz o percurso do filósofo dinamarquês Kierkegaard, Criador de várias personas filosóficas e literárias, o filósofo é muitas vezes tratado apenas como um precursor do existencialimo e crítico do sistema hegeliano, com interesse mais histórico que filosófico. Guiomar propõe uma leitura em profundidade, que vai além da circunstância do autor para dar contemporaneidade e vitalidade à suas idéias e método, sobretudo o uso heurístico da ironia.

Ela se concentra no chamado estádio estético, o primeiro dos modelos de existência tratados pelo filósofo (além do estético, ele descreveu os estádios ético e religioso). Não se trata de uma visão de progresso, mas de figuras compreensivas, razão pela qual o filósofo prefere usar estádio e m lugar de estágio. Guiomar retoma os tipos de Don Juan, Fausto e Judeu Errante, que personificam a sensualidade, a dúvida e o desespero, respectivamente. Assim como seu filósofo, a ensaísta busca pistas para entender o homem, mas especificamente, o homem de hoje, perdido em suas angústias e relações falidas com o amor e o erotismo. Se o ponto de partida é o desamparo, a busca é pela possibilidade da alegria de viver. A paixão se revela, num mundo fragmentário, como possibilidade de realizar a existência. Ao lado da fé, a paixão não é um dom de iluminados e escolhidos, mas uma relação do ser com seu mundo.

Na coletânea de ensaios de Maria Esther Maciel, A Memória das Coisas, a aparente multiplicidade de livros, filmes e autores tratados revela uma unidade especial. Interessa à autora, e ela comunica isso aos seus leitores, a inclinação atual em buscar catalogações do mundo. De Borges e Peter Greenway, passando por Arthur Bispo do Rosário, George Perec e Drummond, Maria Esther analisa o empenho classificatório, o gosto enciclopédico, o vezo em organizar o museu de tudo. Os elementos escolhidos são a memória, os enfeites, o gosto barroco, a animalização. Em todos os artistas, Maria Esther flagra o momento em que, com astúcia e criatividade, se compõe uma nova lógica, que abre no coração do já sabido novas possibilidades de leitura do mundo.

Ensaístas, Giuomar e Maria Esther têm a militância reconhecida no terreno da criação, com livros de poesia, romances e dramaturgia. Na disciplina mais referencial do ensaio, no entanto, não perdem a delicadeza das formas. E emocionam com a inteligência.

A memória das coisas
De Maria Esther Maciel, editora Lamparina
Don Juan, Fausto e o Judeu
Errante em Kierkegaard
Guiomar de Grammont, editora Catredal das Letras
 

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JORNAL O POVO- CEARÁ

CRÍTICA / LITERATURA

 

O rigor delirante dos gestos

Jorge Pieiro
Articulista do Vida & Arte

 

 

''Hoje, mais do que nunca, estou investindo na pesquisa teórica e criativa sobre formas de se extrair o rigor do delírio e o delírio do rigor''. (M.E.M.)

O que teriam em comum o argentino Jorge Luis Borges, o britânico Peter Greenaway, o brasileiro Arthur Bispo do Rosário e o francês Georges Perec, artistas aparentemente díspares na nacionalidade, na arte e na vida?

Podemos dizer que Borges é/foi um catalogador irônico da insensatez e do incontrolável; Greenaway, um desqualificador do esforço humano de representar a racionalidade do mundo; Bispo do Rosário, um entulhador de objetos avulsos, registros de sua passagem pelo mundo; e Perec, um colecionador de sistemas como desejo de ordenação do mundo e do conhecimento. Ou seja, todos experimentaram o ''exercício criativo da taxonomia (...) pelo propósito de subverter/criticar a lógica burocrática que define o uso dos sistemas legitimados de organização do mundo''.

Com o sentimento dos versos da canção de Paulinho da Viola - ''as coisas estão no mundo / só que eu preciso aprender'' -, diremos que precisamos aprender a apreender. É a isto que o olhar crítico da mineira Maria Esther Maciel (1963) nos estimula: apreender a ordem e a desordem, a realidade e o delírio, a construção e a desconstrução de universos artísticos. Demonstram-nos isso os textos escritos entre 1999 e 2003, reunidos pela novíssima editora Lamparina, do Rio de Janeiro, em A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas.

A obra se divide em quatro partes: a primeira, ''Inventários do mundo'', inclui os artistas já mencionados, resgata Visconde de Taunay e sua Zoologia fantástica do Brasil (1934) e acena para os contemporâneos Wilson Bueno, Valêncio Xavier, Caio Fernando Abreu, Zulmira Tavares Ribeiro e Sebastião Nunes; a segunda, ''Texto, imagem, tradução'', reflete sobre a interseção da poesia do cinema com a da literatura, via Bressane, Helvécio Ratton, Bu¤uel, Wenders e Jarmusch, levando a crítica a indagar ''qual seria a poesia possível de nosso tempo?'; a terceira parte, revê a poesia de coisas de Drummond, especula sobre as construções de Altino Caixeta de Castro e Maria Gabriela Llansol, portuguesa, e comenta sobre vertentes da poesia híbrida, que se dá ''às margens do verso''; por fim, revela-se poeta, em entrevista concedida a Floriano Martins.

Ao estudar a poesia do mineiro Altino Caixeta, a autora de O livro de Zenóbia (Lamparina, 2004), surpreende-nos pela sutileza com que trata a poética desse exilado da nossa cena literária. Pela leitura transversa dessa poesia entrevista como paradoxal e atópica, assim como pela re-visão do feitio enciclopédico e irônico do poeta, a nosso ver, Caixeta aparenta-se com o cearense poeta Pedro Henrique Saraiva Leão, autor de Meus eus (UCF/Casa de José de Alencar, 1995).

A memória das coisas é obra de pesquisadora arguta. O texto preciso distancia-se das empolações e muitas vezes ininteligível escrita de pares acadêmicos. Trata-se de obra que deve ser degustada lentamente, saboreados os vazios e as reentrâncias, e, melhor ainda, se preenchida, simultaneamente, com as indicações da autora. É talvez por ser também poeta que Maria Esther Maciel tonifica seu texto crítico com a verve de quem lida com a subjetividade da matéria.

Na entrevista contida no final da obra, a autora nos ensina que ''o exercício crítico requer também a responsabilidade ética de entender a lógica do outro, para então colocá-la em crise, evidenciar suas contradições e fragilidades''. Se ela admite esse rigor em gestos de confissão, cabe-nos como leitores apreciar os gestos desses rigores.

Jorge Pieiro é escritor e mestrando em Literatura (UFC)


TRECHO

''Altino sabe que as palavras podem deflagrar realidades imprevistas, fingir um mundo que não existe senão apenas dentro delas ou a partir delas. Como em Fernando Pessoa, outro poeta da ousadia, sua perplexidade se 'irressolve' na consciência de que é possível tanto sentir com a imaginação quanto escrever pelos sentidos o que a razão não entende. E seu pastoreio é tanto de conduzir e/ou vigiar a linguagem - como fazem os pastores de cabras e ovelhas - quanto o ato de pastorejá-la, visto que o verbo 'pastorejar', relacionado ao pastorear, aponta também para a ação de fazer a corte, cortejar. E nesse sentido, Altino pode também ser visto como um verdadeiro cortejador das palavras, um deslumbrado pela poesia.

E é nessa ousadia de se deixar deslumbrar e de traçar à medida que escreve os seus próprios desvios, que a poesia perplexa (e complexa) de Altino também causa perplexidade naqueles que tentam defini-la ou classificá-la''.
(In: ''Do espanto da palavra e outras perplexidades: a poesia de Altino Caixeta de Castro'', p. 120)
      
   
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        JORNAL ESTADO DE MINAS

Belo Horizonte, 18/12/2004

 

Inventários da Memória

 

Luís André Nepomuceno

 

 

A Memória das Coisas: Ensaios de Literatura, Cinema e Artes Plásticas (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004), de Maria Esther Maciel, como nos adverte a própria autora em nota prévia ao livro, reúne ensaios escritos entre 1999 e 2003, publicados esparsamente em revistas e jornais do Brasil e do exterior. O que permeia toda a discussão do volume, abrangendo diferentes universos estéticos de poetas, cineastas e artistas plásticos, é a utilização peculiar de sistemas de classificação e catalogação de coisas, idéias e percepções do mundo, do tempo e dos indivíduos, partindo, sobretudo, de indagações modernas particularmente selecionadas e articuladas pela autora.

        

Longe de fechar compartimentos arbitrários nesse maquinário abrangente da investigação moderna sobre a relação entre o indivíduo e o mundo, Maria Esther não se prende a uma escola crítica e, mais que isso, não se prende a uma linguagem estética apenas, seja a literatura, o cinema ou as artes plásticas; antes, mescla essas diferentes percepções e mecanismos de revivescimento do homem e do mundo, num todo que não se deseja necessariamente simétrico, nem harmônico, mas profundamente revitalizado. Nesse contexto, uma profusão de nomes se inclui e se oferece à lembrança, à medida que se lêem os ensaios: do cineasta Peter Greenaway ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário, do escritor Jorge Luiz Borges ao cineasta Júlio Bressane, do cineasta Helvécio Ratton ao escritor Haroldo de Campos, do poeta Carlos Drummond de Andrade ao outro poeta Altino Caixeta de Castro. Todos eles são trazidos à discussão por um fio que os identifica: a capacidade, ou pelo menos o intento, de investigar ou traduzir o mundo. Assim, a organização dos ensaios está dividida em três partes: “Inventários do mundo”, “Texto, imagem, tradução”, e “Do inventário à invenção”, com um apêndice ao final do livro, em que a autora publica entrevista concedida a Floriano Martins, para o Jornal Rascunho, em março de 2003.

        

Porque as questões são múltiplas e os ensaios, diversos e abrangentes, gostaria de me ater particularmente a duas questões que são colocadas no livro e que, de certa forma, dialogam com outras que venho pensando e considerando recentemente. É certo que minha maneira de enxergar o livro pode soar pessoal demais, talvez focalizando levianamente apenas aquilo que me diz respeito, mas ao mesmo tempo, não penso que tudo isso possa ser diferente, ou pelo menos, muito diferente. Afinal, estou diante de uma poeta cuja subjetividade assumida por meio de um “eu” multiplicado e explícito no poema é, sem dúvida, uma das marcas de sua poesia. As duas questões a que me refiro são, enfim, as seguintes: 1) a idéia de que as ordenações e classificações taxonômicas, explicitadas principalmente no cinema de Peter Greenaway são, na verdade, uma ironia e uma crítica aos próprios sistemas classificatórios da modernidade, iniciados, a meu ver, com a filosofia medieval escolástica e perpetuados pelo enciclopedismo iluminista; e 2) a idéia de que as coisas se inserem no universo da memória não pela funcionalidade, mas pela sua capacidade afetiva de articulações passionais.

        

Ambas as proposições merecem uma breve consideração de minha parte. A primeira delas parece ser crucial ao desenvolvimento do livro. Maria Esther começa, dando-nos notícia das peças colecionadas por Arthur Bispo do Rosário, artista sergipano excluído do eixo intelectual e artístico do país: negro, pobre e psicótico (passou 50 anos num hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro), Bispo coletou objetos quotidianos de sua existência como marinheiro e empregado doméstico, e organizou imenso acervo de sua memória, hoje no museu que leva seu nome. Convicto de que coletava cacos de sua vida para o Juízo Final, e de que tinha sido escolhido por Deus para reconstruir o mundo, Arthur Bispo do Rosário colecionou objetos avulsos, como navios de madeira, roda de bicicleta, faixas, fichários, miniaturas, tabuleiros etc. O gesto é motivo para Maria Esther identificá-lo com o cineasta Peter Greenaway, ele próprio confesso dessa identificação, quando de sua visita ao acervo de Bispo. Greenaway teria se impressionado com a forma como ele “parece zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia”.

         O motivo parece permear toda a discussão de Maria Esther Maciel, em A Memória das Coisas, partindo, sobretudo, da filmografia de Peter Greenaway que, como Bispo do Rosário (porém com consciência estética e intenções definidas), procura obsessivamente representar a imaginação taxonômica, ou seja, a necessidade lógica que tem o homem, e mais precisamente a intelectualidade, de ordenar o universo e classificá-lo em sistemas e catálogos que dêem conta de suas multiplicidades. Esse novo “inventário do mundo”, ou “museu de tudo”, no entanto, propõe justamente o sentido oposto daquilo que nele aparentemente reside: essa exposição de um sistema classificatório, pensando-se na intenção proposta por Greenaway, funciona, na verdade, como um anti-sistema de classificação, como um contraponto paródico à própria obsessão da filosofia escolástica medieval (que, como disse, creio ser o primeiro grande momento moderno de um racionalismo classificatório de inspiração aristotélica), ou seja, a reimaginação da taxonomia, por parte de Greenaway e Jorge Luiz Borges, dentre outros, revive para nós a tradição humanista que, oposta a qualquer sistema de classificação, entende que as coisas não devem ser compreendidas ou ordenadas, mas apenas trazidas à memória do indivíduo, como proposta de ressignificação. Não foi por motivo gratuito que o primeiro Humanismo substitui o termo “nomen” (“nome”, “denominação”), largamente difundido pelo nominalismo, pelo termo “res” (“coisa”, em sentido genérico), ou seja, substituiu o nome pela coisa, a denominação das coisas pela sua essência. É esse o legado de nossa filosofia moderna: qualquer denominação, ou anseio de sistematização, servirá para nos lembrar que toda catalogação é um fim em si mesma. Nesse sentido, A Memória das Coisas está afinado com as agruras e anseios de revitalização do homem, por parte de um lado da nossa modernidade.

        

E as coisas, ou objetos não compreendidos, porém trazidos à memória como entidades ressignificadas, é o segundo tema que destaco no livro, como ponto de convergência (segundo Maria Esther) entre poetas e cineastas, como Drummond, Altino Caixeta, Júlio Bressane, Helvécio Ratton. Com destaque ao livro Lição de Coisas, de Drummond, a autora revela que os objetos do mundo são vistos, pela poesia, como coisas (no amplo sentido da palavra) que, destituídas de sua funcionalidade ou de sua serventia, são deslocadas para um campo afetivo e passional, na ordem de uma memória profundamente subjetiva. É o que parece explicar muito do discurso lírico de O Livro de Zenóbia, volume de ficção também recentemente lançado por Maria Esther, e que investiga a existência poética de uma alma feminina, ao longo de seus mais de 90 anos. As listas supostamente guardadas nos cadernos de Zenóbia (nomes de aves, de cidades raras, de temperos, palavras preferidas e outras coisas) parecem atestar não a ordenação catalográfica de uma vida, mas a desordem angustiante e profundamente sedutora da memória.

        

Por fim, quero lembrar mais uma vez que A Memória das Coisas termina com entrevista de Maria Esther, concedida a Floriano Martins, em que discutem poesia, alteridade, referências teóricas, modernidade e outros temas. De resto, gostaria de me referir a uma frase da própria autora, bem ao fim da entrevista, e que me parece uma das necessidades mais urgentes da crítica no Brasil, sobretudo jornalística, o que serve tanto para os jornais inexpressivos do interior, quanto para os de maior circulação: “Sem crítica não há mobilidade do pensamento. E não se confunda crítica com a desqualificação sumária do outro, com a intolerância. O exercício crítico requer também a responsabilidade ética de entender a lógica do outro, para então colocá-la em crise, evidenciar suas contradições e fragilidades. Algo que precisa ser mais exercitado por nós, intelectuais do presente”.

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DIÁRIO CATARINENSE

A memória no ensaio

Escritora mineira Maria Esther Maciel explora os inventários do mundo em dois novos livros

SÉRGIO MEDEIROS E DIRCE WALTRICK DO AMARANTE *

A ensaísta e prosadora Maria Esther Maciel lançou recentemente, pela Editora Lamparina, do Rio de Janeiro, dois novos livros que revelam a inquietação e a consistência do seu trabalho nas duas áreas de sua atuação. Em A Memória das Coisas (154 páginas), cujo subtítulo é Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, constatamos, já no primeiro ensaio, o que dá título ao volume, uma amostra do evidente prazer de enumerar que certamente é uma das marcas registradas desses textos - "Buscava sua matéria-prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou." O trecho citado refere-se ao artista sergipano Arthur Bispo do Rosário, que viveu quase meio século de sua vida internado num hospital psiquiátrico e que nos legou obras construídas com objetos do cotidiano, fazendo um cuidadoso registro de sua passagem pela terra, segundo o próprio artista.

A curiosa relação entre a subjetividade e os objetos, revelada em obras oriundas da literatura, do cinema e das artes plásticas, como as de Borges, Greenaway e Duchamp, entre outros, obras que são catálogos, enumerações, assemblages pessoais e inconfundíveis, ganha esclarecedora avaliação nos ensaios de Maria Esther. Mas a ensaísta não se debruçou apenas sobre as "enciclopédias" alheias, não se limitou a discutir a produção de mestres da modernidade e da pós-modernidade, assim como trabalhos de artistas emergentes ou considerados marginais. Ela se lançou também numa aventura totalmente nova: a elaboração de inventários próprios, que deu origem ao seu primeiro livro de ficção, O Livro de Zenóbia (157 páginas). Lendo esse livro, damo-nos conta do modo criativo com que Maria Esther explora, já não mais como ensaísta, mas como prosadora, seu gosto pelas taxonomias, pelas enumerações, pelos inventários...

Herdeira de Zenóbia (filha de Zeus e da Memória, possibilidade sugerida por Donaldo Schüler, no posfácio), que deixou ao mundo "a memória das coisas", Maria Esther organiza no seu livro de ficção os bens da personagem, oferecendo ao leitor, por exemplo, uma coleção de receitas caseiras, sendo que cada uma é também uma pequena lista, uma mínima "enciclopédia" de ingredientes e sentimentos. O mais importante nesses textos talvez seja um ou outro pequeno gesto da cozinheira, gestos inscritos na receita, gestos que acrescentam uma pitada de "magia" (à falta de palavra melhor e menos comprometedora): "Sirva aos convidados com o prazer de quem alimenta um pássaro". Outros exemplos: "Agora, o segredo: pamonha boa é feita com desejo"; "E uma última dica: ao tomar uma xícara de café com cardamomo, deixe que sua boca delire".

Essas receitas - "Em dezessete minutos pode-se preparar um espaguete ao molho de três ervas. Prato que - como se sabe - condiz com os dias felizes e as horas ternas" - revelam o universo em que se move Zenóbia, mas também (não) disfarçam algo crucial, a sua solidão, o seu banquete ainda expectante ou vazio (o tempo parece ter destruído tudo, só restou uma memória das coisas e das pessoas): é uma mulher sem amigas (estas partiram, talvez em busca de um destino mais urbano do que o seu ou porque a vida assim o quis) e sem grandes amores (o erotismo surge tímido e quase anulado pela delicada cumplicidade com o outro), mas que, a julgar por suas receitas, possui, sim, o segredo da sedução. Zenóbia, mulher solitária, mas não, necessariamente, amargurada, busca seduzir o leitor, manuseando com destreza certas palavras, certas sílabas, com as quais compõe receitas e outros textos, crivados, muitas vezes, de aforismos, como os citados no final do parágrafo anterior. O uso dos adjetivos, em particular, ganha especial relevo, conferindo à sua frase, muitas vezes, uma informação imprevista, poética: "Plantas de raízes drásticas..."; "... todas as plantas de clima ríspido"; "Os olhos, sob as lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone."

Poderíamos citar também as aliterações, as assonâncias, a distribuição cuidadosa dos acentos... "Não tinha medo de ficar sozinha e sua sina era ser sóbria, de uma elegância quase tímida."

O livro começa com um cinematográfico álbum de retratos (coleção de diferentes momentos de uma vida transformada pelo tempo, tempo que se escoa acelerado e implacável diante de nós), mas, aos poucos, a memória familiar vai adquirindo outro tom, inclusive mais febril, às vezes até alucinatório, abrindo espaço a novas experiências (a loucura, a morte). Sob esse aspecto, são particularmente marcantes as avós de Zenóbia, avós falsas e verdadeiras (uma verdadeira coleção delas!), simpáticas, maldosas, companheiras, inimigas. Não há nada no livro que se lhes compare. As crianças, os bichos, os homens empalidecem ao lado das avós, que são fadas e bruxas, guiando ou assustando a jovem Zenóbia, que por elas ficará marcada para sempre. Parece-nos que Zenóbia não viveu intensamente a figura do pai, mas a da avó, ou avós - no seu livro, elas são múltiplas e variadas (a própria Zenóbia parece se desdobrar em várias avós, ou numa mesma avó em diferentes estágios de velhice, no álbum de retratos que inicia o livro). Não por acaso, uma delas "era quitandeira (sic) de mão-cheia" e introduziu Zenóbia nos segredos da sua arte: "Com ela Zenóbia aprendeu os mistérios da broa de milho sem farinha de trigo e do pudim de leite com rapadura; compartilhou cada instante de cada uma de todas as gostosuras".

Felizmente, as receitas de Zenóbia são também "composições" (talvez nisso ela tenha ido muito além da sua avó), pequenos textos eufônicos que dialogam, a seu modo, com os memoriais construídos por artistas como Bispo do Rosário ou Jorge Luis Borges, estudados em A Memória das Coisas. Encerremos esta nota, portanto, com uma receita, escolhida ao acaso em O Livro de Zenóbia: "Uma salada de melancia gelada com hortelã e queijo de cabra se faz às onze e vinte da manhã de um dia de muito sol e chuvas esparsas. Dos pedaços de fruta, tire as sementes com um garfo que não seja de plástico, corte-os em cubinhos de dois centímetros, fazendo o mesmo com o queijo fresco. Acomode tudo numa tigela amarela, acrescente treze folhas de erva, duas colheres de caldo de limão-galego e seis colheres de azeite, com pitadas de sal (e, se quiser, de noz-moscada)."

 

Cinco perguntas para Maria Esther Maciel:

 

Pergunta - Você publicou recentemente dois livros: um de ensaios, A Memória das Coisas, e outro de ficção, O Livro de Zenóbia. No primeiro, você discute alguns nomes centrais da modernidade e da pós-modernidade, como Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos e Peter Greenaway; no segundo, você mergulha no universo, por assim dizer, neo-regional, marginal, de uma personagem que optou pela periferia. Como você explicaria essas duas tendências aparentemente opostas?

Maria Esther Maciel -
Não vejo uma distância muito grande entre os dois livros no que tange às escolhas canônicas ou "periféricas". Em A Memória das Coisas abordo uma constelação muito variada de escritores e artistas, que inclui também autores "periféricos" ou "à margem", como o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário e o poeta mineiro, ainda pouco conhecido, Altino Caixeta de Castro. Meus interesses no campo do cinema, por exemplo, vão de Greenaway, passando por Wim Wenders e Jim Jarmursch, a Júlio Bressane e o mineiro Halvécio Ratton, num trânsito entre nacionalidades, localidades e tendências diversas. Meu intento é abordar questões comuns a todos, uni-los através das afinidades pouco óbvias que eles mantêm entre si. Já no que se refere a O Livro de Zenóbia, optei por mergulhar em um universo que não deixa de ser o meu. Resolvi, como diria Tolstoi, cantar minha aldeia e, dessa forma, cantar o mundo. Zenóbia é uma personagem do interior, que vive as miudezas de seu cotidiano mais prosaico e busca extrair disso pequenas epifanias e assombros. Mas o fato de viver em uma cidade "periférica" não a impede de freqüentar, através da leitura, autores universais, como Sófocles, Kierkegaard, Kafka, Dostoievski, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral, dentre outros. Basta dar uma olhada na lista de seus livros de cabeceira. Ela é uma mulher de gosto refinado, mas que não abre mão do legado provinciano que recebeu e que faz parte de sua formação. E talvez nesse legado esteja a sua maior solidez.

Pergunta - As lembranças da protagonista d'O Livro de Zenóbia encerram ensinamentos que parecem similares à tradicional e antiguíssima "moral da fábula": "descobriu que no óbvio estava o segredo da vida", "descobriu (...) que há coisas (e pessoas) que não se deixam nunca", ou, conforme se lê numa receita, que a melhor pamonha é " aquela feita com desejo". Zenóbia, filha de Zeus e de Memória, não seria também filha de Esopo?

Maria Esther -
Não sei se de Esopo. Talvez de Epicuro, Sêneca, Pascal, Cioran, enfim, os filósofos da tradição aforística. Sempre gostei de aforismos e quis aproveitar esse gênero "menor" no livro, mesclando-o a outros, como o da narrativa e o da poesia. Nesse meu gosto pelo pensamento-frase vejo também os influxos dos velhos chavões das avós sábias de minha terra natal. Quando criança, eu ficava fascinada com as frases de sabedoria dessas mulheres. Elas tinham algo daquele narrador benjaminiano que sabia extrair ensinamentos da experiência e passá-los a outras gerações. Suas frases eram verdadeiros insights poéticos. E achei que isso combinava com o universo de Zenóbia. Por outro lado, se lermos atentamente certos escritores modernos e contemporâneos, como Clarice, Drummond, J. M. Coetzee, Alberto Caeiro, Maria Gabriela Llansol, Guimarães Rosa e até mesmo o Borges poeta, encontraremos, fartamente, essas frases poéticas de sabedoria. Inspirei-me muito nesses autores para construir algumas das falas de minha personagem.

Pergunta - Uma miscelânea de formas literárias e não-literárias, que vão dos textos convencionais até os mais experimentais (como as enumerações), passando ainda pelo grau zero do estilo, compõe a memória de Zenóbia. Poderia falar um pouco dessas lembranças que também são exercícios de estilo?

Maria Esther -
Eu quis e não quis, ao mesmo tempo, escrever um romance em torno da vida de Zenóbia. Quis contar sua história, descrever cenas de seu dia-a-dia, construir retratos das pessoas com quem se relacionou, como todo romancista faz. Mas preferi fazer isso por vias transversas: ao invés de me valer do fluxo contínuo, da sucessividade temporal, procurei me ater aos ritmos e texturas da memória, com seus fragmentos de imagens, sensações, reminiscências, cortes e dizeres breves. Nesse sentido, tive que explorar os recursos da poesia e do cinema, que estão mais próximos dessa linguagem. E permitir-me, assim, uma certa experimentação. Fiquei muito atenta à sonoridade interna das palavras na construção de todas as frases de todos os "capítulos", além de procurar sempre explorar sinestesias e imagens concentradas, bem visuais. Mas ao contrário da prosa de invenção, tipo joyciana, não prescindi da clareza do dizer, da referencialidade. Já as listas e enumerações vêm a título de homenagem à escritora japonesa Sei Shonagon, a Borges e a Greenaway, autores afeitos ao uso das listas como forma alternativa de narratividade. Elas têm a ver também com o tecido precário, seletivo e insuficiente da memória. E contêm algo lúdico, infantil, até mesmo ingênuo. Aliás, a ingenuidade me fascina pelo que tem de desprendimento, de singeleza. As coisas singelas são, muitas vezes, desconcertantes. E aliadas a um certo experimentalismo, então, entram no espaço do insólito. Foi isso que persegui o tempo todo com minhas listas: aliar o ingênuo ao experimental, o lúdico ao rigor quase matemático. Acho que o livro todo é um pouco disso também.

Pergunta - Sua ficção parece apostar mais na força das minúcias do que da aventura. O que é a minúcia para você?

Maria Esther -
Borges, em um breve texto intitulado Del pudor de la historia, mostra que os acontecimentos secretos, que não tiveram espaço nos livros de história, foram aqueles que realmente incidiram nos rumos da história de um povo, de uma sociedade. Da mesma forma, penso que os eventos mais corriqueiros, as miudezas, as circunstâncias particulares delineiam muito mais a vida de uma pessoa do que as experiências estrondosas, as peripécias, os grandes acontecimentos. Daí eu ter optado, nesse livro, pelas minúcias, pelos detalhes da vida de Zenóbia. Gosto da falta de ênfase, do falar baixo, do quase cochicho. Meu livro é feito de cochichos. No duplo sentido: enquanto fala em voz baixa e enquanto fuxico, enredo, segredo.

Pergunta - Seus dois livros saíram pela Editora Lamparina, que é nova, mas já possui no catálogo nomes importantes da literatura brasileira mais atual. Você poderia comentar sua relação com o projeto dessa editora?

Maria Esther -
Digo que a Lamparina Editora chegou para iluminar as zonas de sombra do mercado editorial brasileiro, apostando, sobretudo, em autores mais alternativos, pouco conhecidos e, até mesmo, em certos casos, à margem. E busca aliar a isso a recuperação de obras e autores menos óbvios do passado, bem como traduções de livros instigantes da literatura estrangeira. A proposta da editora é estimular a imaginação e a lucidez crítica de seus leitores, sem se render aos chichês do mercado e do academicismo. Tenho a honra de fazer parte do conselho editorial da Lamparina e de acompanhar de perto a constituição de seu catálogo. Muita coisa boa está por vir por aí neste e no próximo ano.

*

*Sérgio Medeiros é autor de Mais ou Menos do que Dois (2001) e professor de Literatura na UFSC, onde atualmente ministra um curso sobre Beckett e Qorpo-Santo; Dirce Waltrick do Amarante é doutoranda na UFSC e estudiosa da obra de James Joyce e Edward Lear

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PENSAR – Correio Braziliense (31/07/2004) / Estado de Minas (07/08/2004)


Caminhos da arte total

 

SÉRGIO DE SÁ

 

 

 

Zenóbia não é personagem do filme Alta Fidelidade

mas adora listas. De "peixes perplexos", de "cidades

raras", de "ervas daninhas", de "livros de cabeceira". A

criadora de Zenóbia, Maria Esther Maciel, garante

não ser muito boa em ordenar coisas. "Listas são limitadas,

excludentes e insuficientes". Ainda assim, arrisca

dizer que os cinco artistas que mais admira são

Leonardo da Vinci, Vermeer, Arthur Bispo do Rosário,

Peter Greenaway e Keith Jarrett. Mas poderiam ser

também Paul Klee, J.S. Bach, M.C. Escher, Lygia Clark

e Élida Tessler. Isso, sem incluir os escritores.

É bem provável que Greenaway ficasse em primeiro

lugar numa classificação imaginária. Do contrário,

Maria Esther não teria feito pós-doutorado em Londres

sobre o diretor de A Barriga do Arquiteto e O Livro

de Cabeceira. Do contrário, também não teria organizado

livro de textos sobre o cineasta, O Cinema

Enciclopédico de Peter Greenaway, e tampouco teria

dedicado vários ensaios a ele em A Memória das Coisas,

ambos publicados há pouco.

Além desses dois títulos, a lista das obras de Maria Esther

Maciel, professora da Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) e poeta de mão-cheia, acaba de

ganhar a prosa tão enxuta quanto impactante de O

Livro de Zenóbia, aquela que gosta de elencar esquisitices.

Sobre ela, sobre saberes múltiplos e, em especial,

sobre Greenaway, gira o papo que se lê a seguir.

 

 

Três livros de uma tacada. Organização, ficção, ensaística. E a inevitável visibilidade midiática. É muita coisa de uma vez só para uma mineira?

 

Maria Esther Maciel – Dizem que os mineiros trabalham

em surdina. Vim elaborando esses livros ao longo dos

últimos três anos, sem alarde. O primeiro a ficar pronto

foi O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway, que

permaneceu na editora por mais de um ano. Fechei A

Memória das Coisas em agosto do ano passado, e O Livro

de Zenóbia, iniciado há dois anos, só ganhou impulso

a partir de janeiro. Por coincidência, os três saíram simultaneamente,

o que deu margem para se pensar que

preparei os três de uma vez só, em ritmo voraz. Mas,

não. Foi tudo construído aos poucos, de acordo com as

demandas internas e externas. Se, por um lado, publicar

os três juntos trouxe um certo desconforto, por outro,

creio que isso acabou por ser interessante, pois acho que

um livro completa, de certa forma, o outro. Eles compõem

uma tríade coerente com as minhas inquietações

dos últimos anos. Sei que agora entrarei em um momento

de elaboração silenciosa do que possivelmente

virá (ou não) nos próximos anos.

 

Zenóbia parece personagem de um romance clássico.

Tem força descomunal, mas é apresentada ao leitor em

fragmentos. A diluição do narrador é proposital?

 

MEM – Sempre considerei que o maior desafio para um

escritor que se aventura na escrita de um romance é

construir suas personagens, dar a elas não apenas um

nome, um rosto, uma identidade civil, mas também

uma vida que, por mais ficcional que seja, possa trazer

uma espécie de realidade intrínseca. Os autores clássicos

se esmeraram nesse trabalho e chegaram a criar personagens

maiores do que a própria trama que as envolve.

Isso sempre me fascinou. Por outro lado, não sou

muito afeita ao modelo realista de narrativa, pautado

nos princípios da sucessividade temporal. Eu queria

construir uma personagem convincente, mas que fosse

sendo constituída através de traços, reminiscências,

imagens, sensações do narrador e de outras personagens.

Zenóbia, ao contrário das personagens clássicas,

não se apresenta inteira, completa, bastante: ela vai surgindo

aos fragmentos, no ritmo esgarçado da memória

dos que conviveram com ela, dos que souberam (ou

imaginaram) algo de sua vida. Se tem alguma força, ela

se deve à soma de seus gestos, pensamentos, palavras,

atitudes, desejos. Seu cotidiano é feito de miudezas, de

coisas banais. E ela busca extrair disso pequenas epifanias

e assombros.

 

Há uma clara vontade de recuperação de lirismo, não?

Como se a realidade estivesse esgotada em vários sentidos, principalmente como norte da literatura brasileira...

 

MEM - Ando meio cansada do realismo exacerbado que

tomou conta da literatura brasileira contemporânea. E

avessa ao formalismo asséptico, desvitalizado, que ainda

predomina em boa parte da poesia que se faz hoje no

Brasil. Em O Livro de Zenóbia tentei, sim, recuperar um

certo lirismo, mas que não exclui, necessariamente, o

traço irônico, a dimensão trágica e o humor sutil. Tendo

cada vez mais ao exercício de uma escrita livre de coerções

temáticas e formais, busco me desvencilhar da tirania

da metalinguagem e da intertextualidade explícita

- práticas já exauridas, debilitadas - e buscar outras

possibilidades estéticas para o meu trabalho. Abrir-me

às impurezas da experiência, à força do trágico e ao êxtase

do sublime. Não renegar o prosaico nem sucumbir

ao realismo. Apostar na delicadeza como um antídoto

contra a truculência do mundo, da realidade.

 

Jorge Luis Borges é de fato a melhor conexão da literatura com o cinema de Peter Greenaway?

 

MEM – Costumo dizer que, para quem assiste a um filme

como O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante,

ou O Livro de Cabeceira, sem um prévio conhecimento

de outros trabalhos de Peter Greenaway, é quase impossível

aceitar uma associação entre ele e Borges. Onde

estariam, no escritor argentino, a escatologia, o erotismo

explícito, o transbordamento barroco, o delírio visual?

Mas se atentarmos para certas estratégias ficcionais

desses e outros filmes de Greenaway, veremos que

as afinidades são muitas: o apreço pelos embustes autorais

(sobretudo nos pseudodocumentários do diretor),

o olhar enciclopédico sobre o mundo, o exercício das taxonomias

insólitas, o gosto pelo artifício e pelas simetrias,

a profusão de referências eruditas, a concepção do

universo como uma biblioteca de babel. Talvez o filme

de Greenaway mais borgiano seja A Última Tempestade.

Trato disso com detalhes em um dos ensaios do livro

A Memória das Coisas. Mas além de Borges, outros

escritores são referências importantes para o cinema

greenawayno, como James Joyce, Lewis Carroll, Italo Calvino,

Georges Perec, Dante e Shakespeare. Mas menos

sob a perspectiva dos temas e dos enredos do que sob a

perspectiva da linguagem e dos procedimentos poéticos

e ficcionais.

 

O que você diria para convencer alguém de que vale a pena

ver e conhecer Greenaway?

 

MEM – Greenaway é um dos poucos cineastas contemporâneos

que ainda ousam na experimentação de novas

formas e linguagens, sem que isso signifique uma

recusa do passado. Ele leva o cinema a transbordar de

seus próprios limites, a expandir-se para além da tela.

Sua erudição criativa possibilita-lhe trazer para um mesmo

topos o legado cultural de diferentes tradições – entre

elas, a do renascimento e a do barrroco –, as experimentações

da vanguarda, as inovações tecnológicas e as

referências culturais do presente. Transita, com desenvoltura,

em vários campos do saber, sejam eles os da literatura

e das artes em geral, sejam os da culinária, da

arquitetura, da moda, da zoologia e da anatomia. E não

se furta a explorar o estranho, o escatológico e o insólito.

Além disso, não faz concessões aos imperativos da indústria

cinematográfica e assume uma postura extremamente

irônica perante o culto contemporâneo do chamado

"politicamente correto". É ainda um crítico dos sistemas

de organização e classificação do mundo e do conhecimento.

Um artista completo, que reedita, no contexto

do século XXI, a intrigante e instigante figura do artista/

intelectual transdisciplinar, de feição renascentista.

 

O intelectual não pode mais ficar parado no mundo contemporâneo?

 

MEM – Vivemos, hoje, sob o signo da multiplicidade, da

confluência entre as artes e os campos disciplinares. Cabe

ao intelectual contemporâneo estar atento a isso. A

especialização e a fixidez do conhecimento já não condizem

com as demandas do nosso tempo. O movimento,

o trânsito, a abertura à alteridade são as linhas de força

que nos definem. Greenaway é diretor de ópera, escritor,

pintor, curador. De alguma maneira, ele reedita

essa figura do artista renascentista. Algo que tem a ver

também com a idéia de Arte Total, de Wagner. Ele tenta

reconstituir essa figura para mostrar que o cinema tem

que se abrir para essas outras linguagens, que as artes e

os campos de saber estão aí também para serem mesclados,

conjugados. Além disso, aposta na idéia de que

uma das formas de se revitalizar o cinema é buscar os

recursos que as outras artes podem oferecer.

 

Qual filme dele é seu preferido e por quê?

 

MEM – É difícil dizer qual é o meu preferido. Talvez seja O

Livro de Cabeceira, por ser o mais poético. Nele, erotismo

e escrita se entrelaçam de forma magnífica. A tela se

transforma em várias ao mesmo tempo, graças aos inventivos

experimentos tecnológicos usados ao longo de

todo o filme. Sucessão e simultaneidade se mesclam na

narrativa. E o mais interessante é que a obra literária que

lhe serve de referência não é um livro com trama e enredo,

mas o diário de uma poeta japonesa do século X, Sei

Shonagon, cheio de listas e apontamentos sobre coisas

da natureza e trivialidades da corte. Greenaway inventa

um enredo para o filme e busca no livro de Shonagon a

atmosfera, a linguagem, as listas e as imagens. Compõe

um filme de grande poder de sedução visual, que inverte

os procedimentos tradicionais da adaptação.

 

Greenaway é um escritor legível?

 

MEM – Por incrível que pareça, não é um escritor barroco

ou experimental. Seus textos são límpidos e escorreitos.

A maioria é de narrativas curtas, que trazem

histórias prosaicas, mas o tempo todo assaltadas pelo

insólito, pelo nonsense. Têm humor e ironia. Inteiramente

legíveis e digeríveis. O mesmo se pode dizer de

seus ensaios.

 

 

 

 

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