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 Resenhas do livro O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway

(org.) Maria Esther Maciel

 

Alécio Cunha

Sérgio de Sá (entrevista)

 

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          JORNAL HOJE EM DIA

         Belo Horizonte, MG,  Domingo 23/05/2004

       

        Ensaios focam o polêmico Peter Greenaway


Alécio Cunha
 

Ensaísta, ficcionista, poeta, professora da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a mineira Maria Esther Maciel possui um trabalho de raro fôlego intelectual, desdobrando-se na pluralidade de suas áreas de atuação. Dois frutos de sua intensa produção chegam às livrarias com um elemento em comum: o gosto pela taxonomia, pelos sistemas de classificação que envolvem inúmeras esferas artísticas numa ação essencialmente pluridisciplinar.

“O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway", organizado por Maria Esther, publicação da editora Unimarco, de São Paulo (SP), reúne uma série de ensaios sobre o polêmico cineasta galês, criador de pequenas obras-primas como “O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante", “O Contrato do Amor", “O Bebê Santo de Macon" e “O Livro de Cabeceira".

Além de Maria Esther, participam do livro os professores e ensaístas Ivana Bentes, Evando Nascimento, Magali Arriola, Cristiano Florentino, Susana Dobal, Jair Tadeu da Fonseca, Maria Dora Mourão, Yvana Fechine, Lúcia Castello Branco, Elisa Arreguy Maia e Wilton Garcia. Um dos principais destaques da edição é uma rara entrevista de Greenaway, concedida à professora Maria Dora Mourão.

O livro sobre Greenaway é fruto de um seminário realizado em junho de 2002 na Faculdade de Letras da UFMG. Na ocasião, foram discutidas diversas formas de entrada ao universo labiríntico do diretor, que extrapola e transcende a própria linguagem cinematográfica, apostando num sistema híbrido e anfíbio que revela a sua multiplicidade.
Além de filmes, Peter realiza vídeos, óperas, exposições, CD-Roms, incursões na fotografia e na arte digital, ajustando um amálgama de conexões.

Maria Esther Maciel defende o conceito de “cinema enciclopédico" para definir o amálgama de Greenaway.
“O modelo enciclopédico possibilita uma multiplicidade aberta, móvel e inesgotável de saberes, mesmo que esteja regido pelas leis taxonômicas e metódicas da organização. E é nesse ponto, em que da ordem se subtrai o limite, visto que tudo pode ser continuamente reordenado de todas as maneiras possíveis, que a enciclopédia tem instigado a imaginação de artistas, escritores e teóricos contemporâneos.

A ensaísta recorre a Umberto Eco e seu conceito de semiose ilimitada da enciclopédia. “Ele chegou a compará-la ao labirinto em forma de rede, no qual cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto. Segundo ele, a enciclopédia, ao contrário do que se pensa, não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado, mas fornece regras, em geral míopes, para que segundo algum critério provisório de ordem, se busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam", assinala.

Desafio irônico ao moralismo

Para Maria Esther, designar o cinema de Peter Greenaway como enciclopédico é reconhecê-lo como uma rede de saberes, linguagens, suportes, metáforas, alegorias, intertextos, organizada a partir de princípios de ordem rigorosos, provisórios e arbitrários, que tentam dar conta de um mundo desordenado e cada vez mais absurdo.

Dessa maneira, o cinema de Peter abre um espaço literalmente pluridisciplinar, com a entrada em cena de elementos de história da arte, culinária, literatura, música, arquitetura, cartografia, mitologia, cultura eletrônica, teatro, dança, zoologia, botânica, paisagismo, psicanálise, história, caligrafia, engenharia hidráulica, aeronáutica, geometria, astronomia, filosofia e (ufa!) anatomia.

“Ao longo de mais de 30 anos de trajetória artístico-intelectual, Greenaway nunca deixou de buscar em outras artes e nas novas tecnologias audiovisuais formas alternativas para a linguagem de seus filmes. Polêmico e provocador, seus temas desafiam por vias irônicas e insólitas o moralismo e as verdades instituídas de todos os tempos", afirma.
“Sua erudição criativa possibilita-lhe trazer para um mesmo topo o legado cultural de diferentes tradições, como o imaginário renascentista e barroco, as inquietações da vanguarda e a experiência mais radical do presente, bem como conjugar referências eruditas extraídas da alta cultura com procedimentos próprios da cultura tecnológica", afirma.
A ensaísta ressalta que, como artista plástico, Peter Greenaway vem construindo uma obra de muitos matizes, dedicando-se também a curadorias e concepções de óperas e espetáculos multimídia. Atualmente morando em Amsterdam, na Holanda, o artista é um enigma deliciosamente decifrado no livro organizado pela professora mineira.

“Diante da complexidade da vasta obra do artista, que faz de seu cinema uma verdadeira ars combinatoria, há que se ter também um olhar enciclopédico. É isto que este livro se propõe: tratar os filmes, óperas, trabalhos de artes plásticas, textos literários e instalações a partir de uma perspectiva aberta, conjetural, multíplice e transdisciplinar. Daí que os colecionadores advenham de áreas distintas e enfoquem, sob perspectivas diferenciadas, a obra do diretor, sem qualquer intento de confiná-la a um topo teórico definitivo", assinala Maria Esther. Trocando em miúdos: amante das classificações, Greenaway é inclassificável.

Leituras sempre instigantes

Peter Greenaway aparece com destaque também no outro livro da ensaísta, publicado pela recém-criada editora Lamparina, do Rio de Janeiro (RJ). “A Memória das Coisas", cujo próprio título já evoca a paixão da autora pelo uso criativo dos sistemas de classificação do mundo, agrupa ensaios sobre cinema, literatura e artes plásticas, enfocando nomes como os escritores Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade e Georges Perec, cineastas como Júlio Bressane e artistas plásticos como Arthur Bispo do Rosário.

Nos ensaios de “A Memória das Coisas" a professora discute as conexões existentes entre as obras dos cineastas Júlio Bressane e Peter Greenaway e o poeta e ensaísta Haroldo de Campos, falecido no ano passado. Analisa também a adaptação da novela “Alves e Cia", do português Eça de Queirós, transmutada em “Amor e Cia", no filme do cineasta mineiro Helvécio Ratton, estrelado por Marco Nanini, Alexandre Borges e Patrícia Pillar.

Dois outros autores merecem destaque nas leituras sempre instigantes de Maria Esther. Mineira de Patos de Minas, ela analisa a obra do conterrâneo Altino Caixeta de Castro, um poeta que merecia ser reconhecido em todo o país pela sua verve única. Assim como Peter Greenaway, o poeta é autor de versos inclassificáveis. O outro foco analítico da autora é a ficcionista e poeta portuguesa Maria Gabriela Llansol, dona de um estilo fulgurante.

“O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway" - De Maria Esther Maciel. Editora Unimarco, 215 páginas, R$ 25. “A Memória das Coisas". De Maria Esther Maciel. Editora Lamparina, 154 páginas, R$ 22
 

 

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PENSAR – Correio Braziliense (31/07/2004) / Estado de Minas (07/08/2004)


Caminhos da arte total

Professora de literatura da UFMG, escritora e especialista na obra de Peter Greenaway, Maria Esther Maciel lança livros de ficção e ensaios

SÉRGIO DE SÁ

 

 

 

Zenóbia não é personagem do filme Alta Fidelidade

mas adora listas. De "peixes perplexos", de "cidades

raras", de "ervas daninhas", de "livros de cabeceira". A

criadora de Zenóbia, Maria Esther Maciel, garante

não ser muito boa em ordenar coisas. "Listas são limitadas,

excludentes e insuficientes". Ainda assim, arrisca

dizer que os cinco artistas que mais admira são

Leonardo da Vinci, Vermeer, Arthur Bispo do Rosário,

Peter Greenaway e Keith Jarrett. Mas poderiam ser

também Paul Klee, J.S. Bach, M.C. Escher, Lygia Clark

e Élida Tessler. Isso, sem incluir os escritores.

É bem provável que Greenaway ficasse em primeiro

lugar numa classificação imaginária. Do contrário,

Maria Esther não teria feito pós-doutorado em Londres

sobre o diretor de A Barriga do Arquiteto e O Livro

de Cabeceira. Do contrário, também não teria organizado

livro de textos sobre o cineasta, O Cinema

Enciclopédico de Peter Greenaway, e tampouco teria

dedicado vários ensaios a ele em A Memória das Coisas,

ambos publicados há pouco.

Além desses dois títulos, a lista das obras de Maria Esther

Maciel, professora da Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG) e poeta de mão-cheia, acaba de

ganhar a prosa tão enxuta quanto impactante de O

Livro de Zenóbia, aquela que gosta de elencar esquisitices.

Sobre ela, sobre saberes múltiplos e, em especial,

sobre Greenaway, gira o papo que se lê a seguir.

 

 

Três livros de uma tacada. Organização, ficção, ensaística. E a inevitável visibilidade midiática. É muita coisa de uma vez só para uma mineira?

 

Maria Esther Maciel – Dizem que os mineiros trabalham

em surdina. Vim elaborando esses livros ao longo dos

últimos três anos, sem alarde. O primeiro a ficar pronto

foi O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway, que

permaneceu na editora por mais de um ano. Fechei A

Memória das Coisas em agosto do ano passado, e O Livro

de Zenóbia, iniciado há dois anos, só ganhou impulso

a partir de janeiro. Por coincidência, os três saíram simultaneamente,

o que deu margem para se pensar que

preparei os três de uma vez só, em ritmo voraz. Mas,

não. Foi tudo construído aos poucos, de acordo com as

demandas internas e externas. Se, por um lado, publicar

os três juntos trouxe um certo desconforto, por outro,

creio que isso acabou por ser interessante, pois acho que

um livro completa, de certa forma, o outro. Eles compõem

uma tríade coerente com as minhas inquietações

dos últimos anos. Sei que agora entrarei em um momento

de elaboração silenciosa do que possivelmente

virá (ou não) nos próximos anos.

 

Zenóbia parece personagem de um romance clássico.

Tem força descomunal, mas é apresentada ao leitor em

fragmentos. A diluição do narrador é proposital?

 

MEM – Sempre considerei que o maior desafio para um

escritor que se aventura na escrita de um romance é

construir suas personagens, dar a elas não apenas um

nome, um rosto, uma identidade civil, mas também

uma vida que, por mais ficcional que seja, possa trazer

uma espécie de realidade intrínseca. Os autores clássicos

se esmeraram nesse trabalho e chegaram a criar personagens

maiores do que a própria trama que as envolve.

Isso sempre me fascinou. Por outro lado, não sou

muito afeita ao modelo realista de narrativa, pautado

nos princípios da sucessividade temporal. Eu queria

construir uma personagem convincente, mas que fosse

sendo constituída através de traços, reminiscências,

imagens, sensações do narrador e de outras personagens.

Zenóbia, ao contrário das personagens clássicas,

não se apresenta inteira, completa, bastante: ela vai surgindo

aos fragmentos, no ritmo esgarçado da memória

dos que conviveram com ela, dos que souberam (ou

imaginaram) algo de sua vida. Se tem alguma força, ela

se deve à soma de seus gestos, pensamentos, palavras,

atitudes, desejos. Seu cotidiano é feito de miudezas, de

coisas banais. E ela busca extrair disso pequenas epifanias

e assombros.

 

Há uma clara vontade de recuperação de lirismo, não?

Como se a realidade estivesse esgotada em vários sentidos, principalmente como norte da literatura brasileira...

 

MEM - Ando meio cansada do realismo exacerbado que

tomou conta da literatura brasileira contemporânea. E

avessa ao formalismo asséptico, desvitalizado, que ainda

predomina em boa parte da poesia que se faz hoje no

Brasil. Em O Livro de Zenóbia tentei, sim, recuperar um

certo lirismo, mas que não exclui, necessariamente, o

traço irônico, a dimensão trágica e o humor sutil. Tendo

cada vez mais ao exercício de uma escrita livre de coerções

temáticas e formais, busco me desvencilhar da tirania

da metalinguagem e da intertextualidade explícita

- práticas já exauridas, debilitadas - e buscar outras

possibilidades estéticas para o meu trabalho. Abrir-me

às impurezas da experiência, à força do trágico e ao êxtase

do sublime. Não renegar o prosaico nem sucumbir

ao realismo. Apostar na delicadeza como um antídoto

contra a truculência do mundo, da realidade.

 

Jorge Luis Borges é de fato a melhor conexão da literatura com o cinema de Peter Greenaway?

 

MEM – Costumo dizer que, para quem assiste a um filme

como O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante,

ou O Livro de Cabeceira, sem um prévio conhecimento

de outros trabalhos de Peter Greenaway, é quase impossível

aceitar uma associação entre ele e Borges. Onde

estariam, no escritor argentino, a escatologia, o erotismo

explícito, o transbordamento barroco, o delírio visual?

Mas se atentarmos para certas estratégias ficcionais

desses e outros filmes de Greenaway, veremos que

as afinidades são muitas: o apreço pelos embustes autorais

(sobretudo nos pseudodocumentários do diretor),

o olhar enciclopédico sobre o mundo, o exercício das taxonomias

insólitas, o gosto pelo artifício e pelas simetrias,

a profusão de referências eruditas, a concepção do

universo como uma biblioteca de babel. Talvez o filme

de Greenaway mais borgiano seja A Última Tempestade.

Trato disso com detalhes em um dos ensaios do livro

A Memória das Coisas. Mas além de Borges, outros

escritores são referências importantes para o cinema

greenawayno, como James Joyce, Lewis Carroll, Italo Calvino,

Georges Perec, Dante e Shakespeare. Mas menos

sob a perspectiva dos temas e dos enredos do que sob a

perspectiva da linguagem e dos procedimentos poéticos

e ficcionais.

 

O que você diria para convencer alguém de que vale a pena

ver e conhecer Greenaway?

 

MEM – Greenaway é um dos poucos cineastas contemporâneos

que ainda ousam na experimentação de novas

formas e linguagens, sem que isso signifique uma

recusa do passado. Ele leva o cinema a transbordar de

seus próprios limites, a expandir-se para além da tela.

Sua erudição criativa possibilita-lhe trazer para um mesmo

topos o legado cultural de diferentes tradições – entre

elas, a do renascimento e a do barrroco –, as experimentações

da vanguarda, as inovações tecnológicas e as

referências culturais do presente. Transita, com desenvoltura,

em vários campos do saber, sejam eles os da literatura

e das artes em geral, sejam os da culinária, da

arquitetura, da moda, da zoologia e da anatomia. E não

se furta a explorar o estranho, o escatológico e o insólito.

Além disso, não faz concessões aos imperativos da indústria

cinematográfica e assume uma postura extremamente

irônica perante o culto contemporâneo do chamado

"politicamente correto". É ainda um crítico dos sistemas

de organização e classificação do mundo e do conhecimento.

Um artista completo, que reedita, no contexto

do século XXI, a intrigante e instigante figura do artista/

intelectual transdisciplinar, de feição renascentista.

 

O intelectual não pode mais ficar parado no mundo contemporâneo?

 

MEM – Vivemos, hoje, sob o signo da multiplicidade, da

confluência entre as artes e os campos disciplinares. Cabe

ao intelectual contemporâneo estar atento a isso. A

especialização e a fixidez do conhecimento já não condizem

com as demandas do nosso tempo. O movimento,

o trânsito, a abertura à alteridade são as linhas de força

que nos definem. Greenaway é diretor de ópera, escritor,

pintor, curador. De alguma maneira, ele reedita

essa figura do artista renascentista. Algo que tem a ver

também com a idéia de Arte Total, de Wagner. Ele tenta

reconstituir essa figura para mostrar que o cinema tem

que se abrir para essas outras linguagens, que as artes e

os campos de saber estão aí também para serem mesclados,

conjugados. Além disso, aposta na idéia de que

uma das formas de se revitalizar o cinema é buscar os

recursos que as outras artes podem oferecer.

 

Qual filme dele é seu preferido e por quê?

 

MEM – É difícil dizer qual é o meu preferido. Talvez seja O

Livro de Cabeceira, por ser o mais poético. Nele, erotismo

e escrita se entrelaçam de forma magnífica. A tela se

transforma em várias ao mesmo tempo, graças aos inventivos

experimentos tecnológicos usados ao longo de

todo o filme. Sucessão e simultaneidade se mesclam na

narrativa. E o mais interessante é que a obra literária que

lhe serve de referência não é um livro com trama e enredo,

mas o diário de uma poeta japonesa do século X, Sei

Shonagon, cheio de listas e apontamentos sobre coisas

da natureza e trivialidades da corte. Greenaway inventa

um enredo para o filme e busca no livro de Shonagon a

atmosfera, a linguagem, as listas e as imagens. Compõe

um filme de grande poder de sedução visual, que inverte

os procedimentos tradicionais da adaptação.

 

Greenaway é um escritor legível?

 

MEM – Por incrível que pareça, não é um escritor barroco

ou experimental. Seus textos são límpidos e escorreitos.

A maioria é de narrativas curtas, que trazem

histórias prosaicas, mas o tempo todo assaltadas pelo

insólito, pelo nonsense. Têm humor e ironia. Inteiramente

legíveis e digeríveis. O mesmo se pode dizer de

seus ensaios.

 

 

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