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                                                                          Sábado, 07 de agosto de 2010


 

Rigor e delírio

Estudos de Maria Esther Maciel investigam tendência à ordenação

presente na literatura, artes visuais e cinema

 

Eduardo Jorge

 

 

O gesto de classificar guardaria uma tentativa de esgotar um objeto, um assunto ou ambos, objeto e assunto esgotariam aquele que classifica? Essa é uma questão que fica diante das páginas iniciais de As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais, de Maria Esther Maciel. Diante de todas as tentativas de afirmar e ordenar os saberes, seja em disciplinas ou em pastas e arquivos, o que fica de mais intenso é uma das epígrafes do livro, a do escritor francês Georges Perec, “O que não está ordenado de um modo definitivamente provisório o está de modo provisoriamente definitivo”. Assim, a ironia de Perec mescla-se com a clareza da investigação da escritora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais.

Sob esse prisma, as classificações mais suspeitas são levadas aos seus limites, aos seus confins. Arthur Bispo do Rosário partilha de uma “epopéia da matéria” com as pranchas da Enciclopédia Francesa no que diz respeito às formas de inventariar objetos de uso cotidiano e as referências ao mundo náutico, pois o artista sergipano ingressou ainda jovem na marinha.

Dante, Borges e Joyce são três singularidades do que Maria Esther intitulou de enciclopédias noturnas. Tais enciclopédias passam pelo inferno, pelo pesadelo e pelo labirinto: taxonomias de autores que transitam “entre o rigor e o delírio”. Nesse aspecto, convém lembrar outro artigo de Maria Esther Maciel, “A poética do inclassificável”, no qual a pesquisadora afirma que, onde falha a classificação, advém a imaginação. Então, no lugar incerto entre a classificação e a imaginação, situam-se esses densos volumes encapados pela escuridão.

E da escuridão avista-se uma imagem. Como o fim de um longo túnel ou dos ciclos dantescos do inferno, essa saída nos leva ao cinema, em que vidas e arquivos estão em constante movimento. De cineastas, o livro traz ensaios sobre Peter Greenaway e seu projeto enciclopédico de criar uma rede para os saberes, movimentando no ambiente fílmico o imaginário Renascentista e Barroco, bem como sobre o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, em cujas produções colecionismo e biografias se mesclam. Assim, como Maria Esther afirmou a partir de Peter Greenaway, o enciclopedismo no mundo contemporâneo possui múltiplas entradas e ramificações imprevisíveis.

A imprevisibilidade do enciclopedismo e dos modos de inventariar o mundo encontra-se, inclusive em Carlos Drummond de Andrade. Neste aspecto, inventariar para Drummond partilha do inventar novas formas poéticas. Como existe uma ambiguidade no gesto de colecionar, Drummond parece levantar essa questão a partir do poema: “Já não coleciono selos. O mundo me inquiliza/ Tem países demais./Desisto”. Mas essa espécie de ética do abandono do colecionador, sem a qual outras coleções não são iniciadas ou reordenadas, é um ethos inerente à escrita do poema, pois quem escreve coleciona, quem escreve e publica, abandona.

É nesse ponto que chegamos ao cerne de As ironias da ordem: quais escritas comportam a escrita? Quantas coleções não há numa coleção? Não é a coleção uma escrita da vida – uma biografia, como o disse Italo Calvino em sua Coleção de areia? Essa escrita contínua da vida não implica na sua constante reinvenção, ou seja, qualquer que seja a ordem, ela sempre está sujeita à falha e às instabilidades da linguagem, que é sua própria vertigem?

Classificações impossíveis Dos arquivos das enciclopédias antigas, Maria Esther Maciel chega aos bestiários contemporâneos. Essa passagem marca as pesquisas de Maria Esther em torno da “zooliteratura”. As ironias da ordem traz uma leitura das “zoocoleções”, ou seja, de livros como os de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, que assinam dois volumes que catalogam animais, Manual de zoología fantástica e O livro dos seres imaginários. Convém ressaltar que um bestiário é um livro que contém as classificações de animais reais e imaginários e que foi abundante em toda a Idade Média, embora tenha raízes na Antiguidade. Neste aspecto, Maria Esther analisa o procedimento de catalogar animais em vários escritores latino-americanos, de Borges aos mais atuais, como o uruguaio Víctor Sosa.

Como a questão da classificação atinge seus limites, As ironias da ordem também atinge o seu enquanto objeto livro. Eis que chegamos ao inclassificável Et cetera. Neste Et Cetera, nos deparamos com uma das mais genéricas classificações da humanidade: Ocidente/Oriente. É em torno dessas constelações que Maria Esther traz à tona mais um de seus arquivos: uma entrevista com Haroldo de Campos. Na introdução da entrevista com o poeta, Maria Esther afirma que “a ocidentalidade da América Latina não se define senão pela via do paradoxo.” Esse paradoxo já foi abordado por Silviano Santigo, que sintetizou que a América Latina é a China, ou seja, um oriente-dentro-do-ocidente.

É esse paradoxo que Maria Esther e Haroldo de Campos exploram na conversa: a inscrição de diferenças na literatura, na qual, segundo Haroldo de Campos, não se poderia afirmar a existência de uma literatura maior ou menor, bem como os aspectos importantes da tradução nos poemas e nas culturas, onde essa tradução é uma interferência não apenas na própria poesia de Haroldo de Campos, como também na de outros poetas. Interferência essa que é um modo de colecionar e de criar novas entradas e saídas para a literatura no Brasil. Interferência que não se esgota
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As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais
De Maria Esther Maciel
Editora UFMG, 160 páginas, R$ 30

Eduardo Jorge é mestre em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais.
                                                                                        

                                                                                                           

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