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POÉTICAS
DO ARTIFÍCIO: BORGES, KIERKEGAARD E PESSOA ¾ Conversa com Lars Olsen ¾ “O maior artifício é disfarçar o
artifício” (Baltasar Gracián) Em agosto de 1996, entrei numa
conhecida livraria da Calle Suipacha, em Buenos Aires, à procura de uma
recém-lançada biografia de Jorge Luis Borges. O livreiro, Alberto Casares,
homem erudito e afeito a assuntos borgianos, depois de atender-me com sua
habitual elegância, apresentou-me ao professor dinamarquês Lars Olsen, que,
por coincidência, lá se encontrava à procura de livros recentes sobre o
escritor argentino. O Sr. Olsen, como informou-me
Casares, além de tradutor dos livros El
Aleph, Ficciones e El libro de
arena para o dinamarquês, lecionava Estética na Universidade de
Copenhague, tendo ainda editado um alentado estudo comparativo sobre Borges e
Kierkegaard. Soube também que aquela era a terceira vez que passava uma
temporada em Buenos Aires, com finalidades de pesquisa. Falando um espanhol claro e pausado,
o professor ¾ que disse ter se
encontrado duas vezes com Borges, no início dos anos 80, no apartamento da
Calle Maipú ¾ fez-me uma
rápida sinopse do trabalho que havia publicado. Fiquei bastante motivada a
conhecer o texto, o que, entretanto, não se consumou, já que o livro havia
sido publicado apenas em dinamarquês. Resolvi, então, diante da receptividade
do professor e com o óbvio propósito de saber mais sobre as suas incursões no
universo borgiano, sondá-lo sobre uma possível entrevista. Embora ele
estivesse com um tempo restrito para finalizar suas pesquisas na cidade,
acatou gentilmente a sugestão, alegando (em tom de brincadeira) que, afinal,
não podia perder aquela rara oportunidade de ver suas idéias divulgadas no
Brasil. Marcamos, portanto, uma conversa para dali a três dias, no hall do hotel onde estava hospedado. Durante a conversa, que durou mais
ou menos três horas, Lars Olsen falou, dentre outros temas, sobre os ardis
ficcionais da obra borgiana, vistos sob o lume dos embustes autorais criados
por Kierkegaard. Discorreu também,
entre idas e vindas, sobre outros adeptos da estética do artifício e da
simulação, como Fernando Pessoa, Maurice Ravel e Valéry Larbaud. *
Como
surgiu a idéia de comparar Jorge Luis Borges a Soren Kierkegaard? Eu
sempre me interessei por armadilhas, embustes, simulações e artifícios em
geral. Cheguei a estudar, instigado pelos breves apontamentos de Gaston
Bachelard sobre o que chama de “tecido
temporal do fingimento”, as várias
funções estéticas da mentira (afinal, como diz Cioran, a mentira não deixa de
ser uma forma de talento). Foi quando me detive, com mais cuidado, nos
escritos de Kierkegaard, um filósofo extremamente astucioso que, explorando
criativamente as potencialidades da ironia romântica, compôs uma obra
complexa, avessa à idéia de sistema e fundada no jogo entre pensamento e
imaginação, verdade e mentira, religiosidade e ficção. Pode-se dizer que, ao
criar vários pseudônimos (ou, eu até mesmo diria, semi-heterônimos) para seus
livros, além de converter prólogos e prefácios de livros filosóficos em
textos narrativos, de cunho predominantemente ficcional, ele não só colocou
em crise a idéia de autoria (levada a extremos por Borges), mas prefigurou um
tipo de texto híbrido, mistura de ensaio filosófico e literatura, também
muito caro ao escritor argentino. Quando li, pela primeira vez, A história universal da Infâmia,
vislumbrei alguns traços de semelhança entre os dois, no que se refere a esse
gosto pelo artifício, a essa prática do ardil literário... A leitura de
contos como “Pierre Menard”,“El informe de Brodie”, “El acercamiento de
Almotásim”, dentre outros, confirmou minhas suspeitas. A partir daí, fui
sondando essas afinidades secretas entre os dois. Não
faz muito tempo, ao ler o In
vino veritas de Kierkegaard, fiquei
extremamente impressionada com a construção maliciosa do texto e, sobretudo,
com o jogo de identidades postiças presente no livro. Na ocasião, cheguei a pensar numa
possível aproximação do filósofo dinamarquês com Fernando Pessoa, autor que
já foi comparado, também sob o prisma das máscaras, a Valéry Larbaud e ao
próprio Borges. Na sua opinião, esses escritores comporiam uma linhagem
específica, ou seja, poderiam ser reunidos - em função do gosto que conservam
pela trapaça e pelo artifício - em um mesmo topos literário? De
certa forma, sim. Mas desde que não sejam confinados a esse topos. Se as semelhanças entre eles
são evidentes, as dissonâncias não são menores. Viveram em épocas diferentes
(com exceção de Pessoa e Larbaud) e compuseram obras obviamente distintas, se
atentarmos para outros aspectos que não apenas esse que estamos discutindo.
Mas compõem, sim, uma linhagem. Essa linhagem surgiu no Romantismo, com os
alemães do Círculo de Jena, e foi adquirindo proporções e nuances cada vez
mais interessantes ao longo do tempo. Jogar com subjetividades duplas ou
múltiplas, forjar verossimilhanças, embaralhar estrategicamente realidade e
ficção, tensionar o exame crítico com a elaboração literária são artifícios
irônicos surgidos com o advento da subjetividade auto-reflexiva dos
românticos e com o que se convencionou chamar de autonomização da arte.
Kierkegaard aproveitou diretamente o legado alemão: estudou em Berlim, por
volta de 1840, e chegou a escrever uma tese acadêmica sobre
o conceito de ironia. A cisão do eu, base da construção irônica, foi encenada
de diferentes maneiras pelo filósofo-esteta, vide os curiosos autores
imaginários que criou. Ao ponto de ele poder ser tomado como um precursor de
Pessoa, ainda que não tenha ido tão longe como o poeta português. Pessoa
levou a ironia a se desconstruir a si mesma, burlou com ela através dela.
Preparou, diríamos assim, o terreno para Borges. Não foi à toa que Borges, em
1985, escreveu uma carta a Pessoa (será que ele leu?), pedindo para ser seu
amigo. (risos) Agora há pouco, ao falar de Kierkegaard, o
senhor usou, com ressalvas, o termo pseudônimos
para caracterizar os disfarces autorais do escritor. Por quê? O senhor
os aproximaria mais dos heterônimos pessoanos? Bem.
Ao contrário do que se divulga por aí, os autores imaginários criados por
Kierkegaard não foram, todos, meros nomes falsos sob o quais ocultou sua
identidade civil. Alguns tinham uma existência ficcional bem marcada dentro
da obra: adquiriram voz própria e transformaram-se em personagens, como é o
caso de Victor Eremita, Constantino Constantius, Hilarius Bogbinder e Johannes, o Sedutor (este, um caso mais
complexo, como vou explicar depois). Mas nem por isso tiveram (com exceção
talvez do Sedutor), a autonomia, a consistência física e psicológica, dos
heterônimos pessoanos. Daí eu preferir falar em semi-heterônimos. Vou dar-lhe
alguns exemplos. O livro de estudos estéticos Alternativa foi atribuído a Victor Eremita, um esteta frio e
irônico. Entretanto, no prólogo, assinado por esse mesmo Victor, encontramos
um relato no qual ele nega essa suposta autoria, dizendo ter encontrado, por
acaso, os manuscritos do livro em uma gaveta secreta de uma escrivaninha
recém-adquirida. Teria assumido, portanto, apenas o trabalho de organizá-los
em duas partes e intitulá-los. O mais curioso é que ele aponta dois autores
diferentes para o livro: o A (responsável pela escrita de sete dos oito
ensaios que integram a primeira parte) e o B (este, segundo ele, um juiz de
nome Guilherme, que teria escrito a segunda parte, toda composta de cartas
possivelmente destinadas ao autor A). O oitavo texto e o mais alentado da
primeira parte (que é o famoso Diário
de um Sedutor) teria sido encontrado, pelo autor A, também em uma
escrivaninha e que, por ser um diário, era de responsabilidade de quem o
escreveu, ou seja, do ardiloso Johannes, o Sedutor, de quem (presume-se, pelo
prólogo) o autor A teria sido amigo. Mais intrigante ainda é o fato de o
mesmo Victor Eremita reaparecer, ao lado de Johannes e do autor fictício de A Repetição (Constantino Constantius),
em outra obra, que você citou há pouco, o In
vino veritas, supostamente editado por um encadernador chamado Hilário
Bogbinder. Esse livro, espécie de paródia de O Banquete de Platão, teria sido escrito por William Afham, e
apresenta cinco narradores-personagens, todos participantes do
banquete/colóquio, discorrendo, um de cada vez, sobre questões relacionadas
ao amor, à mulher e ao casamento. Tanto Victor Eremita quanto Constantino e
Johannes discursam sobre esses temas, cada um com uma opinião e uma dicção
distintas, para não dizer contrastantes. Aliás, as opiniões de Johannes, o
Sedutor, sobre a mulher são de uma excepcional
modernidade e chegam até mesmo a prefigurar certos traços da teoria
psicanalítica de Lacan... É o que acho...e pretendo investigar melhor um
dia...Pois bem: um mero conjunto de pseudônimos não constituiria uma rede tão
complexa. Todos esses outros de
Kierkegaard são inseridos numa trama ficcional capaz de confundir o leitor e
burlar a crítica. É nesse sentido que estão mais próximos dos heterônimos de
Pessoa. E,
obviamente, dos artifícios borgianos... Essa estratégia de dizer que os
manuscritos de um determinado texto foram encontrados num baú, num navio ou
numa gaveta secreta, Borges usou com grande habilidade nos contos El inmortal e El informe de Brodie, não
é mesmo? Só que Borges acrescenta ao jogo o ardil da página perdida e o
subterfúgio da tradução. Nos dois contos, os manuscritos encontrados são
ainda traduzidos para o castelhano
e se dão a conhecer publicamente como traduções. Isso buliversa ainda mais o
problema da autoria, sobretudo se levarmos em conta o que vem a ser tradução
para o escritor argentino... Você
levantou um ponto importante. Borges é bem mais sofisticado no uso desses
artifícios, por tê-los incorporado pela via da erudição e de outros
procedimentos teóricos e narrativos que só o seu tempo e sua infinita
imaginação lhe poderiam fornecer. Se ele simplesmente repetisse o famoso
truque do manuscrito encontrado num baú, não teria ido tão longe. Ao recriar
o truque, inserindo-o numa rede mais complexa (num labirinto, para usar uma
palavra borgiana) que envolve escritos apócrifos atribuídos a autores
existentes ou inexistentes, citações existentes atribuídas a autores falsos,
traduções que são na verdade invenções, autores reais (como Bioy Casares e
ele mesmo, Borges) convertidos em personagens de histórias fantásticas,
contos escritos como se fossem ensaios ou resenhas de livros, etc, o escritor
avança, no sentido de fundar uma outra concepção de literatura, de autor, de
tradução, de leitor. Concepção que tem vínculos indiscutíveis com a
modernidade, mas que descortina outra coisa, outra maneira de pensar. Não foi
à toa que sua obra interferiu (e ainda interfere) nos rumos da teoria
literária contemporânea. Para não dizer da filosofia e das artes em geral... Ele, de alguma maneira, desencadeou uma
discussão bastante profícua em torno de problemas relativos à simulação, ao
artifício, à falsificação, no campo da literatura e da filosofia. Sem
dúvida. O que, na falta de outro nome, vem sendo chamado de “Pós-Moderno”,
não teria muita consistência sem a literatura borgiana. Umberto Eco foi
reconhecido mundialmente como ficcionista ao transformar Borges em personagem
de um romance policial. Foucault alega que As palavras e as coisas nasceu de um texto de Borges. Baudrillard
não teve como lidar com a questão dos simulacros senão partindo do intrigante
“Del rigor de la ciencia”. Na sua teoria sobre a sedução também recorre ao
conto “La lotería en Babilonia”,
para abordar os aspectos sedutores do jogo, do acaso. Aliás, é muito difícil,
hoje, tratar do problema da sedução sem, pelo menos, tangenciar Borges. Kierkegaard
ocupa também um espaço privilegiado dentro do livro de Baudrillard. O que
também indiciaria ¾
no campo da sedução ¾
a sua “cumplicidade” com Borges... Claro.
O diário do sedutor é o melhor
tratado que conheço sobre a arte de seduzir. Johannes faz do artifício para
seduzir Cordélia uma forma de aperfeiçoamento estético e de exercício
intelectual. Ele avalia, passo por passo, as estratégias (valoriza os estudos
prévios, os ensaios), sustenta-se o tempo todo na elegância das palavras, não
se deixa deslizar emocionalmente. Busca no que chama de “reflexão poética” o
substrato do jogo de sedução. Mas nem por isso deixa de assumir a sua
condição de seduzido. Ele inclusive admite (no outro livro) que a mulher é a
sedução mais poderosa do céu e da terra e que aprendeu com ela a arte de
seduzir. O que ele fez foi intelectualizar essa arte, dar-lhe uma forma
elaborada, calculada. É aí que entra a complexidade e a riqueza do livro.
Johannes se feminiza, de certa maneira, para o exercício bem sucedido da
sedução. Esse é o seu maior artifício e o seu maior segredo. Por isso nenhuma
de suas manobras fracassa. Ao contrário de Don Juan, ele vê a mulher como um
sujeito e não se preocupa com a quantidade de suas conquistas, mas com a
qualidade da sedução. O que importa para ele não é o fim, mas o processo e a
reflexão crítica sobre esse processo. Ele tinha consciência de que um sedutor
devia possuir uma força que Don Juan, apesar de seus muitos dotes, não
possuía: a força da palavra. O poder de jogar com a potencialidade enganadora
da linguagem. O que, sabemos, Borges soube fazer com muita destreza e
competência. Penso que Baudrillard poderia ter ido mais longe em suas
reflexões, a partir de Kierkegaard e do próprio Borges. Se ele tivesse feito
uma leitura em contraponto do Diário do
Sedutor, do Erotismo Musical (texto
de Kierkegaard sobre a ópera Don Giovanni, de Mozart) e do discurso
iluminador que Johannes, o Sedutor, profere no livro In vino veritas, ele teria se dado conta de que o autor
dinamarquês já tinha antecipado muitas das idéias que ele, Baudrillard, tomou
como sendo suas próprias. Qual
tem sido o seu referencial teórico para esses estudos sobre a estética do
artifício? Primeiro,
penso como o músico Maurice Ravel, outro falsificador (no bom sentido, é
claro): que não existe senão a estética do artifício, que todos os artistas
são “artificiais por natureza”. No entanto, esse artificialismo peculiar à
arte adquire dimensões diferentes, dependendo da maneira como é trabalhado
pelo artista. Clément Rosset tem um estudo muito interessante sobre esses
vários graus da artificialidade na filosofia e nas artes, intitulado O mundo como natureza e artifício,
numa nítida alusão a Schopenhauer. Foi sua tese de doutorado. Ele parte do
que chama de “miragens do naturalismo” até chegar às “emergências do
artifício”, seção em que discorre sobre Baudelaire, Mallarmé, Ravel,
Shakespeare, Huysmans, todos esses, autores afeitos ao artificial. Percorre
depois as filosofias artificialistas de Baltasar Gracián, Maquiavel, Hobbes,
os sofistas, comparando-as com as filosofias naturalistas, para chegar à
conclusão de que o artifício é uma “verdade” da existência, o único modo de
existência real, tendo seu fundamento no tempo presente, no
“factum”(considerando que esta palavra aponta para dois sentidos ao mesmo
tempo: o que existe, o fato, e o que é fabricado, “facturado”). É um livro
muito instigante para quem se interessa pelo assunto. Tenho recorrido
teoricamente também, mas sem muita sistematização, a estudos de Vladimir
Jankélévitch, de Paul Virilio, Bachelard, Deleuze, Cioran e o próprio
Baudrillard. Os mais antigos estão sempre presente: Gracián, Sade, F.
Schlegel, Maquiavel... Para não dizer dos poetas modernos. O
senhor chegou a se valer de algum estudo de Octavio Paz nas suas pesquisas? Ele trata do jogo
simulação/dissimulação, no El
laberinto de la soledad, trabalha com a
noção de máscara, além de ter escrito dois ensaios sobre Pessoa (um deles
falando das similitudes entre a rede heteronímica do poeta e os ardis autorais de Valéry Larbaud). Octavio
Paz é imprescindível para se entender as contradições, os paradoxos da
modernidade. Sobretudo no campo da poesia e das artes. Sua erudição é
admirável. Sua capacidade de tratar, com desenvoltura, de assuntos
interdisciplinares muito me impressiona. Mas não é um dos meus autores de
referência, por um simples motivo: falta-lhe uma boa dose de ironia e
artificialidade. Não conheço o ensaio sobre Larbaud e gostaria de poder lê-lo
oportunamente. Larbaud também inventou um autor interessante... como é mesmo
o nome? Barnabooth.
Que teve, como os heterônimos pessoanos, biografia e até diário íntimo. A
biografia foi escrita por um outro autor imaginário, Tournier de Zamble.
Depois Larbaud resolveu transformar a biografia em um diário assinado pelo
próprio Barnabooth. Isso, um pouco antes de Pessoa. E muito tempo depois de
Kierkegaard... Sem
dúvida pertencem à mesma família. Mas, pelo que saiba, Larbaud não teve a
complexidade, a dramaticidade dos outros dois. Kierkegaard e Pessoa se
multiplicaram por dentro e por fora, simultaneamente. Implosão e explosão. A
propósito: Pessoa, ao implodir/explodir (como diz o senhor) em vários outros
eus, cria um espetáculo de subjetividades no qual várias máscaras se
interseccionam num rosto que não é de ninguém, já que o próprio Pessoa se
ficcionaliza dentro dessa ciranda de encenações. Ou
seja, ele se despessoaliza, chegando a se tornar às vezes menos real que seus
heterônimos. Borges, por sua vez, mesmo ao falsear dados de sua própria vida,
ao jogar com o seu próprio nome, ao confundir seus leitores, não se
despessoaliza sob as máscaras que
criou para si mesmo. Pelo contrário, essas máscaras só contribuíram para sua
afirmação civil, biográfica. Como o
senhor vê isso? E como Kierkegaard lidou com sua própria imagem pública? Uma
pergunta difícil de ser respondida em poucas palavras. Primeiro, não concordo
inteiramente com você. Pessoa é o Pessoa por causa do teatro que construiu em
torno ou a partir de si mesmo. Ele também ganhou uma corporeidade civil,
biográfica, por conta do seu teatro heteronímico. Mas eu diria que, apesar de
todas as armadilhas que inventou, Pessoa se preservou mais do que Borges.
Talvez por se resguardar muitas vezes sob a voz e o rosto de um ou outro
heterônimo (ele tinha sempre esse álibi), não se expôs em demasia enquanto
ele mesmo. Borges deu muitas entrevistas, foi professor, fez inúmeras
conferências, protagonizou episódios controvertidos, enfim, foi também um
homem público. E como tal, não deixou de fazer suas bromas. Transpôs para sua
própria vida muitos dos artifícios de sua literatura. Confundiu, por isso,
muitas pistas. Veja quantas biografias contraditórias circulam por aí. Aliás,
você chegou a ler a que escreveu a sua homônima? Comprei aquele dia, na
livraria do Casares, e já estou quase no fim. Acho que a autora construiu o
seu Borges, que não coincide necessariamente com o Borges dos outros, com o
meu, por exemplo... Mas vamos voltar à sua pergunta. Se Borges assumia
publicamente o jogo das máscaras e divertia-se com isso, Kierkegaard foi mais
secreto em seu prazer. E mais conflituoso. Atormentado, eu diria. Sua curta
existência foi uma constante tensão entre a estética e a religião. Chegou a
renegar, por escrito, os pseudônimos (ou semi-heterônimos) que inventou e a
assumir a autoria de todos os seus livros, alegando ter conseguido, através
da ética, superar a estética e chegar, finalmente à plenitude do estado
religioso. No livro Ponto de vista
explicativo da minha obra como escritor,
por exemplo, ele se propõe a fazer uma reflexão crítica sobre a sua
trajetória intelectual, desfazer os truques, revelar quem era verdadeiramente
como autor. Só que, curiosamente, não quis publicar o livro, sob o argumento
de que o que foi escrito pertencia, não a ele, mas a uma terceira pessoa.
Pensou em recorrer de novo a um pseudônimo (o do poeta Johannes de Silentio)
ou em misturar os papéis escritos com outros. Desistiu. O livro só foi
publicado depois da sua morte. Lendo hoje esse texto e cotejando-o com
trechos do seu Diário, podemos constatar o grande tormento, o grande conflito
interno experimentado pelo filósofo ao longo de toda a sua vida. O que, de
certa maneira, explica o costume que tinha de publicar, simultaneamente,
vários livros contrastantes tanto pelo tema quanto pela forma. Ele poderia
perfeitamente dizer com Paul Valéry: “eu não sou sempre da minha opinião”.
(risos). O autor fictício Johannes Climacus, por exemplo, é a voz que nega o
que Kierkegaard sempre defendeu como sua grande bandeira: o cristianismo. Há
um texto, designado de Post-Scriptum
definitivo e não científico, em que o autor (Climacus), declara mais ou
menos assim: “o abaixo-assinado, Johannes de Climacus, não se considera
cristão: está, sim, preocupado com a dificuldade que há em tornar-se um
cristão”. É realmente muito pessoana essa história... Voltando
a Borges. O senhor teve oportunidade de estar com ele duas vezes no
apartamento da Calle Maipú. Poderia contar um pouco sobre essa experiência? Borges
era acessível. Gostava de receber as pessoas, de conversar. Quando o procurei,
em 83, a pretexto de esclarecer algumas questões de minha pesquisa, fui
recebido com muita solicitude. Fiquei impressionado com seu humor e sua
erudição. Tão logo eu entrei na sala do apartamento (ele já sabia da minha
nacionalidade), citou de cor, em espanhol, um fragmento extraído de um salmo
escrito pelo grande salmógrafo dinamarquês H.A.Brorson, do século XVIII. Esse
fragmento era mais ou menos o seguinte: “Que direi eu? As minhas palavras não
significam grande coisa”. Depois, citou em dinamarquês o título do salmo: Op
al den Ting, som Gud har giort. Foi um excelente começo de conversa,
sobretudo depois de eu tê-lo lembrado de que no túmulo de Kirkegaard havia
uma inscrição tirada de um cântico desse mesmo autor. Perguntei se sabia bem
o dinamarquês e ele me disse que seus conhecimentos eram rudimentares, embora
tivesse muito interesse pela língua. Citou algumas palavras conhecidas e
enumerou alguns autores dinamarqueses de sua predileção. No final, pediu-me
que voltasse um outro dia, com a promessa de ler para ele, no original, duas
parábolas de Kierkegaard que ele tinha lido há muito tempo, em inglês, num
livro de W.Lowrie. Foi a oportunidade que tive de voltar à sua casa. Poucos
dias depois da segunda visita, tive que viajar. Confesso que um dos momentos
mais emocionantes de minha vida foi esse, quando li, em voz alta, para Jorge
Luis Borges, as parábolas de Kierkegaard. Ele
chegou a conhecer o livro que o senhor escreveu, comparando-o a Kierkegaard? Infelizmente
não. Na época em que estive com ele, estava no início da pesquisa. Voltei a
Buenos Aires no ano seguinte, mas não o encontrei: tinha ido inaugurar, em
Paris, uma exposição dedicada a Kafka. Foi um ano de muitas viagens para ele.
Os dois anos seguintes dediquei à redação do trabalho. Terminei dois meses
depois de sua morte. Ainda demorei um pouco nas revisões, reescrevi algumas
partes. A publicação só aconteceu mesmo no final de 88. Qual
é o título do livro? O senhor pretende publicá-lo aqui, na Argentina? O
título, em espanhol, seria: Borges y
Kierkegaard: contrapuntos. Estou tentando negociar a publicação aqui. Já
comecei a traduzi-lo, com a ajuda de uma amiga argentina que mora em
Copenhague. Espero poder enviar a você um exemplar até o ano 2000, quem
sabe... (risos) Tem
algum outro estudo sobre Borges em andamento? Sim.
Estou agora pesquisando biografias, entrevistas, conferências, depoimentos.
Pretendo estudar a persona Borges.
Avaliar até que ponto ele transpôs para sua própria vida os artifícios da
literatura. Até que ponto ele foi personagem de si mesmo. Enfim, continuar a
trabalhar com suas estratégias ardilosas. É só o que posso dizer, por
enquanto. Para
finalizar, uma pergunta indiscreta. O senhor, que sempre investigou os
artifícios, as armadilhas, os falseamentos, as mentiras, costuma se valer
também desses mecanismos no seu próprio discurso? Sim,
como não? (risos) * (Entrevista fictícia com um professor
inexistente) |
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