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OCTAVIO
PAZ: A CELEBRAÇÃO DA PALAVRA
Maria Esther Maciel Ao
assistir, pela primeira vez, a uma conferência de Octavio Paz na Cidade do
México, chamou-me particular atenção a firme e suave sonoridade de sua voz.
Discorrendo com desenvoltura sobre as peculiaridades da poesia japonesa do
séc. XVII, o poeta mexicano deixava transparecer nos silêncios e modulações
de sua fala uma cumplicidade amorosa com as palavras, como se as afagasse
pela voz. Com esse gesto transitivo, de reverência à linguagem, conseguiu
criar no ambiente uma atmosfera poética, quase religiosa, que a todos
contagiou. Foi quando tive a certeza de estar diante de um poeta verdadeiro,
um poeta em permanente estado de invenção e que sabia sustentar um pacto de
vida e morte com a poesia. De
fato, Paz dedicou toda a sua existência ao exercício e à defesa da poesia,
ainda quando desempenhava outras atividades intelectuais. Tendo convivido
desde criança com os livros da grande biblioteca do avô, teve um contato
precoce - através da leitura -com os grandes poetas da
língua castelhana, passando a cultivar,
desde então, o apreço pela palavra poética e o desejo de praticá-la. Em nome
dela, deu-se a desafiante tarefa de decifrar os signos culturais, políticos,
históricos, lingüisticos e estéticos de seu tempo. Atravessou, dessa forma,
todo o século XX, fazendo da lucidez e da sensibilidade os ingredientes
vitais de seu próprio pensamento. Sob
o traço da pluralidade, Paz transitou, desde os anos 30 - período em que inicia sua
trajetória intelectual - em
campos disciplinares diversos. Aliando o ofício de poeta ao trabalho de
reflexão crítica, escreveu inúmeros poemas e ensaios, fundou revistas,
traduziu obras, ministrou cursos, conferências, ganhou prêmios, criou
polêmicas. Suas viagens pelo mundo renderam-lhe descobertas excêntricas e
experiências profícuas, sobretudo quando, através do serviço diplomático,
passou uma temporada no Oriente, onde descobriu a radical “outridade” da
cultura tântrica e do budismo zen. Nos Estados Unidos, vivendo a experiência
do desterro, descobriu a mexicanidade e redimensionou sua própria condição
latino-americana. Na França, incursionou no Surrealismo e, ainda que
desconfiasse de certos preceitos estéticos defendidos pelo movimento, como a
escrita automática e a “art engagé”, foi um dos disseminadores da poética
surrealista na América Hispânica. Ao que se soma sua volta a Paris, alguns
anos depois, ocasião em que pôde revisar criticamente a própria obra, à luz
das contribuições teóricas de Lévi-Strauss e de Roman Jakobson. Todas
essas experiências, acrescidas do inquieto interesse do poeta pelas tradições
precolombianas, pelo barroco hispano-americano e pela poesia moderna
ocidental, contribuíram para que
Paz não apenas se tornasse um desses poetas tentaculares, capazes de fazer de
sua obra uma combinatória de vozes e saberes infinitos, como também
construísse uma maneira prismática de pensar e de escrever, pautada no que
ele mesmo chamou de “modo de operação do pensamento poético”, ou seja, a faculdade criativa de colocar em relação
analógica realidades contrárias ou dissímiles. Movida
por essa lógica poética -
desencadeadora de paradoxos, metáforas, sonoridades, ambigüidades, dúvidas,
contradições e interrogações - toda
a obra paziana se consubstancia, oferecendo-se como um desafio aos discursos racionalistas
de feição linear-evolutiva que, por muito tempo, marcou o perfil do
pensamento ocidental, e rompendo com os binarismos redutores no trato de
questões literárias, políticas e culturais. O que, entretanto, não significou
uma filiação do poeta mexicano ao rol dos pensadores pós-modernos, adeptos
dos princípios de descentramento e dispersão. Como estes, Paz questionou a
lógica homogênea e totalizadora do projeto iluminista de modernidade,
renunciou às hierarquias legitimadoras e reconheceu a pluralidade como traço
necessário dos discursos da contemporaneidade. Mas sem abdicar da poesia como
cerne de suas reflexões sobre todos os temas, e muito menos de certos
princípios éticos e estéticos herdados da sua vivência moderna. O apreço pela crítica, convertida em
uma espécie de “paixão”(no que ela se desveste portanto de seu caráter
inteiramente racional) e a utopia de um mundo transformado pelo poder da
poesia e da imaginação destacam-se como traços visíveis desse vínculo
intrínseco com a tradição moderna. Tradição, aliás, que mereceu do poeta
estudos iluminadores, presentes sobretudo nos livros O arco e a lira, Os filhos do barro e A outra voz. Ao
investigar a história da poesia moderna, do romantismo alemão às crises das
vanguardas, Paz realizou uma
leitura paradoxal da modernidade, por flagrá-la em seus pontos móveis de
tensão e ambivalência. Conjugando tradição e ruptura, origem e originalidade,
nostalgia e utopia, mito e história, religião e revolução, analogia e ironia,
criou um jogo dialógico, a
partir de uma visão histórica atravessada de sincronias e descontinuidades.
Além de ampliar e pluralizar, no rastreamento que fez dos diversos movimentos
e manifestações culturais da era moderna, o próprio conceito de
“universalidade”, durante tanto tempo circunscrito às tradições canonizadas
do mundo europeu. Isso, porque o poeta mexicano inseriu no concerto universal
das vozes poéticas da modernidade as vozes excluídas do paradigma literário
ocidental, sobretudo as advindas
do universo híbrido das culturas latino-americanas, caracterizadas por ele
como “um prolongamento e uma transgressão” do que se define como “Ocidente”. Sem
dúvida, essas reflexões se configuram também como uma quase autobiografia. Ao
percorrer as rotas intricadas da poesia moderna, diluindo as oposições
excludentes entre universalismo e americanidade, Octavio Paz não deixou de
fazer, ao mesmo, tempo, o memorial de sua própria trajetória enquanto poeta
moderno mexicano, profundamente preocupado com suas raízes hispano-americanas,
mas sempre em estado de “outridade”, em sintonia com a pluralidade universal.
Personagem,
criador e crítico da história deste século, Paz modificou não apenas a poesia
de língua espanhola, por delinear no horizonte poético hispano-americano o
que Haroldo de Campos chamou de uma “zona de rigor”, de “constante
questionamento criativo da medula da linguagem”, mas também o pensamento
crítico de nosso continente. Ainda que possamos discordar de certos matizes
de sua visão política, a ousadia
e a independência de suas idéias imprimiram uma marca digital aos
diagnósticos e prognósticos que fez do nosso tempo. Ademais, sua firme e
sempre inventiva defesa da poesia contra o poder perverso das leis do mercado
globalizado o converteu numa espécie de guardião da palavra, da imaginação,
do desejo e da lucidez crítica, no contexto sombrio deste final de século. Preocupado
com os rumos da palavra poética no mundo contemporâneo, visto que, para ele,
o que hoje ameaça a sobrevivência da poesia (e, por conseqüência, da humanidade)
é um “processo econômico sem rosto, sem alma e sem direção”, Paz se empenhou em defender, nestes
últimos anos, a reabilitação do
espírito crítico -
elemento vital, segundo ele, da
poesia de todos os tempos e que, na modernidade, se afirmou como um valor.
“Pensar o hoje significa recobrar a mirada crítica”, pontuou. Ao que se soma
a necessidade de os poetas de
agora exercitarem, mais do que nunca, a liberdade de imaginação, contra os
estereótipos produzidos e propagados
pela lógica do mercado. Movido
por uma certa “utopia pós-utópica”, Octavio Paz acreditava no poder
iluminador da “outra voz”, representada pela poesia, enquanto um antídoto
eficaz contra a fixidez da sensibilidade, a reificação do desejo e o
obscurecimento da lucidez crítica.
Idealismo ou não,
insistiu - com veemência - que o tempo privilegiado dos
poetas contemporâneos é o instante e que o exercício poético, embora
convertido em um ritual quase secreto, subterrâneo, é a forma privilegiada de
se compreender o agora deste fim de século. E por isso disse: “O agora nos
mostra que o fim não é distinto ou contrário do começo, mas é seu
complemento, sua inseparável metade. Viver o agora é viver de frente para a
morte. No agora nossa morte não está separada de nossa vida: são a mesma
realidade, o mesmo fruto”. No
empenho de entender este presente e, ao mesmo tempo, redimensionar à luz
desse entendimento o seu próprio passado, Paz viveu seus últimos anos. Além
de escrever muitos poemas, deteve-se, com entusiasmo, sobre temas os multidisciplinares
da nossa época e preparou,
cuidadosamente, os 14 volumes de suas obras completas, traçando, por vias
oblíquas, através desses textos, a sua autobiografia poética e intelectual. Sobretudo através de uma
poesia transparente, solar e consciente de si mesma, o poeta enfrentou
enfermidades e preparou-se, com elegância, para a morte. Se, nas suas
palavras, “aprender a viver é aprender a morrer”, Paz soube como extrair das
duas experiências o que hoje nos fica como sua maior herança. (Abril 1998) |
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