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     FINNEGANS WAKE / FINNICIUS REVÉM

 

(Orelha do 5o.volume da edição brasileira de Finnegans Wake, de James Joyce, em tradução de Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003)

 

 

                         

                                            Maria Esther Maciel

 

 

 

Ao abordar, em uma conferência de 1977, “o assombroso e o estranho no ato de sonhar”, Borges investigou os diversos nomes dados ao pesadelo, detendo-se sobretudo na palavra inglesa nightmare, quer teria, entre os seus significados possíveis, o de “ficção da noite”.

 

Não parece ter sido outro o sentido que James Joyce atribuiu à mesma palavra, ao escrever o seu “anti-romance” Finnegans Wake / Finnicius Revém (1939) que, como contraponto noturno à saga diurna de Ulisses (1922), apresenta-se ao leitor na forma de um sonho. Ou melhor, de um pesadelo que não obstante seja atribuído ao personagem Tim Finnegan – ou ao seu “outro”, H.C.E. (Here Comes Everybody / O Homem a Caminho Está) – contém os sonhos de todos os demais personagens, os quais por sua vez se entrelaçam, formando uma teia ficcional inextricável que se reflete na própria superfície da linguagem. 

 

É nesse sentido que a palavra nightmaze –  cunhada por Joyce em uma passagem do capítulo 13 e que Donaldo Schüler traduz como “onirodédalo” (411.8) – poderia funcionar como uma definição concentrada do que vem a ser esse texto, uma vez que – como variação criativa de nightmare – ela faz convergir em um mesmo topos a dimensão onírica e a complexidade labiríntica (maze = labirinto) que o caracterizam. Além de apontar, obliquamente, para o inevitável estado de desorientação que define quem ousa nele se introduzir, se considerarmos que maze, enquanto verbo, indica o ato transitivo de confundir, desorientar,  lançar em um estado de perplexidade.

 

Sabe-se que no nightmaze/onirodédalo de Joyce se pode entrar por qualquer ponto, por qualquer página. E uma vez dentro, não há como escapar do descaminho Em meio às torções da linguagem, à profusão vertiginosa de referências míticas, literárias, históricas e filosóficas, à ciranda dos personagens que mudam o tempo todo de nome, de época e de lugar, aos fluxos e refluxos temporais da narrativa, resta ao perplexo leitor também sonhar (ou fingir que sonha) o sonho de Joyce. Ou deixar-se sonhar pelo próprio livro. Mas com o detalhe de que, nesse caso, o pacto onírico só faz sentido se a leitura for, paradoxalmente, experimentada em vigília, em condição de insônia, visto ser FW um sonho para os que não dormem. Como já afirmou o próprio Joyce, o leitor ideal para seus livros é o que tem a insônia ideal.

 

Diante disso, o que dizer daquele que, radicalizando o pacto, ousou enfrentar o desafio de levar até o fim a quase impossível tarefa de traduzir para outra língua todo esse labirinto, como fez Donaldo Schüler?

 

Certamente não há como abordar tal façanha senão a partir da perplexidade que ela nos provoca. Sobretudo quando nos colocamos diante do resultado concreto e completo de todo esse trabalho. Um trabalho que não bastasse reconfigurar em um novo contexto a intrincada rede ficcional que compõe o livro de Joyce, revela como o tradutor arriscou-se a inventar – com o rigor e o desprendimento lúdico necessários – uma outra língua dentro da língua portuguesa. Ou sonhar em vigília essa outra língua, num gesto análogo ao do próprio autor que, como se sabe, criou um inglês onírico, no qual mesclou com assombrosa habilidade fragmentos e variações de  mais de 60 línguas diferentes.

 

Ao reinventar seu próprio idioma no ato traduzir essa língua estranha, Donaldo Schüler veio, sem dúvida, confirmar a assertiva de Haroldo de Campos, segundo a qual “traduzir é uma tarefa de acréscimos à civilização”. Não apenas sob o ponto de vista da experimentação da linguagem, mas também no plano mais amplo das relações culturais. Isso, porque à “ginástica da forma” que uma tradução como esta exige, Schüler buscou aliar uma minuciosa pesquisa dos mitos, dos textos literários e das referências histórico-geográficas que servem de solo para o nightmaze de Joyce. Pesquisa esta que se desdobrou na não menos árdua investigação de várias dessas referências no âmbito da cultura brasileira e na paciente elaboração das “notas de leitura” que acompanham e iluminam cada capítulo traduzido.

 

Com este volume, que reúne os dois últimos livros (III e IV) de FW, Schüler chega ao fim de seu árduo Work in Progress. Quatro capítulos (13, 14, 15 e 16) compõem o Livro III, no qual assistimos ao “show” heteronímico de Shaun (o gêmeo reverso de Shem), que como personagem central dessa série, passa por sucessivas transformações em vários outros de si mesmo. Ora assumindo o papel de carteiro, ora sendo interrogado pelo povo do qual é o pastor e a esperança de salvação, ora atuando como personagem de uma versão da fábula “A Cigarra e a Formiga” – “The Ondt and Gracehoper” / “A Ciagraça e o Fornica” –  contada por Shem, ora discursando sob o nome de Jaun  (D. Juan) para a bela Isolda e suas 28 companheiras, ora rolando no barril de Diógenes pelas margens do rio Liffey, Shaun segue uma espécie de “Via Crucis” rumo ao seu próprio desaparecimento. Até que, no capítulo 16, a manhã irrompe num grito de Shem, que desperta os pais para a consciência do próprio fim que se aproxima.

 

O capítulo 17, também conhecido como “ricorso”, ocupa todo o Livro IV. Nele ecoam os temas de todos os outros capítulos. Sua função é evidenciar o caráter cíclico, “viconiano”, da obra, visto que termina exatamente no meio de uma frase que, por sua vez, se liga à primeira do capítulo inicial. Mas a voz que emerge do texto não é a do divino trovão ou a do homem H.C.E., mas a de Anna Livia Plurabelle – a mulher que é todas as mulheres ao mesmo tempo e que agora, inteiramente convertida em rio, corre em direção ao oceano (seu pai), levando consigo todas as histórias e todas as impurezas da cidade de Dublin. Seu monólogo final é tanto uma elegia quanto uma prece. No fluxo das palavras que o atravessam consuma-se um fim que não é senão o despertar da linguagem para um novo sonho.

 

Com as “notas de leitura” que acompanham a tradução deste último capítulo, Donaldo Schüler cumpre, assim – de forma heróica – aquilo que por muito tempo foi considerado um empreendimento insano, para não dizer improvável: oferecer aos leitores de língua portuguesa uma versão integral, e de alto nível, do prodigioso nightmaze de Finnicius Revém.

 
 
 

 

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