[@] Maria Esther Maciel Home Page |
|
|
PENSAR –
Correio Braziliense (31/07/2004) / Estado de
Minas (07/08/2004)
SÉRGIO
DE SÁ Zenóbia
não é personagem do filme Alta Fidelidade mas
adora listas. De "peixes perplexos", de "cidades raras",
de "ervas daninhas", de "livros de cabeceira". A criadora
de Zenóbia, Maria Esther Maciel, garante não
ser muito boa em ordenar coisas. "Listas são limitadas, excludentes
e insuficientes". Ainda assim, arrisca dizer
que os cinco artistas que mais admira são Leonardo
da Vinci, Vermeer, Arthur Bispo do Rosário, Peter Greenaway e Keith Jarrett. Mas poderiam ser também
Paul Klee, J.S. Bach, M.C. Escher, Lygia Clark e
Élida Tessler. Isso, sem incluir os escritores. É
bem provável que Greenaway ficasse em primeiro lugar
numa classificação imaginária. Do contrário, Maria
Esther não teria feito pós-doutorado em Londres sobre
o diretor de A
Barriga do Arquiteto e O Livro de
Cabeceira. Do contrário, também não teria organizado livro
de textos sobre o cineasta, O Cinema Enciclopédico
de Peter Greenaway, e tampouco teria dedicado
vários ensaios a ele em A Memória das Coisas, ambos
publicados há pouco. Além
desses dois títulos, a lista das obras de Maria Esther Maciel,
professora da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e poeta de mão-cheia, acaba de ganhar
a prosa tão enxuta quanto impactante de O Livro
de Zenóbia, aquela que gosta de elencar esquisitices. Sobre
ela, sobre saberes múltiplos e, em especial, sobre
Greenaway, gira o papo que se lê a seguir. Três
livros de uma tacada. Organização, ficção, ensaística. E a inevitável
visibilidade midiática. É muita coisa de uma vez só para uma mineira? Maria
Esther Maciel – Dizem
que os mineiros trabalham em
surdina. Vim elaborando esses livros ao longo dos últimos
três anos, sem alarde. O primeiro a ficar pronto foi O
Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway, que permaneceu
na editora por mais de um ano. Fechei A Memória
das Coisas em
agosto do ano passado, e O Livro de
Zenóbia,
iniciado há dois anos, só ganhou impulso a
partir de janeiro. Por coincidência, os três saíram simultaneamente, o que
deu margem para se pensar que preparei
os três de uma vez só, em ritmo voraz. Mas, não.
Foi tudo construído aos poucos, de acordo com as demandas
internas e externas. Se, por um lado, publicar os três
juntos trouxe um certo desconforto, por outro, creio
que isso acabou por ser interessante, pois acho que um
livro completa, de certa forma, o outro. Eles compõem uma
tríade coerente com as minhas inquietações dos últimos
anos. Sei que agora entrarei em um momento de
elaboração silenciosa do que possivelmente virá
(ou não) nos próximos anos. Zenóbia
parece personagem de um romance clássico. Tem
força descomunal, mas é apresentada ao leitor em fragmentos.
A diluição do narrador é proposital? MEM
– Sempre
considerei que o maior desafio para um escritor
que se aventura na escrita de um romance é construir
suas personagens, dar a elas não apenas um nome,
um rosto, uma identidade civil, mas também uma
vida que, por mais ficcional que seja, possa trazer uma
espécie de realidade intrínseca. Os autores clássicos se
esmeraram nesse trabalho e chegaram a criar personagens maiores
do que a própria trama que as envolve. Isso
sempre me fascinou. Por outro lado, não sou muito
afeita ao modelo realista de narrativa, pautado nos
princípios da sucessividade temporal. Eu queria construir
uma personagem convincente, mas que fosse sendo
constituída através de traços, reminiscências, imagens,
sensações do narrador e de outras personagens. Zenóbia,
ao contrário das personagens clássicas, não
se apresenta inteira, completa, bastante: ela vai surgindo aos
fragmentos, no ritmo esgarçado da memória dos
que conviveram com ela, dos que souberam (ou imaginaram)
algo de sua vida. Se tem alguma força, ela se
deve à soma de seus gestos, pensamentos, palavras, atitudes,
desejos. Seu cotidiano é feito de miudezas, de coisas
banais. E ela busca extrair disso pequenas epifanias e
assombros. Há
uma clara vontade de recuperação de lirismo, não? Como
se a realidade estivesse esgotada em vários sentidos, principalmente como
norte da literatura brasileira... MEM
- Ando meio
cansada do realismo exacerbado que tomou
conta da literatura brasileira contemporânea. E avessa
ao formalismo asséptico, desvitalizado, que ainda predomina
em boa parte da poesia que se faz hoje no Brasil.
Em O Livro de Zenóbia tentei, sim, recuperar um certo
lirismo, mas que não exclui, necessariamente, o traço
irônico, a dimensão trágica e o humor sutil. Tendo cada
vez mais ao exercício de uma escrita livre de coerções temáticas
e formais, busco me desvencilhar da tirania da
metalinguagem e da intertextualidade explícita -
práticas já exauridas, debilitadas - e buscar outras possibilidades
estéticas para o meu trabalho. Abrir-me às
impurezas da experiência, à força do trágico e ao êxtase do
sublime. Não renegar o prosaico nem sucumbir ao
realismo. Apostar na delicadeza como um antídoto contra
a truculência do mundo, da realidade. Jorge
Luis Borges é de fato a melhor conexão da literatura com o cinema de Peter
Greenaway? MEM
– Costumo dizer
que, para quem assiste a um filme como O
Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, ou O
Livro de Cabeceira, sem um prévio conhecimento de
outros trabalhos de Peter Greenaway, é quase impossível aceitar
uma associação entre ele e Borges. Onde estariam,
no escritor argentino, a escatologia, o erotismo explícito,
o transbordamento barroco, o delírio visual? Mas se
atentarmos para certas estratégias ficcionais desses
e outros filmes de Greenaway, veremos que as
afinidades são muitas: o apreço pelos embustes autorais (sobretudo
nos pseudodocumentários do diretor), o
olhar enciclopédico sobre o mundo, o exercício das taxonomias insólitas,
o gosto pelo artifício e pelas simetrias, a
profusão de referências eruditas, a concepção do universo
como uma biblioteca de babel. Talvez o filme de
Greenaway mais borgiano seja A Última Tempestade. Trato
disso com detalhes em um dos ensaios do livro A
Memória das Coisas.
Mas além de Borges, outros escritores
são referências importantes para o cinema greenawayno,
como James Joyce, Lewis Carroll, Italo Calvino, Georges
Perec, Dante e Shakespeare. Mas menos sob a
perspectiva dos temas e dos enredos do que sob a perspectiva
da linguagem e dos procedimentos poéticos e
ficcionais. O
que você diria para convencer alguém de que vale a pena ver
e conhecer Greenaway? MEM
– Greenaway é
um dos poucos cineastas contemporâneos que ainda
ousam na experimentação de novas formas
e linguagens, sem que isso signifique uma recusa
do passado. Ele leva o cinema a transbordar de seus
próprios limites, a expandir-se para além da tela. Sua
erudição criativa possibilita-lhe trazer para um mesmo topos
o legado cultural de diferentes tradições – entre elas,
a do renascimento e a do barrroco –, as experimentações da
vanguarda, as inovações tecnológicas e as referências
culturais do presente. Transita, com desenvoltura, em
vários campos do saber, sejam eles os da literatura e das
artes em geral, sejam os da culinária, da arquitetura,
da moda, da zoologia e da anatomia. E não se
furta a explorar o estranho, o escatológico e o insólito. Além
disso, não faz concessões aos imperativos da indústria cinematográfica
e assume uma postura extremamente irônica
perante o culto contemporâneo do chamado "politicamente
correto". É ainda um crítico dos sistemas de
organização e classificação do mundo e do conhecimento. Um
artista completo, que reedita, no contexto do
século XXI, a intrigante e instigante figura do artista/ intelectual
transdisciplinar, de feição renascentista. O
intelectual não pode mais ficar parado no mundo contemporâneo? MEM
– Vivemos,
hoje, sob o signo da multiplicidade, da confluência
entre as artes e os campos disciplinares. Cabe ao
intelectual contemporâneo estar atento a isso. A especialização
e a fixidez do conhecimento já não condizem com
as demandas do nosso tempo. O movimento, o
trânsito, a abertura à alteridade são as linhas de força que
nos definem. Greenaway é diretor de ópera, escritor, pintor,
curador. De alguma maneira, ele reedita essa
figura do artista renascentista. Algo que tem a ver também
com a idéia de Arte Total, de Wagner. Ele tenta reconstituir
essa figura para mostrar que o cinema tem que
se abrir para essas outras linguagens, que as artes e os
campos de saber estão aí também para serem mesclados, conjugados.
Além disso, aposta na idéia de que uma
das formas de se revitalizar o cinema é buscar os recursos
que as outras artes podem oferecer. Qual
filme dele é seu preferido e por quê? MEM
– É difícil
dizer qual é o meu preferido. Talvez seja O Livro
de Cabeceira,
por ser o mais poético. Nele, erotismo e
escrita se entrelaçam de forma magnífica. A tela se transforma
em várias ao mesmo tempo, graças aos inventivos experimentos
tecnológicos usados ao longo de todo
o filme. Sucessão e simultaneidade se mesclam na narrativa.
E o mais interessante é que a obra literária que lhe serve
de referência não é um livro com trama e enredo, mas o
diário de uma poeta japonesa do século X, Sei Shonagon,
cheio de listas e apontamentos sobre coisas da
natureza e trivialidades da corte. Greenaway inventa um
enredo para o filme e busca no livro de Shonagon a atmosfera,
a linguagem, as listas e as imagens. Compõe um
filme de grande poder de sedução visual, que inverte os
procedimentos tradicionais da adaptação. Greenaway
é um escritor legível? MEM
– Por incrível
que pareça, não é um escritor barroco ou
experimental. Seus textos são límpidos e escorreitos. A
maioria é de narrativas curtas, que trazem histórias
prosaicas, mas o tempo todo assaltadas pelo insólito,
pelo nonsense. Têm humor e ironia. Inteiramente legíveis
e digeríveis. O mesmo se pode dizer de seus
ensaios. Livros de Maria Esther Maciel A
Memória das Coisas
Editora Lamparina,160 páginas, R$ 22 O Livro de Zenóbia Editora Lamparina, 160 páginas, R$ 29,50 O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway Unimarco Editora, 216 páginas, R$ 25,00 |
|
TRAJETÓRIA :: LIVROS :: POEMAS :: ENSAIOS :: ENTREVISTAS :: CRÉDITOS ::
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|