Florianópolis, 02 de outubro de
2004. Edição nº 6745
Cinco
perguntas para Maria Esther Maciel
Sérgio
Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante
Pergunta - Você publicou recentemente dois
livros: um de ensaios, A Memória das Coisas, e outro de ficção, O Livro de
Zenóbia. No primeiro, você discute alguns nomes centrais da modernidade e da
pós-modernidade, como Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade, Haroldo
de Campos e Peter Greenaway; no segundo, você mergulha no universo, por assim
dizer, neo-regional, marginal, de uma personagem que optou pela periferia.
Como você explicaria essas duas tendências aparentemente opostas?
Maria Esther Maciel - Não
vejo uma distância muito grande entre os dois livros no que tange às escolhas
canônicas ou "periféricas". Em A Memória das Coisas abordo uma
constelação muito variada de escritores e artistas, que inclui também autores
"periféricos" ou "à margem", como o artista sergipano
Arthur Bispo do Rosário e o poeta mineiro, ainda pouco conhecido, Altino
Caixeta de Castro. Meus interesses no campo do cinema, por exemplo, vão de
Greenaway, passando por Wim Wenders e Jim Jarmursch, a Júlio Bressane e o
mineiro Halvécio Ratton, num trânsito entre nacionalidades, localidades e
tendências diversas. Meu intento é abordar questões comuns a todos, uni-los
através das afinidades pouco óbvias que eles mantêm entre si. Já no que se
refere a O Livro de Zenóbia, optei por mergulhar em um universo que não deixa
de ser o meu. Resolvi, como diria Tolstoi, cantar minha aldeia e, dessa
forma, cantar o mundo. Zenóbia é uma personagem do interior, que vive as
miudezas de seu cotidiano mais prosaico e busca extrair disso pequenas
epifanias e assombros. Mas o fato de viver em uma cidade
"periférica" não a impede de freqüentar, através da leitura,
autores universais, como Sófocles, Kierkegaard, Kafka, Dostoievski, Guimarães
Rosa, Clarice Lispector e João Cabral, dentre outros. Basta dar uma olhada na
lista de seus livros de cabeceira. Ela é uma mulher de gosto refinado, mas
que não abre mão do legado provinciano que recebeu e que faz parte de sua
formação. E talvez nesse legado esteja a sua maior solidez.
Pergunta - As lembranças da protagonista d'O Livro de Zenóbia
encerram ensinamentos que parecem similares à tradicional e antiguíssima
"moral da fábula": "descobriu que no óbvio estava o segredo da
vida", "descobriu (...) que há coisas (e pessoas) que não se deixam
nunca", ou, conforme se lê numa receita, que a melhor pamonha é "
aquela feita com desejo". Zenóbia, filha de Zeus e de Memória, não seria
também filha de Esopo?
Maria Esther - Não sei se de Esopo. Talvez de Epicuro,
Sêneca, Pascal, Cioran, enfim, os filósofos da tradição aforística. Sempre
gostei de aforismos e quis aproveitar esse gênero "menor" no livro,
mesclando-o a outros, como o da narrativa e o da poesia. Nesse meu gosto pelo
pensamento-frase vejo também os influxos dos velhos chavões das avós sábias
de minha terra natal. Quando criança, eu ficava fascinada com as frases de
sabedoria dessas mulheres. Elas tinham algo daquele narrador benjaminiano que
sabia extrair ensinamentos da experiência e passá-los a outras gerações. Suas
frases eram verdadeiros insights poéticos. E achei que isso combinava com o
universo de Zenóbia. Por outro lado, se lermos atentamente certos escritores
modernos e contemporâneos, como Clarice, Drummond, J. M. Coetzee, Alberto
Caeiro, Maria Gabriela Llansol, Guimarães Rosa e até mesmo o Borges poeta, encontraremos,
fartamente, essas frases poéticas de sabedoria. Inspirei-me muito nesses
autores para construir algumas das falas de minha personagem.
Pergunta - Uma miscelânea de formas literárias e não-literárias, que
vão dos textos convencionais até os mais experimentais (como as enumerações),
passando ainda pelo grau zero do estilo, compõe a memória de Zenóbia. Poderia
falar um pouco dessas lembranças que também são exercícios de estilo?
Maria Esther - Eu quis e não quis, ao mesmo tempo,
escrever um romance em torno da vida de Zenóbia. Quis contar sua história,
descrever cenas de seu dia-a-dia, construir retratos das pessoas com quem se
relacionou, como todo romancista faz. Mas preferi fazer isso por vias
transversas: ao invés de me valer do fluxo contínuo, da sucessividade
temporal, procurei me ater aos ritmos e texturas da memória, com seus
fragmentos de imagens, sensações, reminiscências, cortes e dizeres breves.
Nesse sentido, tive que explorar os recursos da poesia e do cinema, que estão
mais próximos dessa linguagem. E permitir-me, assim, uma certa
experimentação. Fiquei muito atenta à sonoridade interna das palavras na
construção de todas as frases de todos os "capítulos", além de
procurar sempre explorar sinestesias e imagens concentradas, bem visuais. Mas
ao contrário da prosa de invenção, tipo joyciana, não prescindi da clareza do
dizer, da referencialidade. Já as listas e enumerações vêm a título de
homenagem à escritora japonesa Sei Shonagon, a Borges e a Greenaway, autores
afeitos ao uso das listas como forma alternativa de narratividade. Elas têm a
ver também com o tecido precário, seletivo e insuficiente da memória. E
contêm algo lúdico, infantil, até mesmo ingênuo. Aliás, a ingenuidade me
fascina pelo que tem de desprendimento, de singeleza. As coisas singelas são,
muitas vezes, desconcertantes. E aliadas a um certo experimentalismo, então,
entram no espaço do insólito. Foi isso que persegui o tempo todo com minhas
listas: aliar o ingênuo ao experimental, o lúdico ao rigor quase matemático.
Acho que o livro todo é um pouco disso também.
Pergunta - Sua ficção parece apostar mais na força das minúcias do
que da aventura. O que é a minúcia para você?
Maria Esther - Borges, em um breve texto intitulado Del
pudor de la historia, mostra que os acontecimentos secretos, que não tiveram
espaço nos livros de história, foram aqueles que realmente incidiram nos
rumos da história de um povo, de uma sociedade. Da mesma forma, penso que os
eventos mais corriqueiros, as miudezas, as circunstâncias particulares
delineiam muito mais a vida de uma pessoa do que as experiências estrondosas,
as peripécias, os grandes acontecimentos. Daí eu ter optado, nesse livro,
pelas minúcias, pelos detalhes da vida de Zenóbia. Gosto da falta de ênfase,
do falar baixo, do quase cochicho. Meu livro é feito de cochichos. No duplo
sentido: enquanto fala em voz baixa e enquanto fuxico, enredo, segredo.
Pergunta - Seus dois livros saíram pela Editora Lamparina, que é
nova, mas já possui no catálogo nomes importantes da literatura brasileira
mais atual. Você poderia comentar sua relação com o projeto dessa editora?
Maria Esther - Digo que a Lamparina Editora chegou para
iluminar as zonas de sombra do mercado editorial brasileiro, apostando,
sobretudo, em autores mais alternativos, pouco conhecidos e, até mesmo, em
certos casos, à margem. E busca aliar a isso a recuperação de obras e autores
menos óbvios do passado, bem como traduções de livros instigantes da
literatura estrangeira. A proposta da editora é estimular a imaginação e a lucidez
crítica de seus leitores, sem se render aos chichês do mercado e do
academicismo. Tenho a honra de fazer parte do conselho editorial da Lamparina
e de acompanhar de perto a constituição de seu catálogo. Muita coisa boa está
por vir por aí neste e no próximo ano.
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